Processo n.º 960/2010 Data do acórdão: 2011-7-7
(Autos de recurso penal)
Assuntos:
– art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal
– insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
– objecto probando do processo
– crime continuado
S U M Á R I O
1. Só ocorre o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal de Macau, quando houver alguma lacuna na investigação, por parte do tribunal a quo, do objecto probando do processo.
2. Não há crime continuado, se inexistir qualquer situação exterior que possa diminuir consideravelmente a culpa do arguido na prática dos crimes.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 960/2010
(Autos de recurso penal)
Recorrente arguido: A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I - RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida a fls. 58 a 61 dos autos de Processo Comum Singular n.° CR4-09-0377-PCS do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que o condenou como autor material, por dolo eventual, de dois crimes de emprego ilegal, p. e p. pelo art.o 16.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004, de 2 de Agosto, em cinco meses de prisão por cada um dos crimes, e, em cúmulo jurídico, em sete meses de prisão única, suspensa na sua execução por dois anos, com a condição de pagar seis mil patacas de contribuição pecuniária à Região Administrativa Especial de Macau, veio o arguido A, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para rogar a sua condenação como autor de um só crime continuado de emprego ilegal (por entender que a decisão recorrida padeceu do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada), e a dispensa ou revogação da condição ali imposta para a suspensão da execução da pena de prisão (por opinar que a Mm.a Juíza a quo não atendeu à sua situação económica, realmente incapaz de suportar tal contribuição pecuniária, e daí que a decisão recorrida também padecia, nesta parte, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) (cfr. o teor da motivação de recurso, apresentada a fls. 73 a 79 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso respondeu a Digna Delegada do Procurador junto do Tribunal recorrido, no sentido de redução apenas do montante de contribuição pecuniária para três mil patacas (cfr. a resposta de fls. 88 a 91).
Subidos os autos, emitiu o Digno Procurador-Adjunto parecer (a fls. 115 a 116), afirmando concordar com a posição vertida na resposta ao recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos legais, realizou-se a audiência de julgamento.
Cumpre agora decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Como ponto de partida para decisão do recurso, é de atender, desde já, a toda a factualidade descrita como provada na sentença recorrida (concretamente a fls. 59 a 59v dos autos), da qual decorre, naquilo que é pertinente à solução do recurso, que:
– o arguido contratou, no dia 29 de Abril de 2009, dois turistas vindos do Interior da China para transportar as mobílias da sua casa velha para a casa nova, mediante a condição de pagamento, numa só vez, de cento e cinquenta patacas de remuneração individual;
– o aguido é delinquente primário, tem por habilitações literárias o ensino secundário complementar, trabalha como mediador de seguros, com rendimento não apurado (pois o arguido, na audiência de julgamento então feita em primeira instância, não revelou o seu rendimento em concreto), e tem a mulher (que não está empregada) e dois filhos a cargo, um dos quais ainda está a estudar.
Do exame dos autos, não resulta que o arguido tenha apresentado contestação escrita à acusação.
Para instruir a sua motivação de recurso, o arguido juntou aos autos os seguintes elementos:
– uma mera fotocópia de um acordo sobre a questão de atribuição de um subsídio mensal no valor de três mil patacas pela companhia de seguros “ING Life Insurance Co (Macau) Ltd” ao senhor A como recém-ingressado representante de venda de seguros, no primeiro ano de trabalho (cfr. o teor de fls. 80 a 81);
– as meras fotocópias do bilhete de identidade de residente de Macau, de um cartão de identificação de deficiente intelectual passado por uma associação de encarregados de deficientes intelectuais de Macau e do cartão de identificação de estudante passado pela Direcção dos Serviços de Educação de Macau, referentes ao senhor B, nascido em 18 de Outubro de 1991 (cfr. o teor de fl. 82);
– uma mera fotocópia de um contrato provisório de arrendamento de uma fracção autónoma sita em Macau, do período de 1 de Maio de 2010 a 31 de Abril de 2011, pela renda mensal de três mil e quinhentas patacas, figurando aí o nome de A como arrendatário (cfr. o teor de fl. 83);
– uma mera fotocópia de um extracto mensal de conta (datado de 23 de Setembro de 2010) do cartão de crédito “platinum” do Banco da China, segundo o qual o titular do cartão A dispõe de vinte e seis mil patacas como limite de crédito e tem vinte e seis mil e tal patacas em dívida, a pagar até 19 de Outubro de 2010 (cfr. o teor de fl. 84);
– uma mera fotocópia de um extracto mensal de conta (datado de 20 de Setembro de 2010) do cartão de crédito “visa” de “Hongkong and Shanghai Banking Corporation Limited”, segundo o qual o limite de crédito de que dispõe o titular do cartão A é zero e este tem cinco mil e duzentas e tal patacas em dívida (cfr. o teor de fl. 85);
– uma mera fotocópia de um extracto mensal de conta (datado de 12 de Agosto de 2010) do cartão de crédito “visa classic” do Banco Nacional Ultramarino de Macau, segundo o qual o limite de crédito de que dispõe o titular do cartão A é doze mil patacas e este tem onze mil e oitocentas e tal patacas em dívida, a pagar até 7 de Setembro de 2010 (cfr. o teor de fl. 86).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
No fundo, na sua motivação de recurso, pede o arguido a aplicação, a seu favor, do regime punitivo do crime continuado, e a revogação ou a dispensa da contribuição pecuniária de seis mil patacas como condição da suspensão da execução da sua pena de prisão.
De antemão, cabe notar que como essas duas pretensões não têm nada a ver com o âmbito próprio do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada referido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal de Macau (CPP) (o qual, segundo o entendimento jurisprudencial do TSI em inúmeros arestos penais anteriores, só ocorre quando houver alguma lacuna na investigação do objecto probando do processo, lacuna que in casu inexiste, por a Mm.a Juíza a quo já ter dado por provada toda a matéria fáctica descrita na acusação, e, por outro lado, não chegou a ser apresentada qualquer contestação em nome do arguido à acusação), é descabida a invocação, pelo arguido, desse vício para sustentar a procedência das ditas pretensões suas.
É de resolver, pois, da questão de crime continuado.
Atenta a factualidade provada em primeira instância, crê-se que não se pode aplicar ao arguido a figura de crime continuado traçada no art.o 29.o, n.o 2, do Código Penal de Macau (CP), já que não se afigura plausível a existência de qualquer situação exterior que possa diminuir consideravelmente a culpa do arguido na contratação dos dois turistas chineses, embora essa contratação tenha ocorrido na mesma ocasião e para a mesma finalidade de transporte de mobílias.
E agora no tangente à questão de contribuição pecuniária como condição da suspensão da execução da pena.
A este propósito, é de censurar a conduta processual do arguido, ao não ter revelado primeiro à Mm.a Juíza a quo o seu rendimento em concreto como mediador de seguros, e já ter sabido “revelar” a sua situação económica em sede de apresentação do presente recurso, interposto da decisão condenatória da Primeira Instância.
Por aí se pode concluir que os documentos apresentados pelo arguido para instruir a sua motivação de recurso são extemporâneos, por não se referirem a factos de conhecimento superveniente, pelo que não podem ser apreciados nesta sede recursória.
Entretanto, atento o grau relativamente baixo do mal causado pela conduta deliquente do arguido (art.o 49.o, n.o 1, proémio, do CP), pois ele só empregou os dois turistas chineses a transportar mobílias da casa, é de reduzir o quantum da contribuição pecuniária para tão-só três mil patacas.
Em suma, procede apenas parcialmente o recurso, ainda que com fundamentação diversa da alegada pelo arguido.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em conceder parcial provimento ao recurso, reduzindo de seis mil patacas para somente três mil patacas o montante de contribuição pecuniária por que vinha condenado o arguido recorrente A em primeira instância como condição da suspensão, por dois anos, da execução da sua pena única de sete meses de prisão, mantendo, pois, intacto todo o restante decidido na sentença recorrida.
Custas do recurso pelo arguido na parte que decaiu, com três UC de taxa de justiça correspondente.
Fixam em mil e trezentas patacas os honorários do Exm.o Defensor Oficioso do arguido, a suportar em três quartos pelo arguido e em um quarto pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância, o qual, desde já, adianta o pagamento de todo o montante.
Macau, 7 de Julho de 2011.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
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