Processo nº 204/2011 Data: 23.06.2011
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “ofensa grave à integridade física” e de “ofensa à integridade física agravada pelo resultado”.
Elementos típicos.
SUMÁRIO
1. Para o preenchimento do tipo de crime descrito no art. 138°do C.P.M. – “ofensa grave à integridade física” – necessária é a existência de dolo não só quanto à “ofensa corporal”, mas também quanto ao “resultado” daquela.
Com efeito, sem que o agente represente o evento, – a “doença dolorosa” ou “permanente”, ou o “perigo de vida” como resultado da agressão – ou pelo menos, o preveja, como consequência possível da sua conduta, (dolo eventual), inviável é responsabilizá-lo subjectivamente pelo dito resultado.
No crime em questão, o dolo tem que abranger não só o delito fundamental, (a agressão ou “ofensa à integridade física”), como as “consequências” que o qualificam.
2. Se a factualidade dada como provada nada diz quanto ao dolo (ainda que “eventual”) do arguido quanto ao “resultado” da agressão, (não sendo também possível extrair daquela que agiu o mesmo arguido de forma dolosa), (e, independentemente do demais), correcta não é a sua condenação como autor de um crime de “ofensa grave à integridade física”, p. e p. pelo art. 138° do C.P.M..
3. O crime de “ofensa à integridade física agravada pelo resultado” p. e p. pelo art. 139° do C.P.M. identifica-se com o chamado “crime preterintencional” que se caracteriza com os seguintes elementos:
- um “crime fundamental” praticado a título de dolo;
- um “crime resultado” mais grave do que se intencionava imputado a título de negligência; e,
- a “fusão” dos dois crimes em causa.
4. Provado estando que o arguido ora recorrente actuando concertadamente com mais dois indivíduos, agrediu o ofendido a soco e pontapé em vários partes do corpo, incluindo, a cabeça, que na dita agressão “usou artes marciais” de que era praticante e que só parou a agressão quando o ofendido “caiu no chão sem consciência”, e sendo lícito a esta Instância extrair ilações ou conclusões que operam o desenvolvimento dos factos provados, (desde que não os altere), evidente se mostra de concluir que causou àquele “perigo de vida”.
5. Assim, e clara e inequívoca sendo também a violação de um dever objectivo de cuidado que sobre ele impendia e que conduziu à produção do resultado típico, sendo de se afirmar, igualmente, que essa produção do resultado típico deve ter-se como previsível, tendo em conta as circunstâncias apuradas, cometeu o mesmo, em co-autoria, o crime de “ofensa à integridade física agravada pelo resultado”.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 204/2011
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão do Colectivo do T.J.B. decidiu-se condenar o arguido A, com os sinais dos autos, como autor material de 1 crime de “ofensa grave à integridade física” p. e p. pelo art. 138°, al. c) do C.P.M., na pena de 2 anos e 6 meses de prisão suspensa na sua execução por 3 anos; (cfr., fls. 151 a 151-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado, o arguido recorreu.
Motivou para concluir nos termos seguintes:
“1ª O presente recurso vem interposto do douto acórdão de fls. 148 e ss. proferido pelos Mmos. Juízes que integraram o Tribunal Colectivo de la instância que condenou o arguido A, ora recorrente, como autor material de um crime de ofensa grave à integridade física, p. e p. pelo artigo 138°, al. c), do Código Penal (CP), na pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos.
2a A sentença recorrida faz uma errada qualificação jurídica dos factos praticados pelo recorrente ao caracterizar as lesões corporais infligidas ao ofendido B como ofensa grave à sua integridade física dado que essas lesões não são subsumíveis ao disposto da alínea c) do artigo 138° do CP.
3a O Tribunal a quo deveria assim ter qualificado as lesões corporais em causa como ofensa simples à integridade física (v., n. ° 1 do artigo 137° do CP) e, dessa forma, ter aceite a desistência da queixa formulada por aquele mesmo ofendido em sede de julgamento, declarando-se dessa forma extinto o presente procedimento criminal (v., artigos 105°, n.° 1, e 108° do CP) .
4a Cumpre realçar que não resultou provada nos presentes autos qualquer situação de “doença particularmente dolorosa”, tomando em consideração o elenco dos factos dados como assentes no douto acórdão recorrido, pelo que não poderia o Tribunal recorrido, em caso algum, valorar essa situação com vista a qualificar a conduta do recorrente como um crime de ofensa grave à integridade física.
5a Acresce que é o próprio ofendido B que, por declaração emitida em 15/02/2011, vem declarar expressamente, por escrito, que, em resultado das lesões sofridas por força da conduta do ora recorrente, não sofreu efectivamente de doença particularmente dolorosa, encontrando-se completamente curado e recuperado, sendo que essa declaração revela-se determinante no tocante à inexistência de sintomas particularmente dolorosos por parte daquele ofendido porquanto estamos perante uma questão relacionada com o seu próprio sistema nervoso e sensitivo.
6a Quanto à questão da “doença permanente” aforada na mesma alínea c) do artigo 138°, cumpre realçar que, tal como é largamente defendido na doutrina e jurisprudência, a permanência não vale aqui corno exigência de perpetuidade, mas apenas pretende significar que os efeitos da lesão sofrida são duradouros, sendo previsível que perdurem por um período de tempo indeterminado.
7a Duradouro é algo que dura ou pode durar muito, sendo que o lapso temporal de 46 ou mesmo de 60 dias não pode preencher, de modo algum, tal conceito.
8a Entendeu o STJ de Portugal de que lesões cuja cura demorou um período de doença muito superior ao caso em apreço, no caso de 130 dias (cfr., Ac. do STJ de 4/5/1983, BMJ n.° 328-643) ou mesmo de 424 dias (cfr., Ac. do STJ de 11/07/1990, Proc. n.° 041059), não integrava qualquer das situações em causa, ou seja, não causava doença que fosse particularmente dolorosa ou permanente.
9a O próprio parecer médico de fls. 64 a que alude o acórdão recorrido para efeitos de enquadramento dos factos praticados pelo recorrente na referida al. c) do artigo 138° do CP assenta, basicamente, na circunstância da recuperação, do ofendido ter demandado de 60 dias de doença o que, como se viu, não permite preencher, de modo algum, o conceito de “doença permanente”.
10a Duvida-se, aliás, que esse período de doença se tenha prolongado por 60 dias na medida em que o Hospital Kiang Wu, através do atestado emitido em 17/02/2011, vem atestar que o ofendido terá ficado totalmente curado e recuperado em 46 dias.
11a Tudo ponderado, afigura-se-nos que não se está perante qualquer das hipóteses contempladas no artigo 138°, al. c), do CP, ao contrário do decidido pelo Tribunal recorrido.
12a Conclui-se assim que, com a sua conduta, o ora recorrente não cometeu o crime pelo qual foi acusado, não preenchendo de modo algum os elementos objectivos e subjectivos do crime de ofensa grave à integridade física, mas sim o crime de ofensa simples à mesma integridade, p. e p. pelo artigo 137°, n.° 1, do CP.
13a Por fim, invoca-se ainda, em face dos elementos disponíveis nos autos, o princípio “in dubio pro reo”, na sua incidência substantiva, sendo que, neste prisma, deve considerar-se preenchido o preceito que estabelece a sanção concretamente menos grave porquanto a situação de facto sugere a aplicação de vários preceitos, sem que a prova mostre claramente se se verificam os elementos de um ou de outro.
14a O Tribunal a quo deveria assim ter qualificado as lesões corporais em causa como ofensa simples à integridade física (v., n.° 1 do artigo 137.° do CP) e, dessa forma, ter aceite a desistência da queixa formulada por aquele mesmo ofendido em sede de julgamento que não mereceu qualquer oposição por parte do ora recorrente (cfr., Acta da respectiva sessão de julgamento da 1 a instância de fls. 146 e 147), declarando-se dessa forma extinto o presente procedimento criminal (v., a este respeito, artigos 105°, n.° 1, e 108° do CP).
15ª Violou assim o Tribunal recorrido as disposições normativas
acima citadas.
16ª Pelo que se requer a V. Exas. se dignem revogar a sentença recorrida tomando em conta que as lesões corporais em causa devem ser qualificadas como ofensa simples à integridade física (v., n.° 1 do artigo 137° do CP), julgando assim válida a desistência da queixa deduzida pelo ofendido por se estar perante a prática de um crime que admite essa situação (v., n.° 1 do artigo 137° do CP) e, concomitantemente, considerando extinto o presente procedimento criminal.
17ª Caso assim não se entenda, o Tribunal a quo deveria ter-se socorrido do regime da atenuação especial da pena plasmado nos artigos 66° e 67° do CP e, por via disso, ter aplicado ao recorrente uma pena não superior a 1 ano de prisão pela prática do crime em causa, suspensa na sua execução por dois anos.
18ª Efectivamente, a pena pode ser especialmente atenuada quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
19ª O uso do faculdade extraordinária do artigo 66° do CP pressupõe assim um acervo de circunstâncias anteriores, coevas ou posteriores ao crime que, notoriamente, diminuam a culpa, a ilicitude ou as necessidades de punição.
20ª E tal só se verifica quando a imagem global de facto, resultante da actuação, da (s) circunstância (s) atenuante (s), se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os elementos normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.
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21ª Ora, em benefício do recorrente, provaram-se as seguintes circunstâncias atenuantes: ter o arguido confessado os factos que lhe foram imputados, designadamente as lesões e ofensas que infligiu no ofendido, se bem que tivesse declarado que actuou em legítima defesa; ser o arguido primário, não tendo antecedentes criminais; ter o arguido revelado sincero arrependimento, ao ponto de ter reparado o ofendido, até onde lhe era possível, pelos danos e lesões causados; e ter já decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mais de 4 anos, mantendo o arguido boa conduta.
22ª Deveria, pois, o Tribunal recorrido ter aplicado o disposto nos artigos 66° e 67° do CP, atenuando especialmente a pena aplicada ao recorrente.
23ª Antes da aplicação do mecanismo da atenuação especial da pena a moldura penal do crime em causa (crime de ofensa grave à integridade física) situava-se em 10 anos de prisão, no seu limite máximo, e em dois anos, no seu limite mínimo, por força do disposto no artigo 138° do CP.
24ª Depois da aplicação daquele mecanismo previsto no artigo 67° do CP, a nova moldura penal cifra-se em 6 anos e 8 meses de prisão, no seu limite máximo, e em 1 mês, no seu limite mínimo (cfr. artigo 67°, n.° 1, alíneas a) e b), do CP).
25ª Conclui-se assim que é adequada, justa e equilibrada uma pena de um ano de prisão atenta a natureza do crime em causa e sobretudo por força das circunstâncias atenuantes acima discriminadas que, notoriamente, diminuem a culpa, a ilicitude e as necessidades de punição.
26ª Pena essa que deveria ser suspensa pelo período de 2 anos e não de três anos como decidido no acórdão recorrido, assente num juízo de prognose favorável ao arguido e face à sua personalidade, condição de vida e conduta anterior e posterior, nos termos do artigo 48° do CP”; (cfr., fls. 159 a 185).
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Respondendo, assim conclui o Exmo. Magistrado do Ministério Público:
I- “Questão sobre a intempestividade da apresentação dos documentos pelo recorrente:
1.
Tendo em consideração o artigo 151.º n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal, o recorrente apresentou, em sede de recurso, dois documentos juntos à petição de recurso, porém, a apresentação de tais documentos excedeu o prazo legalmente fixado. Por outro lado, o recorrente não tentou explicar que os dois documentos podem ajudar a provar os factos supervenientes nem justificou quais as dificuldades encontradas no decurso da obtenção desses documentos que levaram a que os mesmos só pudessem ser apresentados neste momento.
2.
Assim sendo, o Ministério Público entende que não se pode admitir os documentos apresentados pelo recorrente quando os mesmos foram apresentados fora do prazo legalmente fixado, devendo, por isso, o Venerando Tribunal de Segunda Instância ordenar a sua extracção dos autos e a sua devolução ao recorrente.
I. Questão sobre a qualificação jurídica das lesões sofridas pelo ofendido B em consequência da conduta do recorrente:
3.
Analisando o acórdão ora recorrido, podemos claramente ver que o que o tribunal a quo considerou principalmente é “só conforme os ferimentos do ofendido”, por outras palavras, “o juízo do tribunal foi feito com base nos ferimentos concretamente sofridos pelo ofendido”, contrariando ao entendido pelo recorrente que o tribunal a quo provou que as lesões sofridas pelo ofendido são ofensa grave só com base no tempo de recuperação de 60 dias.
4.
Segundo os factos provados do presente processo, “As condutas do arguido e dos dois indivíduos de identidade não apurada causaram directa e necessariamente a B ferimento crânio-cerebral médio (fractura do osso temporal direito e hemorragia subaracnóide), contusões e lacerações no arco superciliar do lado esquerdo e contusões e escoriações no tecido mole da cabeça, face, ombros e várias partes do peito”
Além disso, também se provou “Conforme o parecer médico-legal clínico a fls. 64 dos autos, as lesões sofridas por B são ofensa grave, necessitando de 60 dias para se recuperar”.
Doença permanente:
5.
De facto, não há qualquer linha divisória exacta ou absoluta que permite qualificar uma determinada doença como permanente ou não permanente, porém, no caso sub judice, devemos considerar dois factores: a) na audiência de julgamento, o ofendido B confirmou a sua recuperação, não sofrendo qualquer sequela, e a sua conclusão de não sofrer sequela também foi aceite pelo tribunal a quo; b) as lesões sofridas pelo ofendido necessitaram de 60 dias para se recuperar.
Dado que o ofendido não sofreu qualquer sequela, a análise sobre a existência ou não da doença permanente só pode ser feita com base no número de dias da recuperação.
6.
Ao qualificar a doença permanente, a avaliação profissional do perito médico-legal tem um valor de referência muito importante, porém, in casu, o tempo de recuperação é apenas de 60 dias, não sendo uma duração muito longa, por isso, entendemos que tal número de dias da recuperação não permite chegar à conclusão de que existe a “doença permanente”.
Doença particularmente dolorosa
7.
Tal como já foi referido, tendo em consideração as lesões sofridas pelo ofendido, o tribunal a quo chegou a uma conclusão de que as lesões sofridas pelo ofendido constituem a doença particularmente dolorosa.
8.
Quanto a isso, este Ministério Público concorda que só as lesões do ofendido bastam para provar que o ofendido sofreu a doença particularmente dolorosa.
9.
A aracnóide localiza-se num lugar mais fundo do cérebro. Quando acontece a hemorragia subaracnóide, o sangue que preenche o espaço subaracnóide aumenta a pressão no interior do cérebro. Dado que os tecidos cerebrais são muito frágeis e tem muitos nervos, não é difícil imaginar as dores causadas pela hemorragia subaracnóide.
10.
Aliás, há muitos elementos que podem justificar que a hemorragia subaracnóide produz uma dor de cabeça intensa dificilmente suportável. Na realidade, a presença deste sintoma é muito grave e perigosa para o paciente, por isso, in casu, o perito médico-legal qualificou o ferimento crânio-cerebral sofrido pelo ofendido como ferimento crânio-cerebral médio”.
11.
O recorrente apresentou junto da sua petição de recurso uma declaração assinada pelo ofendido B, na qual o ofendido declarou que não sofreu doença particularmente dolorosa, porém, no nosso entender, a declaração acima mencionada não basta para alterar a convicção do tribunal a quo acerca da existência da “doença particularmente dolorosa”
12.
Por um lado, tal declaração assinada pelo ofendido B não deve ser admitida, e por outro lado, mesmo que o seu conteúdo seja considerado, tal declaração ainda não constitui um elemento que pode negar objectivamente a convicção acerca da existência da “doença particularmente dolorosa”.
13.
Absolutamente não devemos aceitar que a mera declaração prestada pelo ofendido pode provar a inexistência da “doença particularmente dolorosa”, senão, ao discutir se existe, num determinado caso, a “doença particularmente dolorosa” e se os factos ilícitos integram o crime de ofensa à integridade física simples ou o crime qualificado, qualquer declaração prestada pelo ofendido pode afectar arbitrariamente a convicção no que diz respeito às lesões.
14.
Obviamente, isto é inviável, uma vez que o critério para o legislador definir um determinado crime como público ou semi-público depende do grau de importância dos bens jurídicos, por isso, uma vez exista objectivamente a doença particularmente dolorosa, isto implica que as lesões de bens jurídicos pessoais do ofendido já alcançam um nível que o legislador entende ser necessário que os órgãos de poder público procedem à efectivação da responsabilidade criminal do agente, seja qual for o entendimento do próprio ofendido acerca das lesões sofridas.
15.
Em síntese, o tribunal a quo chegou à conclusão de que existe no caso em apreço a “doença particularmente dolorosa” através da análise das lesões sofridas pelo ofendido B, forma essa deve ser mantida.
Questão sobre a aplicação da lei – provocar perigo para a vida do ofendido:
16.
Em relação à aplicação da lei, no ponto de vista do Ministério Público, in casu, para além de estar reunida a circunstância prevista no artigo 138.º alínea c) do Código Penal de Macau, também se encontra preenchida a circunstância prevista no artigo 138.º alínea d), isto é, provocar o perigo para a vida do ofendido B.
17.
Existem três membranas entre o cérebro e o osso do crânio, sendo a sua ordem, do interior para o exterior, pia-máter, aracnóide e dura-máter, entre as quais, a aracnóide é a membrana mais fina e o espaço entre a aracnóide e a pia-máter é chamado “espaço subaracnóide”.
A “hemorragia subaracnóide” traumática (Subarachnoid hemorrhage) é causada pela ruptura da veia do córtex e do vaso sanguíneo da pia-máter aquando da contusão cerebral que forma um fluxo de sangue ao espaço subaracnóide.
18.
A ruptura dos vasos sanguíneos dos giros superficiais cerebrais provoca o fluxo de sangue ao espaço subaracnóide e habitualmente o sangue acumula no sulco, cisterna ou fissura. O paciente que sofre hemorragia subaracnóide apresenta sempre dor de cabeça intensa e rigidez muscular no pescoço.
A súbita e grande quantidade de sangue acumulada no espaço subaracnóide causa um aumento rápido da pressão cerebral que pode provocar coma ou morte do paciente.
19.
Uma vez sofre hemorragia subaracnóidea, o paciente tem um risco maior de morte imediata.
20.
In casu, a conclusão constante do relatório médico-legal clínico é idêntica ao nosso entendimento, segundo a qual, “(…) só conforme as lesões do ofendido, causaram efectivamente ofensa grave à integridade física do ofendido, preenchendo o previsto no artigo 138.º alíneas c) e d) do Código Penal de Macau – (…) provocou-lhe perigo para a vida (…) ”.
21.
O perito médico-legal tem profissionalismo e credibilidade, por isso, é difícil duvidar da conclusão chegada pelo perito médico-legal.
22.
Quanto ao valor da conclusão do relatório médico-legal, o Tribunal de Segunda Instância da RAEM entendeu, no acórdão do Processo n.º 106/2003, que o juízo técnico veiculado nos relatórios de exames médicos tem o mesmo valor previsto no artigo 149.º do Código de Processo Penal de Macau, por isso, fica desnecessária a feitura de qualquer silogismo judiciário do “perigo para a vida” no acórdão.
23.
In casu, já que foram enumeradas na matéria de factos provados as lesões do ofendido e foi citado o conteúdo do relatório médico-legal, no qual, o perito médico-legal concluiu expressamente que as lesões do ofendido lhe provocaram perigo para a sua vida, pelo que, a falta da expressão de “provocar-lhe perigo para a vida” no acórdão recorrido não impede que o tribunal de recurso proceda directamente à alteração da qualificação jurídica para o crime de ofensa à integridade física p. e p. pelo artigo 138.º alínea d) do Código Penal com base nos factos provados e na conclusão do relatório médico-legal.
24.
O mais grave é que dos factos provados resulta que o recorrente agrediu o ofendido B e só parou de agredi-lo até que o ofendido caiu no chão sem consciência, e em conjugação com as lesões do ofendido posteriormente examinadas e provadas, pode-se chegar à conclusão de que na altura, o ofendido foi agredido, encontrando-se em estado de coma, numa situação de emergência e de perigo. Assim, pode-se imaginar que na altura o ofendido sofria hemorragia subaracnóide; porém, felizmente, o ofendido foi oportunamente encaminhado ao hospital para receber tratamento médico, senão, o ofendido poderia sofrer consequências mais graves, mesmo poderia morrer devido à hemorragia subaracnóide.
25.
Sintetizando a análise acima mencionada, entendemos que no caso em apreço há elementos suficientes para provar concretamente que o ofendido se encontrava numa situação de perigo após a agressão.
Em primeiro lugar, as lesões concretamente sofridas pelo ofendido já foram provadas e as referidas lesões localizavam-se na cabeça e o local da hemorragia ficava dentro do crânio!
Secundariamente, o ofendido foi agredido até em estado de coma e os traumas na cabeça causaram ao ofendido a perda de consciência, situações essas podem levar-nos a saber que as lesões do ofendido foram graves que lhe puderam provocar perigo para a vida.
Além disso, servindo meramente como outros elementos de prova, os dados estatísticos demonstram que a hemorragia subaracnóidea pode causar a morte do ofendido num curto período de tempo (caso não receba oportunamente tratamento médico) e a taxa de mortalidade é relativamente elevada.
O último ponto, também é o mais importante, o relatório médico-legal clínico também concluiu que as lesões sofridas pelo referido ofendido provocaram perigo para a vida do ofendido.
26.
Tal subsunção dos factos provados ao artigo 138.º alínea d) do Código Penal de Macau constitui absolutamente a questão da aplicação da lei, por isso, não impede que o Venerando Tribunal de Segunda Instância procede à alteração acerca da aplicação da lei.
27.
A jurisprudência entende que a alteração da qualificação jurídica não se limita apenas ao momento da decisão da primeira instância, podendo proceder-se a tal alteração a qualquer momento.
28.
Mesmo que o Venerando Tribunal de Segunda Instância entenda que as lesões do ofendido não podem ser qualificadas como as lesões previstas no artigo 138.º alínea c) do Código Penal, isto não impede que as referidas lesões são qualificadas como as que provocam perigo para a vida prevista no artigo 138.º alínea d).
29.
Pelos acima expostos, o Venerando Tribunal de Segunda Instância deve julgar parcialmente procedente o recurso do recorrente, mas, deve manter a decisão do tribunal a quo que condenou o recorrente pela prática do crime de ofensa grave à integridade física previsto no artigo 138.º do Código Penal de Macau (quer alínea c), quer alínea d)).
II. Atenuação especial da pena:
30.
O recorrente mais entendeu que o tribunal a quo deve aplicar ao recorrente o mecanismo da atenuação especial da pena prevista nos artigos 66.º e 67.º do Código Penal de Macau e em consequência deve condenar o recorrente na pena não superior a 1 ano de prisão e suspender na sua execução pelo período de 2 anos. Analisando os elementos constantes dos autos e os fundamentos invocados pelo recorrente, salvo o devido respeito, entendemos que carece de fundamentos de direito o recurso do recorrente.
31.
Apesar de concordarmos com alguns pontos de vista do recorrente, como o recorrente é primário, tendo algum arrependimento, pagando a indemnização ao ofendido e não voltando a cometer crime durante um longo período de tempo desde a prática do facto até agora, porém, mesmo que o recorrente tenha profundo arrependimento do crime por si praticado, não voltando a cometer crime após a prática do crime, isto não implica que o tribunal deve atenuar especialmente a pena que lhe foi imposta, pois mesmo que se verifiquem as circunstâncias previstas no artigo 66.º n.º 2 alíneas c) e d) do Código Penal, o tribunal ainda deve cumprir o artigo 66.º n.º 1 do mesmo Código, ponderando prudentemente se existem verdadeiramente circunstâncias que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa ou a necessidade da pena, no sentido de decidir se atenua especialmente ou não a pena.
32.
O recorrente entendeu que ele confessou os factos sem nenhuma reserva e arrependeu-se sinceramente, porém, o Ministério Público entende que não existem tais factores.
33.
Em síntese, devido à altercação, o recorrente usou violência contra o ofendido e só parou de agredi-lo até que o ofendido caiu no chão, e em consequência de tal agressão, o ofendido sofreu graves lesões, por isso, in casu, o grau de dolo e o grau de ilicitude são relativamente elevados, manifestamente não se podendo a pena imposta ao arguido ser atenuada pelos factos de o recorrente não voltar a cometer crime, ser primário, pagar a indemnização ao ofendido e confessar parcialmente os factos. Nestes termos, não é procedente o recurso na parte respeitante à atenuação especial da pena.
34.
Finalmente, por entender que não se verifica in casu qualquer circunstância da atenuação especial da pena e em conjugação com todos os factores favoráveis e desfavoráveis ao recorrente, o tribunal a quo condenou o recorrente na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, pena essa é apenas 1/16 da moldura da pena abstracta, por isso, é adequada.
35.
Pelos acima expostos, deve o Venerando Tribunal de Segunda Instância manter a pena concretamente imposta ao recorrente pelo tribunal a quo” ; (cfr., fls. 189 a 210-v e 226).
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Neste T.S.I., e em sede de vista juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Acompanhamos as criteriosas e desenvolvidas explanações do nosso Exm°. Colega, relativamente aos documentos juntos com a motivação e à pena aplicada no âmbito da qualificação jurídico-penal efectuada.
Essa qualificação, todavia, merece uma reflexão (e, a nosso ver, uma correcção).
Vejamos.
Quanto aos referidos documentos, na verdade, afigura-se-nos incontroversa a bondade da posição assumida na resposta à motivação.
Em processo penal, em fase de recurso, não é admissível - pelo menos, em princípio - a junção de documentos, tendo em conta a concepção dos recursos como “remédios jurídicos” e a norma do art. 151°, n°. 1, do C. P. Penal (cfr. Jurisprudência portuguesa citada por Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, 340 e segs. - em anotação ao correspondente dispositivo do respectivo Diploma).
Uma eventual aplicação subsidiária das normas do processo civil, aliás, não alteraria, “in casu”, os dados do problema.
Não poderia ter-se como verificado, efectivamente, a condicionalismo previsto no art. 616°, n°.1, do C. P. Civil.
No que concerne ao enquadramento jurídico-criminal, estamos de acordo com o preenchimento das als. c) e d) do art. 138° do C. Penal.
E, a esse respeito, nada temos a acrescentar às judiciosas considerações do M°P° junto da 1ª Instância.
Não pode olvidar-se, a propósito, na esteira da Jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal, que "é lícito ao Tribunal de Segunda Instância, depois de fixada a matéria de facto, fazer a sua interpretação e esclarecimento, bem como extrair as ilações ou conclusões que operem o desenvolvimento dos factos, desde que não os altere" (dr. ac. de 28-5-2003, proc. n°. 8/2003).
No âmbito subjectivo, entretanto, o crime de ofensas corporais graves exige o dolo de dano, isto é, que o dolo abranja tanto a ofensa como o seu resultado.
O que equivale a afirmar que todas as circunstâncias integradoras da descrição contida no citado art°. 138° devem ser abarcadas pelo dolo.
É esse, na realidade, o corolário lógico do princípio da culpa como princípio fundamental do direito penal.
E a matéria de facto fixada não aponta, em nosso juízo, para a exigida imputação subjectiva.
Daí que não possa manter-se, -também, a condenação pelo crime em foco.
Há que ajuizar, então, se tal matéria pode ser subsumida à previsã do n°. 2 do subsequente art. 139°.
E propendemos, de facto, pela afirmativa.
Cremos, com efeito, que as consequências da agressão devem ser imputadas ao arguido a título de negligência.
Apurou-se, designadamente, que o mesmo actuando concertadamente com mais dois indivíduos, agrediu o ofendido em vários partes do corpo, incluindo a cabeça, que “usou artes marciais” de que era praticante e que só parou a agressão quando o ofendido “caiu no chão sem consciência”.
Clara é assim a violação de um dever objectivo de cuidado que sobre ele impendia e que conduziu à produção do resultado típico, sendo de se afirmar igualmente que essa produção do resultado típico deve ter-se como previsível, tendo em conta as circunstâncias apuradas.
A capacidade do recorrente para prever tal evento, por seu turno, deve ter-se como evidente, tendo em conta o homem médio “ pertencente à categoria intelectual e social e ao círculo de vida do agente” (cfr. Figueiredo Dias, Ternas Básicos da Doutrina penal, 354).
No que concerne à pena, há que rechaçar, desde logo, a pretendida atenuação especial.
Essa atenuação, conforme se sabe, só pode ter lugar em casos excepcionais.
E a situação em apreço não assume, realmente, qualquer excepcionalidade.
A confissão dada como provada, nomeadamente, tem uma relevância muito reduzida.
Não se mostra, além do mais, que tenha contribuído, de qualquer forma, para a descoberta da verdade.
E, muito menos, que haja sido acompanhada de arrependimento.
O recorrente, de resto, integrou -a num quadro de pretensa legítima defesa - procurando, assim, em primeira linha, eximir-se à sua responsabilidade.
O facto de ser primário, por outro lado, tem um valor despiciendo.
É certo, em todo o caso, que se mostra resolvido o problema da indemnização.
Em termos agravativos, há que destacar, antes do mais, a intensidade de dolo que presidiu à sua actuação.
Acresce, ainda, a circunstância de ter agido numa situação de co-autoria material.
Tudo ponderado, enfim, a pena aplicada mostra-se equilibrada, na órbita da qualificação operada.
E, na perspectiva da propugnada alteração, cremos que deverá sofrer uma redução não inferior a um ano de prisão.
Este o nosso parecer”; (cfr., fls. 266 a 271).
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Teve lugar a audiência de julgamento com integral respeito pelo formalismo processual.
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Nada obstando, (e mostrando-se de subscrever o entendimento pelo Ministério Público assumido quanto à pretendida “junção de documentos” por parte do ora recorrente, pois que foi a mesma extemporânea), cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados os factos seguintes:
“Em 23 de Agosto de 2006, por volta das 05hOO da madrugada, o arguido e dois indivíduos do sexo masculino cuja identidade não se apurou encontraram C, B e D numa tendilha de comidas ambulante perto da Rua de Madrid.
Ali, o arguido e os aludidos dois indivíduos de identidade não apurada tiveram uma altercação com B.
Após a altercação, o arguido e os aludidos dois indivíduos saírem primeiro da tendilha de comidas.
Em seguida, C, B e D também saíram. Pouco tempo depois, eles encontraram outra vez o arguido e os aludidos dois indivíduos de identidade não apurada.
Naquele momento, o arguido e os aludidos dois indivíduos de identidade não apurada desferiram socos e pontapés em várias partes do corpo de C, B e D, com a finalidade de ofender o corpo e a saúde destes.
Durante a agressão, o arguido usou as artes marciais de Taekwondo que pratica há 1 ano para agredir B e só parou de agredi-lo até que o ofendido caiu no chão sem consciência.
As condutas do arguido e dos dois indivíduos de identidade não apurada causaram directa e necessariamente a B ferimento crânio-cerebral médio (fractura do osso temporal direito e hemorragia subaracnóide), contusões e lacerações no arco superciliar do lado esquerdo e contusões e escoriações no tecido mole da cabeça, face, ombros e várias partes do peito.
Conforme o parecer médico-legal clínico a fls. 64 dos autos, as lesões sofridas por B são ofensa grave, necessitando de 60 dias para se recuperar.
O arguido agiu de forma voluntária e consciente ao praticar dolosamente as condutas acima referidas, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
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Mais foram provados os factos seguintes:
Conforme o CRC, o arguido não tem antecedente criminal.
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À data do facto, o arguido era estudante do ensino universitário.
Declara ser agente imobiliário, auferindo mensalmente RMB$10.000,00, sem ninguém a seu cargo; tendo a licenciatura como habilitação académica.
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Os três ofendidos declararam desistir da queixa contra o arguido. A tal desistência de queixa não se opôs o arguido.
Os três ofendidos declararam renunciar ao direito de indemnização civil.
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Factos não provados:
Devido à desistência da queixa dos ofendidos C e D, não são necessários o ónus de prova e o conhecimento dos factos praticados pelo arguido contra eles.
Não há outros factos relevantes a ser provados.
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Convicção do tribunal:
O arguido prestou declaração na audiência de julgamento, confessando ter agredido os ofendidos, frisando, porém, ter agido em autodefesa uma vez que foram os três ofendidos quem o agrediram primeiro.
Os três ofendidos prestaram declaração ria audiência de julgamento, relatando o decurso do facto.
O relatório médico confirmou os ferimentos do ofendido B.
O ofendido B confirmou a sua recuperação, não sofrendo qualquer sequela.
Este Tribunal formou a convicção dos aludidos factos com base na análise sintética das declarações prestadas pelo arguido e pelas testemunhas na audiência de julgamento, provas documentais e outras provas examinadas na audiência de julgamento”; (cfr., fls. 149 a 149-v e 217 a 220).
Do direito
3. Vem A, arguido, recorrer do Acórdão proferido pelo Colectivo do T.J.B. que o condenou como autor material de 1 crime de “ofensa grave à integridade física” p. e p. pelo art. 138°, al. c) do C.P.M., na pena de 2 anos e 6 meses de prisão suspensa na sua execução por 3 anos.
No âmbito da motivação e conclusões do seu recurso, afirma, em síntese, o seguinte:
–– que a sentença recorrida faz uma errada qualificação jurídica dos factos praticados pelo recorrente ao caracterizar a agressão infligida ao ofendido B como ofensa grave à sua integridade física;
–– que não resultou provada nos presentes autos qualquer situação de “doença particularmente dolorosa”;
–– que é o próprio ofendido B que, por declaração emitida em 15/02/2011, vem declarar expressamente, por escrito, que, em resultado das lesões sofridas por força da conduta do ora recorrente, não sofreu efectivamente de doença particularmente dolorosa, encontrando-se completamente curado e recuperado;
–– que também não se pode considerar que a agressão lhe causou “doença permanente”.
–– que com a sua conduta, e até mesmo, com base no “princípio in dúbio pro reo”, não cometeu o crime de ofensa grave à integridade física, mas sim o crime de ofensa simples à mesma integridade, p. e p. pelo artigo 137°, n.° 1, do CP.;
–– que o Tribunal a quo deveria assim ter aceite a desistência da queixa formulada por aquele mesmo ofendido em sede de julgamento que não mereceu qualquer oposição por parte do ora recorrente, (cfr., Acta da respectiva sessão de julgamento de fls. 146 e 147), declarando-se extinto o procedimento criminal; e,
–– que assim não se entendendo, sempre se lhe deveria atenuar especialmente a pena, fixando-se-lhe uma pena de um (1) ano de prisão, suspensa na sua execução por dois (2) anos.
Por sua vez, em sede da sua Resposta ao recurso é o Exmo. Magistrado do Ministério Público de opinião que ainda que não seja de considerar que a agressão tenha causado ao ofendido “doença duradoura ou permanente”, não deixou de causar “doença dolorosa” e “perigo para a vida” do mesmo ofendido, sendo, assim, de se confirmar a qualificação jurídica operada pelo T.J.B..
E, no seu douto Parecer, considera o Ilustre Procurador Adjunto o que atrás já se deixou consignado, ou seja, que se deve qualificar a conduta do recorrente como a prática de um crime de “ofensa à integridade física agravada pelo resultado” do art. 139°, n.° 2 dp C.P.M..
Que dizer?
Vejamos.
Como “crimes contra a integridade física”, e na parte que aqui interessa, prevê o C.P.M. o que segue:
Nos termos do seu art. 137°, e sob a epígrafe “ofensa simples à integridade física”:
“1. Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. O procedimento penal depende de queixa.
3. O tribunal pode dispensar de pena quando:
a) Tiver havido lesões recíprocas e não se tiver provado qual dos contendores agrediu primeiro; ou
b) O agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor”.
Por sua vez, e sob a epígrafe “ofensa grave à integridade física”, preceitua o art. 138° do mesmo Código que:
“Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a
a) privá-la de importante órgão ou membro, ou desfigurá-la grave e permanentemente,
b) tirar-lhe ou afectar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais ou de procriação, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem,
c) provocar-lhe doença particularmente dolorosa ou permanente, ou anomalia psíquica grave ou incurável, ou
d) provocar-lhe perigo para a vida, é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos”.
E, sob a epígrafe “agravação pelo resultado”, estatui-se no seguinte art. 139° que:
“1. Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa e vier a produzir-lhe a morte é punido:
a) Com pena de prisão de 2 a 8 anos, no caso do artigo 137.º;
b) Com pena de prisão de 5 a 15 anos, no caso do artigo anterior.
2. Quem praticar a ofensa prevista no artigo 137.º e vier a produzir a ofensa prevista no artigo anterior é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos”.
Ponderando na factualidade dada como provada e no teor dos transcritos comando legais, cremos que a conduta do ora recorrente integra efectivamente a prática de um crime de “ofensa à integridade física agravada pelo resultado”, p. e p. no art. 139°, n.° 2 do C.P.M., acertada não nos parecendo a qualificação operada pelo Tribunal a quo no sentido da prática de um crime de “ofensa grave à integridade física” p. e p. pelo art. 138° do mesmo Código.
De facto, (e como já tivemos oportunidade de afirmar, cfr., v.g., as declarações de voto anexas aos Acórdãos deste T.S.I. de 28.10.2004, Processo n.° 250/2004 e de 15.12.2009, Processo n.° 473/2007), para o preenchimento do tipo de crime descrito no art. 138°, necessária é a existência de dolo não só quanto à “ofensa corporal”, mas também quanto ao “resultado” daquela, o que, “in casu”, não se me mostra verificado.
Com efeito, sem que o agente represente o evento, – a “doença dolorosa” ou “permanente”, ou o “perigo de vida” como resultado da agressão – ou pelo menos, o preveja, como consequência possível da sua conduta, (dolo eventual), inviável é responsabilizá-lo subjectivamente pelo dito resultado; (neste sentido, e citando outra jurisprudência e doutrina, cfr., v.g., os Acórdãos do S.T.J. de 22.03.1995 e de 02.12.1998, Processo n.° 047085 e 998237, da Relação do Porto de 31.10.2001, Processo n.° 0110559 e da Relação de Guimarães de 16.11.2009, Proc. n° 30/02.8GEGMR.G1, in “www.dgsi.pt”).
Na verdade, no crime em questão, o dolo tem que abranger não só o delito fundamental, (a agressão ou “ofensa à integridade física”), como as “consequências” que o qualificam.
Daí, afigurando-se que a factualidade dada como provada nada diz quanto ao dolo (ainda que “eventual”) do arguido quanto ao “resultado” da agressão, (não nos parecendo também possível extrair daquela que agiu o mesmo arguido de forma dolosa), (e, independentemente do demais), correcta não nos parece a sua condenação como autor de um crime de “ofensa grave à integridade física”, p. e p. pelo art. 138° do C.P.M..
Aqui chegados, e observado que foi o contraditório, vejamos então dos motivos que nos levam a considerar que cometeu o mesmo recorrente um crime de “ofensa à integridade física agravada pelo resultado”, p. e p. pelo art. 139° do C.P.M..
Pois bem, nos termos do art. 17° do mesmo C.P.M.:
“Quando a pena aplicável a um facto for agravada em função da produção de um resultado, a agravação depende sempre da possibilidade de imputação desse resultado ao agente pelo menos a título de negligência”.
Com efeito, dúvidas não existem que admissível não é que alguém seja criminalmente responsabilizado, (ainda que verificado o pressuposto da “causalidade adequada” da sua acção relativamente ao resultado), sem que se verifique que agiu com “culpa”. Na verdade, não nos parece que suscite dúvidas o preceituado no artº 12º do C.P.M. – integrado no Capítulo dos “pressupostos da punição” e – onde claramente se estatui que “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”, assim se consagrando um dos princípios basilares do direito penal, (o da culpa), segundo o qual toda a pena tem de ter como suporte axiológico – normativo uma culpa concreta – “nulla poena sine culpa”, (cfr., v.g., a anotação ao referido artº 12º no “C.P.M. Anotado” por L. Henriques e S. Santos).
Está assim tal matéria relacionada com aquilo a que no âmbito C.P. de 1886 se apelidava de “crime preterintencional” ou “praeter intencionum”, (tal como sucedia com o seu artº 361º § único e, em relação ao qual, como “exemplo de escola” desta modalidade de crime, se citava o caso de o agente ofender corporalmente outrem sem intenção homicida, mas as consequências das lesões causadas lhe ocasionar a morte).
Tal “agravação pelo resultado” chegou a ser justificada pela doutrina da “imputabilidade ou responsabilidade objectiva”, no sentido da desnecessidade de culpa relativamente ao evento agravante; (afigura-se-nos assim ter, em tempos, entendido o Prof. Cavaleiro de Ferreira nas suas “Lições de Direito Penal”, 1941, pág. 231).
Contudo perante as distorções e exageros que tal posição originava em termos de resultados práticos, (identificando-se com o direito canónico medieval, e em que o autor de um facto era, automaticamente, responsável por todos os “efeitos” pelo mesmo produzidos), desde cedo se começou também a pugnar pela erradicação desta “responsabilização automática”, ou “responsabilidade objectiva” em direito penal, exigindo-se, em face do atrás citado princípio basilar da culpa, a negligência do agente quanto à produção do resultado; (cfr. ainda no C. P. de 1886, o artº 1º, onde se faz referência a “facto voluntário” e o nº 7 do artº 44º em que se declarava como “não punível” os agentes que tivessem “procedido sem intenção criminosa e sem culpa”, e, claramente, na doutrina, E. Correia in, “Direito Criminal”, Vol I, 1963, pág. 439 e segs. e, F. Dias, na sua dissertação “Responsabilidade pelo resultado e crimes preterintencionais”, 1961, pág. 123 e segs., assim como na anotação que fez ao Ac. do S.T.J. de 01.07.70, in R.D.E.S., Ano XVII, nºs 2-3-4, 1970, pág. 253 e segs.).
Assim o faz hoje expressa e indubitavelmente, o atrás transcrito artº 17º do C.P.M..
Em essência, identifica-se no “crime preterintencional” três elementos:
- um “crime fundamental” praticado a título de dolo;
- um “crime resultado” mais grave do que se intencionava imputado a título de negligência; e,
- a “fusão” dos dois crimes em causa; (cfr., os aut. atrás citados, Damião Cunha no seu estudo “Tentativa e comparticipação nos crimes preterintencionais”, in R.P.C.C., Ano 2 - 4º, 1992, pág. 563 e, v.g., o Ac. do S.T.J. de 27.06.1990 in, B.M.J. nº 398º-336 e de 09.05.2001 in, C.J., Ano IX Tomo II, pág. 187).
E, como oportunamente salienta Paula R. de Faria – in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pág. 245 – “a par do desvalor do resultado, terá de existir um desvalor da acção, no qual avulta a previsibilidade subjectiva e a violação do dever objectivo de cuidado”.
Na verdade, a “negligência” não constitui apenas uma simples modalidade da “culpa”. Refere-se também ao desvalor da conduta e ao desvalor do resultado.
Assim, em essência, a questão deverá ser posta nos seguintes termos: mesmo que o agente não tenha agido com intenção de causar o “resultado” verificado, (doutra forma, teria cometido o crime de forma dolosa), podia e devia ter previsto que da sua conduta poderia resultar tal resultado, ou que era a sua conduta adequada a produzir tal resultado?
Atenta a facutalidade dada como assente, e sendo também de afirmar que lícito é a esta Instância, extrair ilações ou conclusões que operam o desenvolvimento dos factos provados, desde que não os altere, (cfr., v.g., os Acórdãos do Vdo T.U.I. de 28.05.2003, Processo n.° 8/2003 e de 15.12.2006, Processo n.° 40/2006), somos pois de opinião que afirmativa terá que ser a nossa resposta.
Com efeito, provado está (nomeadamente) que o ora recorrente, actuando concertadamente com mais dois indivíduos, agrediu o ofendido a soco e pontapé em vários partes do corpo, incluindo, a cabeça, que na dita agressão “usou artes marciais” de que era praticante e que só parou a agressão quando o ofendido “caiu no chão sem consciência”, evidente sendo também assim que causou àquele “perigo de vida”.
Clara e inequívoca é assim a violação de um dever objectivo de cuidado que sobre ele impendia e que conduziu à produção do resultado típico, sendo de se afirmar, igualmente, que essa produção do resultado típico deve ter-se como previsível, tendo em conta as circunstâncias apuradas.
De facto, a capacidade do recorrente para prever tal evento, por seu turno, deve ter-se como evidente, tendo em conta o homem médio “ pertencente à categoria intelectual e social e ao círculo de vida do agente” (cfr. Figueiredo Dias, Ternas Básicos da Doutrina penal, 354).
Há assim que se proceder à alteração em conformidade da qualificação jurídica operada pelo T.J.B., (prejudicada ficando assim a questão da validade da desistência da queixa pelo ofendido e consequente extinção do procedimento criminal).
No que toca à “pena”, vejamos.
Ao crime em questão, cabe, como se viu, a pena de 6 meses a 5 anos de prisão.
E, antes de mais, mostra-se-nos inviável uma “atenuação especial da pena”, pois que esta, atento os critérios do art. 66° do C.P.M., e como repetidamente tem este T.S.I. entendido, apenas deve ocorrer em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, ou seja, quando a conduta em causa se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo”; (cfr., v.g., Acórdão de 17.03.2011, Processo n.° 77/2011).”
Não sendo esta a situação sub júdice, mais não é preciso dizer sobre a pretensão apresentada.
Dest’arte, atenta a factualidade dada como provada, a dita moldura penal, e acolhendo-se o entendimento pelo Ilustre Procurador Adjunto assumindo no seu Parecer, considera-se adequada a pena de 1 ano de prisão, mantendo-se, a decretada suspensão da sua execução, já que, nesta parte, válidos nos parecem os argumentos expostos pelo Tribunal a quo.
Ponderando ainda nas necessidades de prevenção criminal, fixa-se em 2 anos o período de suspensão da execução da pena.
Tudo visto, resta decidir.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam conceder parcial provimento ao recurso, alterando-se a qualificação jurídico penal operada assim como a pena imposta ao recorrente.
Pelo seu decaimento, pagará o recorrente a taxa de justiça de 8 UCs.
Macau, aos 23 de Junho de 2011
José Maria Dias Azedo
Tam Hio Wa
Chan Kuong Seng (vencido, porque entendo que deve ser mantida a condenação, já feita pelo Tribunal “a quo”, do arguido recorrente como autor de um crime de ofensa grave à integridade física, porquanto dos factos provados descritos na fundamentação fáctica da decisão recorrida, no sentido de que o arguido recorrente usou as artes marciais de Taekwondo para agredir o ofendido B e só parou de o agredir quando o ofendido caiu no chão sem consciência, e no sentido de que o recorrente agiu de forma voluntária e consciente ao praticar dolosamente a conduta acima referida, se pode presumir judicialmente, sob aval do art.º 342.º do Código Civil de Macau, que o recorrente agiu na altura com dolo de ofender gravemente a integridade física do ofendido, intenção dolosa essa a que corresponde o comprovado resultado de lesão grave ao crânio cerebral médio (com fractura do osso temporal direito e hemorragia subaracnóidea) do ofendido. E no demais, julgo inexistir mais margem para redução do “quantum” da pena de prisão e do período de suspensão da execucação dessa pena).
Proc. 204/2011 Pág. 52
Proc. 204/2011 Pág. 1