ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
1. Relatório
A intentou uma acção de condenação com processo ordinário contra B, C e D, pretendendo obter o pagamento das despesas de condomínio em dívida relativas às fracções detidas por estes e mencionadas nos autos.
Para o efeito, alegou o contrato celebrado com os réus e, como causa de pedir subsidiária, invocou a figura de gestão de negócios.
Por sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base, foi julgada parcialmente procedente a acção com base em relação contratual entre a autora e os réus (prestação de serviço), considerando-se igualmente verificados os pressupostos do enriquecimento sem causa. Não se pronunciou sobre a gestão de negócios invocada pela autora.
Inconformando com esta decisão, recorreram os réus para o Tribunal de Segunda Instância, que julgou por sua vez não ter havido acordo entre as partes e que, para haver gestão de negócios, faltava a actividade desenvolvida pela autora no interesse dos réus, pois que estes nunca pagaram as prestações, manifestando assim oposição à actividade da autora.
Acrescentou o Tribunal de Segunda Instância que se mostra um interesse próprio da autora, o que afastaria a gestão de negócios por não se verificar a actividade feita no interesse exclusivo dos condóminos e que, quanto ao enriquecimento sem causa, o mesmo não foi invocado pela autora como causa de pedir, pelo que estaria também afastado o respectivo regime.
Concluindo, foi concedido provimento ao recurso, julgando improcedente a acção.
Deste Acórdão vem agora a autora recorrer para o Tribunal de Última Instância, apresentando as seguintes conclusões:
1. Na fundamentação do douto Acórdão é referido que, “a gestão de negócios só se dá quando uma pessoa assume a direcção de negócio alheio no interesse e por conta do respectivo dono, sem para tal estar autorizada (artº 462º do CC). Quer dizer, a gestão sublinha a noção de intervenção por parte de alguém em nome e no interesse de outrem, de quem não é colhida autorização legal ou convencional prévia e para quem serão transferidos os proveitos e encargos da actividade. A gestão tem por pressuposto, então, que a actividade desenvolvida pelo gestor seja feita de harmonia com o interesse objectivamente considerado do dono do negócio e segundo a vontade real ou presumível deste;
2. No caso dos autos, se todos os donos das fracções autónomas do prédio vêm pagando as prestações mensais referentes ao encargo da conservação e fruição das partes comuns (resposta ao quesito 3º), já os RR nunca concordam com o montante das prestações fixado pela autora (resposta ao quesito 13º). Aliás, os RR nunca pagaram tais prestações apesar de todos os meses a autora lhes comunicar, verbalmente e por escrito, para o fazerem (alínea I da especificação). Ou seja, os RR deviam suportar as despesas correspondentes à sua quota parte no condomínio (artº 1332º, nº 1, do CC), mas o certo é que vêm manifestando a sua oposição a isso. Donde claramente resulta que os RR não aceitam que a actividade desenvolvida pela autora seja feita no interesse deles.”;
3. Mais adiante é ainda referido que, “De resto nem tampouco se poderia falar em gestão de negócios no campo da administração, porquanto, o administrador (mesmo quando actua somente de facto) age motivado pela realização de interesses que são seus e muito próprios, na mira da prossecução de um lucro próprio da actividade que desenvolve. Claro que se pode dizer que actuação do administrador de condomínio resolve os problemas dos condóminos naquilo que lhes é comum e que, nessa perspectiva, da sua acção advém uma utilidade para esses beneficiários. Sim, é certo. Simplesmente daí, não se segue que a actividade desenvolvida seja feita no interesse exclusivo dos condóminos. Na realidade o efeito útil para aqueles nasce de um sinalagma que deriva da contratualização da actividade comercial que aquela prossegue e que lhe proporciona a utilidade do lucro.”;
4. Pelo que, conclui o douto Tribunal a este respeito que “existe um interesse próprio do administrador de condomínio, circunstância que afasta o espectro da gestão de negócios.”;
5. Pese embora o devido respeito que a fundamentação do douto Acórdão nos merece, há no entender da ora Recorrente e pelas razões que abaixo se passarão a expor, um evidente erro na aplicação da lei substantiva aos factos dados como provados,
6. Conforme a factualidade dada por assente na sentença proferida pelo douto Tribunal Judicial de Base, i) é a Autora que tem vindo a suportar todas as despesas relativas às partes comuns, nomeadamente os gastos com a electricidade e água; ii) é a Autora quem tem vindo a assegurar a conservação e limpeza do edifício e bem assim a garantir a prestação de todos os serviços comuns tais como fornecimento de gás, intercomunicadores e recepção de televisão; a isto acresce ainda que a iii) Autora tem ao seu serviço 11 empregados assalariados para desempenharem funções requeridas para a conservação, manutenção e limpeza das partes comuns e, ainda, para guarda e segurança do edifício (vide respostas aos quesitos 6° a 9° da base instrutória);
7. Como é sabido, para que haja gestão de negócios são necessários os seguintes requisitos: primo) que alguém (gestor) assuma a direcção do negócio alheio; secondo) que o gestor actue no interesse e por conta do dono do negócio; tercio) que não haja autorização deste (artº 464º);
8. Quanto ao primeiro requisito, decorre dos factos dados como provados que a Autora, ora Recorrente assume desde 1996 a direcção de um negócio alheio, já que as partes comuns do edifício em questão pertencem aos condóminos, nos quais se inclui a Ré, ora Recorrida (cfr. nº 1 do artº 1323º do Código Civil);
9. Acresce que, tem praticado todos estes numerosos serviços para assegurar a manutenção das partes comuns do edifício, sempre à custa do seu acervo patrimonial e no interesse e por conta dos respectivos condóminos que são quem, nos termos da lei (cfr. nº1 do artº 1332º do Código Civil), deve suportar as despesas necessárias à conservação das partes comuns e ao pagamento dos serviços de interesse comum (segundo requisito);
10. Assim, dado que é indiscutível que toda a actividade desenvolvida pela Autora, ora Recorrente o é em conformidade com o interesse e vontade real (ou pelo menos presumível) dos Réus, ora Recorridos, facto que se comprova pelo excelente estado de conservação em que se encontram as partes comuns do [Endereço(1)], tem a ora Recorrente, nos termos do artº 462º do Código Civil, o direito de exigir da Ré – relativamente ao período a partir do qual esta passou a ocupar, como proprietária, as Fracções Autónomas – as respectivas prestações mensais em falta e ainda dos respectivos juros de mora;
11. É portanto condição sine qua non para que se verifique a figura da gestão de negócios, que a actividade do gestor se destine a proteger um interesse alheio, a satisfazer uma necessidade de outrem (do dominus), não bastando para tal o conhecimento de estar em jogo um interesse alheio;
12. Sucede porém que, ao contrário do deliberado pelo douto Tribunal de Segunda Instância, o instituto da gestão de negócios não exige que a actividade desenvolvida pelo gestor seja feita no interesse exclusivo dos condóminos;
13. Em bom rigor, “pode o gestor, no entanto, ao lado do interesse alheio, satisfazer também um interesse próprio: caso do habitante de um prédio que toma as providências necessárias para extinguir o incêndio que deflagrou no andar do vizinho, também para que ele não se propague ao seu andar; do gestor que cobra o crédito do dominus de quem ele também é credor; do comproprietário que tome as providências no seu interesse e no dos restantes condóminos, etc.” (cfr. Ennerccerus-Lehman, Tratado, trad. Esp. II, tomo 2º 162 pág. 343, G de Semo, est. Cit nº 13; sent Do Sup. Trib. de Cassação de Roma, de 13-III-1964, com. Por Sanduli, no Foro Italiano, 88, col. 866; Larenz 53, I pág. 267-681);
14. Ou seja, apesar de a ora Recorrente retirar (naturalmente!!!) algum proveito económico da actividade de administração de condomínio que presta aos co-proprietários dos edifícios onde exerce a aludida administração, é inegável que os verdadeiros beneficiados com aqueles actos de administração (nos quais se incluem todas as despesas tidas com o pagamento de serviços contratados a terceiros – tais como a segurança e a manutenção e reparação dos elevadores, intercomunicadores e zonas comuns do edifício e ainda os montantes dispendidos com os contratos de fornecimento de água e electricidade das aludidas zonas comuns do edifício), são os condóminos, co-proprietários das fracções autónomas localizadas nos ditos edifícios, e não a ora Recorrente enquanto prestadora de serviços, cujo benefício económico se circunscreve a uma pequena parte do montante da despesa e dos custos da referida gestão;
15. Com efeito, a ora Recorrente atreve-se a afirmar que, não fora o supra referido serviço por si prestado e o edifício onde estão localizadas as fracções autónomas propriedade da Ré estaria, com grande probabilidade e à semelhança do que frequentemente acontece em Macau, dotado ao abandono e sujeito à natural degradação dos espaços sobre os quais não recaem obras de manutenção e ou reparação;
16. Posto isto, e ao contrário do que defendeu o Tribunal de Segunda Instância no Acórdão de que ora se recorre, entende a ora Recorrente que o instituo jurídico da gestão de negócios não está, certamente, circunscrito aos casos em que o gestor actua em exclusivo interesse do dominus, configurando igualmente as hipóteses em que para além do natural e obrigatório interesse daquele, é também prosseguido (ainda que de forma residual) o próprio interesse do gestor, que desta feita vê reconhecido (não recompensado) o altruísmo que o levou a actuar em nome doutrem;
17. Concluindo, e como forma de comprovar que a figura da gestão de negócios não é incompatível com o facto de o gestor, para além de actuar segundo o interesse do dominus, actuar também no seu próprio interesse invocamos o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal de 22 de Abril de 1986, publicado no B.M.J. nº 356º-352, no qual se lê que “Age regularmente como gestor de negócios e, portanto, segundo o interesse e a vontade real ou presumida do dono do negócio, o proprietário de um pronto-socorro que, após um despiste que provocou o internamento hospitalar da sua dona e condutora e dos familiares, remove o veículo da ravina onde caíra e o guarda na sua oficina, sem autorização desta.”
18. Caso os Meritíssimos Juízes do Tribunal de Última Instância venham a partilhar da opinião vertida no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, entendendo que as regras do instituto da gestão de negócios não teriam aqui aplicação – o que só por mera hipótese de raciocínio se concede – ainda assim estariam os Réus, ora Recorridos obrigados a pagar à ora Recorrente os montantes peticionados por força do disposto nas normas respeitantes ao enriquecimento sem causa, previstas nos artºs 467º e seguintes do Código Civil.
19. Conforme doutamente vertido na sentença do Tribunal Judicial de Base, que foi revogada pelo Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 6 de Outubro de 2011, de cujo o conteúdo ora se recorre, seria “aberrante e injusto que os Réus, condóminos, que beneficiaram dos diversos serviços prestados pela Autora, não estivessem obrigados a pagar-lhe a contrapartida, pois, ao não efectuarem o pagamento das prestações mensais fixas e previamente convencionadas, os Réus obtiveram uma vantagem patrimonial avaliável no montante peticionado, à custa do correspondente sacrifício económico suportado pela Autora.”;
20. De facto, como acrescentou ainda aquele Tribunal, ao não efectuar o pagamento das prestações supra referidas (respostas aos quesitos 16º a 21º), no montante peticionado pela ora Recorrente, aos Réus obtiveram, sem qualquer dúvida, uma vantagem patrimonial, do mesmo montante, à custa do correspondente sacrifício económico suportado pela entidade que administra o condomínio, ou seja, a ora Recorrente;
21. Durante todo o período em que não pagaram à ora Recorrente (resposta ao quesito 18º), as prestações a que estavam obrigados, os Réus evitaram despesas que lhes cabiam legalmente suportar, porquanto tem sido a Recorrente que, ao longo dos anos, tem pago todos os encargos relativos às partes comuns, como foi acima descrito;
22. Todos esses encargos foram exclusivamente suportados pela ora Recorrente à custa do seu acervo patrimonial, sem a necessária (e devida!!!) contrapartida por parte dos Recorridos, a quem, como condóminos, titulares das fracções identificadas na alínea B da especificação compete, nos termos da lei, suportar as respectivas quotas-partes nas despesas necessárias à conservação das partes comuns do edifício e nos pagamentos dos serviços de interesse comum;
23. Pelo que é manifesta a ausência de causa que justifique ou legitime o enriquecimento dos Réus, ora Recorridos;
24. Finalmente, reitera-se, que nunca houve por parte da Autora, ora Recorrente a intenção de prestar qualquer liberalidade aos Recorridos, uma vez que sempre lhe pediu o reembolso das despesas efectuadas (vide página 16 da sentença do T.J.B.);
25. Pelo que, subsidiariamente, a Ré, ora Recorrida sempre será responsável, ao abrigo dos artºs 467º e seguintes do Código Civil, pelo pagamento à Autora da quantia peticionada nos autos, acrescida dos respectivos juros de mora calculados à taxa legal, até efectivo e integral pagamento;
26. Sucede porém que, o douto Tribunal de Segunda Instância entendeu que a “autora não alicerçou a acção com os factos jurídicos concretos reveladores dessa causa petendi, isto é, do enriquecimento. Deveria a autora invocar a vantagem patrimonial dos enriquecidos (RR) contrapondo o seu empobrecimento relativamente ao património de que se viu privado. Não o fez porque como se sabe a importância do seu enriquecimento é sempre subsidiária (ou residual), isto é, só é possível se existir um meio alternativo para ressarcimento dos prejuízos, tal como, por exemplo, a declaração de nulidade, de anulação, de cumprimento. E como se viu a Autora não concentrou a sua atenção em torno da gestão de negócios.”2 ;
27. No entanto, não tem sido esta a posição maioritária da doutrina e jurisprudência, nomeadamente da jurisprudência Portuguesa, que defende uma posição diferente, conforme se comprova pelo extracto do acórdão nº 04377/08 proferido pelo Supremo Tribunal Central Administrativo Português no Acórdão em 19 de Janeiro de 2011 e que ora se cita, “A questão do enriquecimento sem causa invocada agora e apenas em sede de recurso, é de conhecimento oficioso, porque a proibição do enriquecimento ilegítimo é um princípio geral do Direito. Donde resulta que esta questão, que não foi colocada expressamente como objecto da acção (v. p.i.), pode fazer parte do recurso, ou melhor, pode ser apreciada oficiosamente em sede de recurso (tal como poderia em sede de 1ª instância), uma vez que o processo contém dados necessários. (…)" (sublinhado e itálico da responsabilidade da ora Recorrente);
28. Com efeito, a subsistir a posição assumida pelo Tribunal de Segunda Instância, estar-se-ia perante a circunstância de se admitir, por provado, o enriquecimento ilícito por parte dos Réus e ao mesmo tempo, negar-se o direito da Autora de se ver ressarcida e compensada dos montantes com que injustamente a Ré se locupletou;
29. Por esse facto, entende a Autora que, dadas as características do instituto do enriquecimento sem causa, ou seja, dada a sua função eminentemente subsidiária, que terá como fim último o impedimento de um enriquecimento ilícito de um sujeito que em nada contribuiu para esse mesmo enriquecimento, agiu bem o Tribunal Judicial de Base, quando oficiosamente, condenou os Réus no pagamento das quantias dispendidas pela Autora, a título de administração do condomínio.
30. Pelo contrário, o Tribunal de Segunda Instância, ao não aceitar, a supra referida condenação, invocando para esse efeito que o pedido subsidiário com fundamento no enriquecimento sem causa dos Réus deveria ter sido expressamente peticionado pela Autora, ora Recorrente, aplicou de forma errónea o regime do instituto do enriquecimento sem causa previsto nos artºs 467º e seguintes do Código Civil, violando desta forma o princípio geral de Direito de proibição do enriquecimento ilícito, que deve estar subjacente a todas as relações jurídicas;
31. É exactamente perante esta situação, que deve funcionar o mecanismo da natureza subsidiária da obrigação “de restituir o enriquecimento isto é: o mecanismo do artº 468º não funciona quando o empobrecido (a Autora, ora Recorrente) tiver outro meio de ser restituído ou outra forma de ser indemnizado pelo seu prejuízo.” (Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, Edição da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Vol. 2º, Lisboa 1980, página 69). (sublinhado da responsabilidade da ora Recorrente);
32. Mecanismo esse, que por razões de manifesto interesse público e de segurança do tráfego jurídico, deverá sobrepor-se ao invocado princípio do dispositivo ou da disponibilidade objectiva, que no entender do douto Tribunal de Segunda Instância justifica a revogação da sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base e ao mesmo tempo o impedimento de a Autora ser ressarcida a título de enriquecimento sem causa;
33. Como é sabido, o douto Tribunal de Segunda Instância teria de ter acatado acima de tudo o comando legal, ou seja, a acção de enriquecimento não poderia ser utilizada sempre que quedem ao empobrecido, outros meios para se defender;
34. Não obstante, quando através do enriquecimento se obtenham resultados mais favoráveis, fica nesse campo aberta a porta ao enriquecimento, uma vez que a subsidiariedade não é então completamente afastada”. Esta é aliás a opinião do Professor Antunes Varela, Das Obrigações em Geral cit., I, páginas 383-384;
35. Por outro lado, cabe ainda referir que a mais recente jurisprudência portuguesa tem entendido não ser necessariamente necessária a prova do empobrecimento da Autora, mas tão só a prova de que os Réus viram o seu património ser consideravelmente aumentado porquanto desde 1996 que não suportam qualquer tipo de despesa relacionada com o condomínio do edifício onde estão localizadas as fracções autónomas melhor identificadas no quesito 2;
36. Assim, conforme decidiu a Relação de Lisboa (Ac. 05.12.1996, BMJ, 462, p. 478), “O direito contra o enriquecimento sem causa visa directamente remover o enriquecimento, sendo indirecto e eventual o objectivo da remoção do dano daí resultante. O que provoca a reacção de lei é a vantagem ou aumento injustificado do património do enriquecido e não a possível perda ou diminuição verificada no património do empobrecido pelo facto de o direito perdido não ter chegado a entrar no património do enriquecido. O princípio geral do artº 473º do Código Civil teoriza – “enriquecer à custa de outrem” e não “enriquecer à custa” do empobrecimento “de outrem”; o que conta, não é assim o empobrecimento da vítima por causa da lesão patrimonial, como acontece na responsabilidade civil, mas sim o enriquecimento injusto à custa de outrem. Sob esse prisma, o empobrecimento aqui será de presumir em resultado de interesses que inspiram a vida comum, ponderadas as máximas de experiência comum” (sublinhado e itálico da responsabilidade da Recorrente);
37. Por isso, as causas referidas no nº 2 do artº 467º do Código Civil são meramente exemplificativas e não taxativas (cfr. Antunes Varela, CC Anotado, vol. I, p. 402);
38. Além disso, resulta do disposto no artº 473º do mesmo Código, designadamente da expressão “tudo quanto se tenha obtido” não ser necessário uma efectiva diminuição do património, bastando que se verifique um enriquecimento indevido à custa de outrem, já que “nem sempre a obtenção de vantagem de alguém à custa de outrem se exprime no empobrecimento correlativo do património do lesado” (Antunes Varela, ob. cit., p.410);
39. Neste sentido, decidiu o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Março de 1999 (CJSTJ, I, p. 172) – onde se lê “A intervenção ou ingerência na esfera jurídica alheia pode ser facto constitutivo de responsabilidade civil, segundo os critérios gerais do artº 483º do Código Civil. O enriquecimento por intervenção, que constitui uma categoria autónoma do enriquecimento sem causa, surge quando alguém obtém um enriquecimento através de uma ingerência em bens alheios, traduzida, designadamente, no uso e fruição dos mesmos. Mesmo que o proprietário, se acaso não tivesse ocorrido tal intromissão ou interferência, nenhum proveito tirasse dos bens, sempre o intrometido estará obrigado a indemnizá-lo do valor dos frutos que obteve à custa desses bens ou do valor do uso que deles fez, restituindo-lhe, pois, o valor de exploração”;
40. Pelas razões supra expostas, o Douto Acórdão recorrido aplicou de forma errada a lei substantiva, violando o disposto nos artºs 458º a 466º e 467º a 476º do Código Civil.
Os réus não apresentaram contra-alegações.
Foram corridos os vistos.
Cumpre decidir.
2. Os Factos Provados
Nos autos foram dados como assentes os seguintes factos:
- A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à administração de imóveis e condomínios (alínea A da Especificação).
- Os 1° e 2° Réus são promitentes – adquirentes das fracções autónomas E e F e possuidores com uso e fruição das fracções autónomas A, B, C e D, [Endereço(1)], descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXX, a fls. 34 do Livro BXXXA, fracções essas que se destinam a instalação de escritórios, estando nelas sediadas a E, D, bem como várias empresas comerciais pertencentes aos 1° e 2° Réus, pelo menos desde Junho de 1996 (alínea B da Especificação).
- O referido edifício ocupa uma área de 6480.0000 metros quadrados; é composto por cave, rés-do-chão, sobreloja e 22 andares; sendo integrado por 661 fracções autónomas e foi construído pela F, , com sede na [Endereço(2)] (alínea C da Especificação).
- Concluída a sua construção, aquela sociedade iniciou a comercialização das várias fracções autónomas que compõem o edifício, através da empresa de mediação imobiliária, G (alínea D da Especificação).
- Que, simultaneamente, se responsabilizou pela administração, conservação e manutenção das respectivas partes comuns (alínea E da Especificação).
- G, porque não estava vocacionado para administrar prédios, mal iniciou as vendas das fracções autónomas, acordou com a Autora no sentido de esta passar a gerir e administrar o edifício (alínea F da Especificação).
- Foi com o conhecimento dos RR. que a Autora começou praticar actos correspondentes ao cargo de administrador ; 0 condomínio do edifício (alínea G da Especificação).
- A Autora pratica actos correspondentes ao cargo de administrador do condomínio do edifício, desde Junho de 1996 até à presente data (alínea H da Especificação).
- Todos os meses, a Autora comunica verbalmente e por escrito aos Réus para que entregue as prestações mensais pela conservação e fruição das partes comuns (alínea I da Especificação).
Da Base Instrutória:
- Foi com o conhecimento de todos então promitentes – adquirentes das fracções que compõem o e edifício, que a Autora começou a praticar actos correspondentes ao cargo de administrador do condómino do edifício referido em B) dos factos assentes (resposta ao quesito 2º).
- Todos os ocupantes das várias fracções autónomas, com excepção dos Réus, têm vindo a entregar mensalmente as prestações pela conservação e fruição das partes comuns à Autora (resposta ao quesito 3º).
- A Autora fixou o valor das prestações mensais pela conservação e fruição das partes comuns, correspondentes às seis fracções autónomas identificadas em B) dos factos assentes, no montante de MOP$1.80 por pé quadrado (resposta ao quesito 4º).
- A Autora tem vido a suportar todas as despesas relativas às partes comuns, nomeadamente gastos com a electricidade e água (resposta ao quesito 6º).
- A Autora tem vindo a assegurar a conservação e limpeza do edifício (resposta ao quesito 7º).
- A Autora tem vindo a garantir a prestação de todos os serviços comuns tais como fornecimento de gás, intercomunicadores e recepção de televisão, em relação aos blocos de habitações (resposta ao quesito 8º).
- A Autora tem ao seu serviço 11 empregados assalariados para desempenharem as funções requeridas para conservações, manutenção e limpeza das partes comuns e, ainda, para guarda e segurança do edifício (resposta ao quesito 9º).
- Com a presente acção a Autora já gastou MOP$20,000.00 a título de honorários e MOP$2,500.00 a título de despesas com a obtenção de documentos e traduções (resposta ao quesito 11º).
- À medida que cada uma das fracções eram alienadas, a Autora foi obtendo o acordo dos novos proprietários das fracções para a administração, conservação e manutenção das partes comuns (resposta ao quesito 11°-A).
- Para a prossecução da sua actividade, a Autora contratou por diversas vezes os serviços de terceiros (resposta ao quesito 11°-B).
- A Autora tem também desenvolvido actividade no âmbito da assistência e manutenção dos elevadores (resposta ao quesito 11°-C).
- Provado o que consta da resposta ao quesito 4° (resposta ao quesito 12º).
- Os Réus nunca concordaram com o montante das prestações fixado pela Autora (resposta ao quesito 13º).
- Provado o que resulta das alíneas E) e F) dos factos assentes (resposta ao quesito 15º).
- Apesar do facto referido em H), a Autora nunca convocou os condóminos para a primeira reunião da assembleia - geral com vista a: i) escolha da administração; ii) aprovação do orçamento; iii) elaboração do regulamento; e iv) fixação do montante do seguro contra o risco de incêndio (resposta ao quesito 16º).
- A Autora nunca convocou a assembleia do condomínio nos meses de Janeiro de cada ano para discutir e apresentar contas e discutir e aprovar o orçamento das despesas (resposta ao quesito 17º).
- A Autora nunca presta contas com excepção dos meses de Setembro e Outubro de 2002 (resposta ao quesito 18º).
- A Autora nunca apresentou um regulamento do condomínio para discussão e aprovação (resposta ao quesito 20º).
- A Autora nunca convocou a assembleia – geral do condomínio para que esta fixasse o montante das prestações pela conservação e fruição das partes comuns a cargo da casa condómino (resposta ao quesito 21º).
- As facturas que a Autora enviou aos Réus não discriminam quais são as despesas certas e fixas e quais as despesas certas mas variáveis (resposta ao quesito 22º).
3. O Direito
Desde logo, é de notar que a ora recorrente, a autora, deixou cair os fundamentos principais da acção – a celebração de contrato entre as partes, invocando as figuras de gestão de negócios e de enriquecimento sem causa.
No que concerne à gestão de negócios, entende-se que a recorrente tem razão, ao dizer que não tem base legal a tese do Tribunal de Segunda Instância no sentido de que, por se encontrar um interesse próprio da autora e não se verificar a actividade feita no interesse exclusivo dos condóminos, estaria afastada a gestão de negócios.
Na verdade, exige-se um interesse do dono do negócio, mas não está afastado que, ao lado deste, também possa coexistir um interesse do gestor.
O que se importa é que a actividade do gestor não decorra em seu exclusivo interesse, tendo também de prosseguir o interesse do dono do negócio.
Nos termos do art.º 458.º do Código Civil de Macau, “dá-se a gestão de negócios, quando uma pessoa assume a direcção de negócio alheio no interesse e por conta do respectivo dono, sem para tal estar autorizada”.
Dai que são requisitos da gestão de negócios:
- Alguém (gestor) assume a direcção de negócio alheio;
- O gestor actue no interesse e por conta do dono do negócio; e
- Não há autorização para a actuação do gestor.
A lei é muito clara no sentido de exigir que o gestor actue no interesse e por conta do dono do negócio, sendo de afastar, sem dúvida, a figura no caso de o gestor agir no exclusivo interesse próprio.
Pode haver, no entanto, gestão de negócios se o gestor actuar no interesse alheio e, também, no seu próprio interesse?
Afigura-se que a resposta deve ser positiva.
No entendimento de Vaz Serra, “se o agente quer gerir, ao mesmo tempo, o negócio alheio e o seu próprio, nem por isso deixa de haver gestão de negócios, pois existe, quanto ao interesse alheio, a intenção de o gerir como tal, e isso não é privado de importância pelo facto de se ter querido também gerir um negócio próprio”.3
Na lição de Antunes Varela, para haver gestão de negócio, “é necessário que o gestor actue no interesse, e ainda por conta, do dono do negócio (com animus negotia aliena gerendi), que a sua intervenção decorra intencionalmente em proveito alheio e não em exclusivo proveito próprio”.
E “pode o gestor, ..., ao lado do interesse alheio, satisfazer também um interesse próprio: caso do habitante de um prédio que toma as providências necessárias para extinguir o incêndio que deflagrou no andar do vizinho, também para que ele se não propague ao seu andar; do gestor que cobra o crédito do dominus de quem ele também é credor; do comproprietário que toma providências no seu interesse e no dos restantes condóminos; da companhia de caminhos de ferro que toma medidas para impedir o desabamento de prédio contíguo à via, não só no interesse do proprietário do imóvel, mas também para proteger a segurança dos passageiros a seu cargo”.4
Para Almeida Costa, “na hipótese de se gerir, ao mesmo tempo, um negócio alheio, como tal, e um negócio próprio, nem por isso deixa de haver gestão de negócios quanto ao primeiro. É discutido, porém, se deve estabelecer-se, para o efeito, a reserva de que só existirá gestão desde que não se verifique a impossibilidade de gerir um negócio sem o outro.
Parece preferível a solução negativa, admitindo-se ainda nessas situações a gestão de negócios no que respeita ao interesse alheio. Represente-se o exemplo de A, vizinho de B, fazer obras na casa deste a fim de evitar que ela, ruindo, danifique a sua própria casa. Assim, não existirá ou existirá gestão de negócios, evidentemente na parte relativa ao interesse de B, conforme A efectue as reparações apenas para defesa do seu interesse ou no interesse de ambos. Reconhece-se que, do ponto de vista prático, pode ser algumas vezes difícil a averiguação, quando a actividade do agente satisfaça simultaneamente o seu interesse e o de terceiro, mas aquele a realizasse mesmo que procurasse tão-só a protecção do seu interesse. Na dúvida, afigura-se razoável concluir pela gestão, que, as mais das vezes, corresponde às intenções do agente”.5
Citando tais doutrinas, é de concluir pela possibilidade de coexistência no instituto de gestão de negócios dos dois interesses: o interesse do dono do negócio e o do próprio gestor.
De resto, prevendo a lei a gestão como actividade profissional do gestor, para efeitos da sua remuneração (art.º 464.º do Código Civil de Macau), dificilmente se poderia configurar a impossibilidade de haver também um interesse do gestor, ao lado do interesse do dono do negócio.
No caso sub judice, não parece exacto que a actividade da autora, ora recorrente, não tenha sido feita no interesse dos réus. O que decorre da matéria de facto é que tal actividade foi também feita nos interesse dos réus, pois a autora providenciou pela conservação, manutenção e limpeza do edifício e demais serviços, como fornecimento de gás, intercomunicadores, recepção de televisão, etc., tendo contratado 11 empregados assalariados para desempenharem as funções referidas e, ainda, para guarda e segurança do edifício, o que era do óbvio interesse dos réus.
O facto de os réus não terem pago as prestações exigidas não configura oposição à actividade da autora. O que indicia é a falta de vontade em pagar, porventura por discordância com as mesmas – ou por outro motivo – a resolver em sede de prestação de contas, mas não descaracterizando o requisito do interesse do dono do negócio.
Concluindo, afigura-se verificada, no nosso caso concreto, a gestão de negócios invocada pela recorrente.
E a procedência de tal fundamento prejudica o conhecimento da questão do enriquecimento sem causa, também suscitada pela recorrente.
4. Decisão
Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso, condenando os réus a pagar à autora, na proporção das respectivas percentagens ou permilagens das fracções, todas as despesas imputadas, incluindo o fundo comum de reserva, acrescidas de remuneração da autora, nos termos dos art.ºs 464.º n.º 2 e 1084.º n.º 2 do Código Civil de Macau, tudo com juros legais, a liquidar em execução de sentença, tendo como limite, quanto às despesas e remunerações, o pedido constante da alínea C-1) da petição inicial, que têm como termo final a data da propositura da acção.
Custas pelos recorridos em partes iguais.
Macau, 18 de Abril de 2012
Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
1 Aqui deve referir às pág. 267-268.
2 O texto do acórdão do Tribunal de Segunda Instância é: autora não alicerçou a acção com os factos jurídicos concretos reveladores dessa causa petendi, isto é, do enriquecimento. Deveria a autora invocar a vantagem patrimonial dos enriquecidos (RR) contrapondo o seu empobrecimento relativamente ao património de que se viu privado. Não o fez porque como se sabe a impetrância do enriquecimento é sempre subsidiária (ou residual), isto é, só é possível se inexistir um meio alternativo para ressarcimento dos prejuízos, tal como, por exemplo, a declaração de nulidade, de anulação, de cumprimento. E como se viu a Autora concentrou a sua atenção em torno da gestão de negócios.
3 Ver Vaz Serra, Gestão de negócios, no BMJ 66, p. 97 a 99, citando Ennecerus-Lehmann.
4 Ver Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, Vol. I, 10ª edição, p. 453 a 455 e também Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, p. 445 e 446.
5 Ver Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª edição, p. 476.
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Recurso Civil – Processo n.º 3/2012