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Processo nº 165/2011 Data: 12.05.2011
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “ofensa à integridade física”.
Erro notório na apreciação da prova.
Dispensa de pena.
Atenuação especial da pena.
Provocação.



SUMÁRIO

1. O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.

De facto, “é na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.

2. Provado não estando que houve “lesões recíprocas” ou “retorsão”, não pode haver dispensa de pena nos termos do art. 137°, n.° 3 do C.P.M..

3. Se a ofensa à integridade física na pessoa do ofendido ocorre após uma cuspidela deste no pescoço do arguido, razoável é entender que agiu este sob “provocação” daquele, adequada sendo a consideração que se verifica uma situação prevista no art. 130° do C.P.M. para efeitos de atenuação especial da pena.


O relator,

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Processo nº 165/2011
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. No T.J.B. e em audiência colectiva respondeu A, com os restantes sinais dos autos, vindo a ser condenado pela prática como autor de um crime de “ofensa simples à integridade física” p. e p. pelo art. 137°, n.°1 do C.P.M. na pena de 120 dias de multa, à taxa de MOP$100.00 por dia, perfazendo a multa global de MOP$12,000.00 ou 80 dias de prisão subsidiária assim como no pagamento de MOP$5,000.00 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais do ofendido B; (cfr., fls. 797 a 798-v).

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Inconformado o arguido recorreu.

Motivou para concluir que:
“1- O acórdão de que ora se recorre enferma de erro notório na apreciação da prova e de erro na aplicação da lei (Do quantum indemnizatório) (art.° 400 n.° 1 e n.° 2 alínea c) do C.P.P.);
2- Ficou provado que o ofendido cuspiu para o pescoço do recorrente, situação que, para um indivíduo comum é considerado, sem margem para dúvidas, como uma provocação e altera o estado psicológico de quem recebeu a cuspidela, sendo essa pessoa dominada por compreensível enervamento e emoção.
3- Essa atitude do ofendido, que foi dada como provada, deveria ter sido considerada como provocação, e o crime cometido pelo recorrente qualificado como “ofensa privilegiada à integridade física”, de acordo com o previsto no art.° 142° do Código Penal, o que origina que a pena aplicada devesse ter sido especialmente atenuada.
4- Por outro lado, também não foi tomado em conta que o recorrente é primário.
5- Afigura-se, assim, que a pena que lhe foi aplicada deveria ter obedecido aos critérios previstos nos artigos 67° e 45° do Código Penal, e ter sido reduzida para o mínimo legal.
6- Por último, o recorrente considera que atento o circunstancialismo envolvente a toda esta situação e, principalmente, atendendo à provocação efectuada pelo ofendido ao cuspir para o recorrente que a indemnização por danos morais a este concedida é excessiva e deverá ser reduzida para, pelo menos, metade do seu valor”; (cfr., fls. 752 a 758-v).

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Ao recurso respondeu o Exmo. Magistrado do Ministério Público e o ofendido B, pugnando pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 761 a 762 e 765 a 768).

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Admitido o recurso, vieram os autos a este T.S.I.

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Em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Acompanhamos, em termos essenciais. as criteriosas explanações da nossa Exma Colega (sendo certo que o M° P° se deve pronunciar, tão só, em relação à parte criminal).
E apenas tentaremos complementá-las num ou noutro ponto.
Vejamos.

O recorrente imputa ao douto acórdão o vício do erro notário na apreciação da prova.
Na sua perspectiva, com efeito, o Tribunal não teve em conta o condicionalismo previsto no art. 130° do C. Penal.

Trata-se de uma crítica descabida.

Apurou-se que, aquando do conflito, “ o ofendido cuspiu para o arguido, enquanto o arguido bateu com a sua cabeça na boca do ofendido ...”.
O que vale por dizer, desde logo, que não se provou que o ofendido tenha cuspido “ para o pescoço do recorrente”.
E não se pode concluir, também, que o acto do ofendido tenha precedido o do arguido.
Nessa circunstâncias, na impossibilidade de determinar a ordem cronológica das condutas, há que excluir o campo de aplicação do referido art. 130°.
Sempre estaria em causa, de qualquer forma, a diminuição sensível da culpa do agente que o mesmo pressupõe.

Poderia equacionar-se, então, “in casu”, a pertinência da al. a) do n°, 3 do art. 137° do citado C. Penal.

Essa alternativa, entretanto, esbarra com o facto de uma cuspidela não se dever ter como uma ofensa à integridade física (cfr., a propósito, Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbrincense, I, 204).

Subsiste, enfim, a questão da bondade da pena, no quadro da qualificação jurídico-criminal efectuada.
Nada de relevante se apurou em benefício do arguido.
A circunstância de ser primário, nomeadamente, tem um valor despiciendo.
Em termos agravativos, por outro lado, há que assinalar, o especial dever de não cometer o crime, dada a sua qualidade de agente da P.S.P..
O acórdão recorrido, optando pela pena de multa, fixou a medida concreta em um terço do limite máximo abstracto.
E tal medida, tudo ponderado, não pode ter-se como inadequada.
Mas não repugna aceitar, igualmente, uma redução da mesma no âmbito da moldura aplicável.

Este o nosso parecer”; (cfr., fls. 811 a 814).

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Cumpre decidir.
Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados os factos seguintes:
“Em 19 de Março de 2007, cerca das 2h00 à tarde, foi ocorrido um acidente de veículo entre o motociclo de matrícula ME-XX-XX conduzido por A (arguido) e o automóvel ligeiro conduzido por B (ofendido) perto do poste de iluminação n.°725C10 na Avenida do Corenel Mesquita da Taipa. Depois do acidente, o arguido saiu do carro, discutindo com o ofendido.
Na altura, o ofendido telefonou para o seu pai C para vir ao local e ajudar a resolver a questão, enquanto o arguido fez denúncia à Polícia. Quando C chegou ao local, discutindo com o arguido a questão da indemnização, mas as duas partes não conseguiram chegar ao acordo. Na altura, as duas partes envolveram-se na discussão.
2. Em seguida, o guarda de trânsito D chegou ao local, procurando aconselhar os dois para encontrar uma solução da questão. Quando o guarda D terminou o registo e colocou os respectivos documentos na caixa do seu motociclo, o arguido envolveu-se em conflito novamente com o ofendido e C. Na altura, o ofendido cuspiu para o arguido, enquanto o arguido bateu com a sua cabeça na boca do ofendido, ferindo os lábios do ofendido que sangraram imediatamente.
3. A seguir, o ofendido deslocou-se ao Centro Hospitalar Conde de S. Januário para tratar as suas lesões, segundo o peritagem do médico legal, há contusões em tecidos moles do lado esquerdo do lábio anterior (0,5cm) do ofendido, lesões essas são causadas por algum equipamento contundente ou análogos que necessitam de 5 dias para se restabelecer, constituindo a ofensa simples à integridade física do ofendido (cfr. o parecer da medicina legal clínica constante da fls. 59 dos autos, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido).
4. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, recorrendo dolosamente à força contra o ofendido, conduzindo à ofensa simples à integridade física do ofendido.
5. O arguido sabia bem que o seu acto era proibido e punido pela
lei.
*
Conforme o CRC do arguido, o arguido não tem antecedentes criminais.
O arguido é guarda da PSP, auferindo mensalmente cerca de MOP$ 24.000,00; tem esposa e duas filhas a seu cargo; tem como habilitações literárias o grau de bacharel.

Durante os cinco dias com lesões, o ofendido sentiu desconforto na mastigação de alimentos ou quando a ferida foi tocada”; (cfr., fls. 745 a 745-v e 793 a 795).

Do direito

3. Feito que está o relatório, e transcrita que também ficou a factualidade pelo Tribunal a quo dada como provada, vejamos se tem o recorrente razão.

Tanto quanto resulta das conclusões pelo recorrente produzidas a final da sua motivação de recurso, é o mesmo de opinião que o Acórdão recorrido “enferma de erro notório na apreciação da prova e de erro na aplicação da lei (Do quantum indemnizatório) (art.° 400 n.° 1 e n.° 2 alínea c) do C.P.P.)”, (cfr., concl.1°), pedindo também a atenuação especial ou redução de pena; (cfr., concl. 2° e 5°).

–– Quanto ao referido “erro notório”, é porém evidente que o mesmo não existe.

Como repetidamente tem este T.S.I. afirmado:

“O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”

De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.”; (cfr., v.g., Ac. de 27.01.2011, Proc. n° 470/2010, do ora relator)”.

No caso dos presentes autos, não se vislumbra que tenha o Colectivo do T.J.B. violado qualquer regra sobre o valor da prova tarifada, o mesmo sucedendo com as regras de experiência e legis artis.

Aliás, lendo-se a motivação e conclusões do presente recurso, também não se alcançam os motivos que levaram o recorrente a imputar ao Acórdão recorrido o vício em questão, mais não nos parecendo assim de consignar sobre a mesma.
–– Quanto à “pena”.

Em essência, diz o recorrente que foi “provocado” pelo ofendido, e que assim, a sua conduta, qualificada como crime de “ofensa simples à integridade física” devia antes ser qualificada como “ofensa privilegiada à integridade física”, com a pena especialmente atenuada, considerando também que, por ser primário, excessiva é a pena aplicada.

Vejamos.

O crime de “ofensa simples à integridade física” pelo qual foi o recorrente condenado vem previsto no art. 137° do C.P.M., onde se estatui o seguinte:

“1. Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

2. O procedimento penal depende de queixa.

3. O tribunal pode dispensar de pena quando:
a) Tiver havido lesões recíprocas e não se tiver provado qual dos contendores agrediu primeiro; ou
b) O agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor”.

Por sua vez, sob a epígrafe “ofensa privilegiada à integridade física” prescreve o art. 141° do mesmo Código que:

“A pena aplicável a uma ofensa à integridade física é especialmente atenuada quando se verificarem as circunstâncias previstas no artigo 130.°”.

E, nos termos deste “artigo 130°”:

“Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminua sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos”.

Atento o estatuído no art. 137° do C.P.M. e à factualidade dada como provada, cremos, antes de mais que, de facto, afastada está uma eventual “dispensa da pena”, (cfr., n.° 3).

Com efeito, provado não está que houve “lesões recíprocas”, (al. a) do n.° 3), o mesmo sucedendo com a “retorsão” (a que se refere a al. b) do mesmo n.° 3), pois que também não nos parece de considerar uma “cuspidela” como uma “ofensa à integridade física”.

–– Quanto à alegada “provocação” para efeitos de se dar como verificada uma “situação” a que se refere o art. 130° do C.P.M., vejamos.

Defende o recorrente que o ofendido o “provocou” porque lhe cuspiu para o pescoço.

Entende o ofendido que a matéria de facto dada como provada não explicita se foi ele que cuspiu primeiro ou se foi o arguido que o agrediu primeiro.

Cremos que a razão está do lado do arguido.

Lendo-se a factualidade provada, (essencialmente, na sua versão original, em língua chinesa, constante da sentença recorrida), mostra-se de concluir que a agressão do arguido no ofendido ocorreu após este lhe ter cuspido para o pescoço.

E, assim sendo, ainda que – como se disse – não seja de considerar uma “cuspidela” como uma “ofensa à integridade física”, a mesma não deixa de constituir uma “injúria”, pois que o acto de cuspir para (ou sobre) uma pessoa, atinge, necessariamente, a honra desta, afigurando-se-nos que verificada está a “situação” a que se refere o art. 130° do C.P.M. para que se considere que cometeu o arguido o crime de “ofensa privilegiada à integridade física”, devendo por isso ser especialmente atenuada a pena.

Nesta conformidade, atenta a moldura penal do art. 137°, n.° 1 do C.P.M., e os termos da atenuação especial prevista no art. 67° do mesmo código, crê-se que justa e adequada é uma pena de 90 dias de multa, à taxa diária de MOP$100.00, perfazendo a multa total de MOP$9.000,00 ou, 60 dias de prisão subsidiária, (prejudicada ficando assim a questão da redução da pena).

–– Quanto ao montante de MOP$5.000,00 fixado a título de indemnização por danos não patrimoniais do ofendido.

Pois bem, em sede de exame preliminar, e atento o preceituado no art. 390°, n.°2 do C.P.P.M., decidiu-se que não era tal segmento decisório passível de recurso; (cfr., fls. 815).

Motivos não havendo para se alterar tal entendimento, e outra questão não havendo a apreciar, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam conceder parcial provimento ao recurso (na parte crime em questão).

Custas pelo recorrente e recorrido na proporção dos seus decaimentos, com taxa de justiça individual de 4 UCs.

Macau, aos 12 de Maio de 2011
Jose Maria Dias Azedo
Chan Kuong SEng
Tam Hio Wa (Vencida com declaração de voto em anexo)


Processo nº 165/2011 (Autos de recurso penal)
Data: 12/05/2011

Declaração de voto

Vencida por seguintes razões:

Conclua-se dos factos provados pelo colectivo do TJB de que na altura, o ofendido cuspiu para o arguido, enquanto o arguido bateu com a sua cabeça na boca do ofendido, ferindo os lábios do ofendido que sangraram imediatamente.

Entendo que da referida matéria provada não se pode concluir que o recorrente/arguido estava numa situação que diminua sensivelmente a sua culpa, como prevista no art.130º do Código Penal.

Pelo que entendo deve ser mantida a pena condenada pelo Tribunal Judicial de Base, julgando improcedente o recurso.


A Segunda Adjunta

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Tam Hio Wa
Proc. 165/2011 Pág. 20

Proc. 165/2011 Pág. 1