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Processo n.º 230/2009 Data do acórdão: 2011-5-19
(Autos de recurso civil)
  Assuntos:
  – divórcio decretado na China
– revisão de sentença
– art.o 1199.o do Código de Processo Civil
– jurisdição de Macau
– acção especial de prestação de contas
– bens situados em Macau
– art.o 1546.o, n.o 1, do Código Civil
S U M Á R I O
1. Embora de acordo com o teor de um documento superveniente apresentado pelo Autor ora Recorrente, o Tribunal Popular Intermédio da Cidade de Zhuhai da Província de Cantão já tenha confirmado, em sede de recurso, a dissolução do casamento entre os ora Autor e Ré, isto, mesmo que se acredite na força probatória desse documento, não pode conduzir à procedência da acção especial de prestação de contas movida em Macau pelo Autor contra a Ré em relação aos bens situados em Macau.
2. Na verdade, enquanto não se mostrar tal Decisão Cível Chinesa já revista e confirmada na jurisdição de Macau nos termos previstos do art.o 1199.o, n.o 1, do Código de Processo Civil de Macau, o divórcio aí decretado não pode relevar em Macau, ainda que nos termos permitidos pelo n.o 2 do mesmo art.o 1199.o, se possa considerar provado que os ora Autor e Ré já se encontram efectivamente divorciados na jurisdição do interior da China.
3. Do exposto decorre que vigora ainda a aplicação, ao caso concreto dos autos, da norma do n.o 1 do art.o 1546.o do Código Civil de Macau, preceito este que é efectivamente impeditivo do provimento da acção de prestação de contas.
O relator por vencimento,

Chan Kuong Seng

Processo n.º 230/2009
(Autos de recurso civil)
  Autor (Recorrente): A (A)
  Ré (Recorrida): B (B)




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
Nos presentes autos de recurso civil n.o 230/2009 deste Tribunal de Segunda Instância, foi apresentado pelo M.mo Juiz Relator à discussão e deliberação do presente Tribunal Colectivo ad quem o seguinte douto Projecto de Acórdão:
– <<[…]
Relatório

1. A (A), propôs acção especial de prestação de contas contra B (B), alegando o que segue:
“1° O Autor e a Ré casaram em Zhuhai, na RPC, em 12/12/1986, sob o regime supletivo de bens, que corresponde ao da comunhão de adquiridos previsto no art.° 1607.° e ss. do Código Civil de Macau (cfr. doc. 1, que se dá aqui por integralmente reproduzido).
2° Em 13/9/2004, a ora Ré intentou uma acção de divórcio litigioso no Tribunal Popular da Zona Xiangzhou da Cidade de Zhuhai contra o Autor, pedindo que lhe fossem adjudicados todos os bens situados na RPC, descritos no doc. 2, que se dá por reproduzido para os devidos efeitos.
3° Acontece que, para além desses bens sitos na RPC, existem outros bens, que o casal decidiu comprar em Macau, designadamente:
(i) uma quota de 1/2 da fracção autónoma, designada por "5A" do 5.° andar "A", destinada à habitação, do prédio n.° ... da Alameda Dr. ......, descrito na Conservatória do Registo Predial (CRP) sob o n.° 2XXXX, a fls. 92, do Livro ..., inscrita a favor da Ré na mesma Conservatória sob o n.° 3XXXXG, com o valor matricial de MOP$123,216.00, adquirida em 28/12/2001 (cfr. fls. 16 da certidão da CRP ora junta como doc. 3);
(ii) uma quota de 1/2 da fracção autónoma, designada por "5B" do 5° andar "B", destinada à habitação, do prédio n.° ... da Alameda Dr. ......, descrito na CRP sob o n.° 2XXXX, do Livro ..., inscrita a favor da Ré na mesma Conservatória sob o n.° 3XXXXG, com o valor matricial de MOP$84,864.00, adquirida em 28/12/2001 (cfr. fls. 16 da certidão da CRP ora junta como doc. 3);
(iii) uma quota de 1/2 da fracção autónoma, designada por "1CE" do 1° andar "CE", destinada ao estacionamento, do prédio n.° ... da Alameda Dr. ......, descrito na CRP sob o n.° 2XXXX inscrita a favor da Ré na mesma Conservatória sob o n.° 3XXXXG, com o valor matricial de MOP$4,896.00, adquirida em 28/12/2001 (cfr. fls. 16 da certidão da CRP ora junta como doc. 3);
(iv) o veículo automóvel, matriculado sob o n.° MG-XX-XX, marca Mercedes Benz, modelo C200 e registado em 7/1/1997, com o valor actual de MOP150.000,00 (cfr. doc. 4);
(v) o veículo automóvel, matriculado sob n.° MH-XX-XX, marca Honda, modelo Odyssey M (E-RA3) A/T , registado em 24/2/2000, com o valor actual de MOP120.000,00 (cfr. doc. 5);
(vi) o veículo automóvel, matriculado sob n.° MH-XX-XX, marca Toyota, modelo Corolla GLI 4 Door Sedan Automatic, registado em 2/3/2000, com o valor actual de MOP140.000,00 (cfr. doc. 6).
4° A Ré ficou incumbida de comprar os bens supra referidos, bem como de constituir sociedades e/ou comprar quotas sociais em sociedades preexistentes, tendo o Autor confiado à Ré a sua administração (sem, que, no entanto, saiba qual a composição das receitas, a aplicação das despesas e o saldo actual dessa administração. )
5° Isto, porque a Ré se recusou a fazê-lo, quando tal lhe foi pedido.
6° Por outro lado, o Autor incumbiu a Ré de abrir e administrar contas bancárias na RAEM, nomeadamente, a conta n.° 4755 XXXX XXXX do Hong Kong Shanghai Bank S.A.R.L. e a conta n.° 0811XXXXXXXX do Banco da China, sem que, no entanto, saiba, até à data, qual a composição das receitas, a aplicação das despesas e o saldo actual dessa administração, dado que, também aqui, a Ré se recusou prestar-lhe contas.
7° Perante a recusa da Ré em prestar contas da administração dos bens supra identificados, o Autor procurou investigar a situação jurídica dos bens sujeitos a registo, tendo descoberto que a Ré prestou falsas declarações quanto ao regime matrimonial de bens do casal aquando da aquisição dos bens supra identificados (vide doc. 3 a 6).
8° Como se pode verificar, todos os bens acima referidos ingressaram no património do casal após a data da celebração do casamento e, como tal, são bens comuns dos cônjuges, cuja administração foi confiada à Ré pelo Autor nos termos do disposto no art.° 1546.°, n.° 2 do Código Civil de Macau (CCM).
9° A Ré violou, assim, o dever de prestação de contas previsto no art.° 401.° (Obrigações do mandatário) da "Lei dos Contratos da República Popular da China", adoptada e promulgada na segunda sessão do Congresso Nacional Popular, em 15 de Março de 1999 e
10° A Ré é também titular de outras contas bancárias em Macau que o Autor lhe pediu para abrir, provisionou e cuja administração lhe confiou, porém, o Autor não sabe, nem tem maneira de saber, quais os bancos em que tais contas foram abertas, nem qual a composição das receitas, a aplicação das despesas e o saldo actual dessa administração, dado que sempre a Ré se recusou prestar-lhe contas.
11° Acresce que, face ao sigilo bancário, o Autor não dispõe do poder para obter dos bancos a identificação de todas as contas bancárias objecto da presente acção de prestação de contas.
12° Neste quadro, requer-se ao Tribunal se digne ordenar a realização das diligências que considere adequadas à identificação das contas bancárias da Ré ou de que esta seja contitular, nomeadamente, oficiando os bancos locais e as sucursais dos bancos com sede no exterior no sentido de prestarem as informações necessárias à execução do presente pedido.
13° O Autor incumbiu, também, a Ré de constituir e adquirir quotas em sociedades comerciais em Macau.
14° Sucede que à semelhança do que fez em relação à Agencia de Viagens XX, a Ré declarou o regime da separação, como sendo o regime matrimonial de bens do casal (cfr. doc. n.° 7), pelo que a Conservatória do Registos Comercial e de Bens Móveis não pode fornecer ao Autor a lista das participações sociais que a Ré registou apenas em seu próprio nome.
15° Acresce que o Autor não sabe, ao certo, quantas sociedades e/ou quotas a Ré constituiu e/ou comprou, nem qual a composição das receitas, a aplicação das despesas e o saldo actual da administração que ela fez desses bens, dado que, também aqui, a Ré se recusou prestar-lhe contas, pelo que se requer a V. Ex.ª se digne oficiar a Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis no sentido desta prestar as informações à identificação dos bens registados em nome da Ré de cuja administração ora se requer a prestação de contas.

NESTES TERMOS e nos demais de Direito, deve a Ré prestar contas e ser condenada no pagamento de metade do saldo que venha a apurar-se da administração dos seguintes bens comuns do casal:
(i) uma quota de 1/2 da fracção autónoma, designada por "5A" do 5.° andar "A", destinada à habitação, do prédio n.° ... da Alameda Dr. ......, descrito na Conservatória do Registo Predial (CRP) sob o n.° 2XXXX, a fls. 92, do Livro ..., inscrita a favor da Ré na mesma Conservatória sob o n.° 3XXXXG, com o valor matricial de MOP$123,216.00, adquirida em 28/12/2001 (vide fls. 16 da certidão da CRP ora junta como doc. 3);
(ii) uma quota de 1/2 da fracção autónoma, designada por "5B" do 5° andar "B", destinada à habitação, do prédio n.° ... da Alameda Dr. ......, descrito na CRP sob o n.° 2XXXX, do Livro ..., inscrita a favor da Ré na mesma Conservatória sob o n.° 3XXXXG, com o valor matricial de MOP$84,864.00, adquirida em 28/12/2001 (vide fls. 16 da certidão da CRP ora junta como doc. 3);
(iii) uma quota de 1/2 da fracção autónoma, designada por "1CE" do 1° andar "CE", destinada ao estacionamento, do prédio n.° ... da Alameda Dr. ......, descrito na CRP sob o n.° 2XXXX inscrita a favor da Ré na mesma Conservatória sob o n.° 3XXXXG, com o valor matricial de MOP$4,896.00, adquirida em 28/12/2001 (vide fls. 16 da certidão da CRP ora junta como doc. 3);
(iv) o veículo automóvel, matriculado sob o n.° MG-XX-XX, marca Mercedes Benz, modelo C200 e registado em 7/1/1997, com o valor actual de MOP150.000,00 (vide doc. 4);
(v) o veículo automóvel, matriculado sob n.° MH-XX-XX, marca Honda, modelo Odyssey M (E-RA3) A/T , registado em 24/2/2000, com o valor actual de MOP120.000,00 (vide doc. 5);
(vi) o veículo automóvel, matriculado sob n.° MH-XX-XX, marca Toyota, modelo Corolla GLI 4 Door Sedan Automatic, registado em 2/3/2000, com o valor actual de MOP140.000,00 (vide doc. 6);;
(vii) o saldo da conta bancária n.° 4755 XXXX XXXX da sucursal do Hong Kong Shanghai Bank S.A.R.L.;
(viii) o saldo das conta bancárias, cujos números o Autor desconhece, existentes na sucursal do Hong Kong Shanghai Bank S.A.R.L ou em outros bancos com sede e/ou sucursal em Macau, designadamente:
1. Banco Tai Fung, S.A.R.L.;
2. Banco Weng Hang, S.A;
3. Banco Delta Ásia, S.A.R.L.;
4. Banco da América (Macau), S.A.;
5. Banco Seng Heng, S.A.;
6. Banco Luso Internacional, S.A.R.L.;
7. Banco Comercial de Macau, S.A.;
8. Banco Chinês de Macau, S.A.;
9. Banco Espírito Santo do Oriente, S.A.;
10. Banco Nacional Ultramarino, S.A.;
11. DBS Bank (Hong Kong) Limited;
12. Banco da China;
13. BNP Paribas;
14. Citibank, N.A.;
15. Standard Chartered Bank;
16. Banco de Desenvolvimento de Cantão;
17. International Bank of Taipei Company Limited;
18. Liu Chong Hing Bank Limited;
19. The Bank of East Asia Limited;
20. Banco Industrial e Comercial da China;
21. Hang Seng Bank Limited.”; (cfr., fls. 2 a 10).

*

Citada, a R. contestou.
Por excepção, invocando a ineptidão da petição inicial.
Por impugnação, alegou que:
“8° A. e R. são casados, mas no regime da separação de bens, facto que foi convencionado entre ambos, antes do casamento.
9° A R. oportunamente provará tal facto, tendo sido e sendo aquela a única razão, pela qual a R. sempre declarou e declara tal regime de bens quando e sempre que necessário, dentro ou fora da RA.E.M.
10° A R. sempre agiu na sua actividade empresarial independente do A., sendo falso, nomeadamente, que o "casal tenha decidido comprar quaisquer bens em Macau" e que o "A. tenha incumbido a R de constituir sociedades e/ou comprar quotas sociais e de abrir e administrar contas bancárias na RA.E.M.".
11° A verdade é bem diversa e o A. sabe-o bem.
12° A R é vice-gerente de uma empresa com sede em Zhuhai, a "珠海XX實業公司" ("Zhuhai XX Sat Ip Cong Si"), constituída em 13.08.1992 e registada sob o n° 44040XXXXXXXX, tudo conforme certidão notarial e fotocópia de documento registral, documentos que se juntam e se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais (Docs. n°s 2 e 3).
13° Toda a actividade desta empresa da R.P.C. é desenvolvida em Macau através de uma outra empresa, denominada "Companhia de Desenvolvimento Comercial XX, Lda.", (XX發展有限公司) da qual são sócios a R e C, (C) ambos residentes na RA.E.M. (Cfr. citado doc. n° 2, bem como certidão do Registo Comercial de Macau que se junta e se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais - Doc. n° 4).
14° Foi também a empresa da RP.C. que autorizou a R e o citado C (C) a adquirir, em nome individual - em 1997 (as fracções "5 A" e "5 B") e, em 2001, (a fracção "CE 1") - os bens imóveis a que o A. alude no art° 3° da p.i., onde a empresa de Macau passou a ter a sua sede social, (Cfr. citado doc. n° 2 e fotocópias dos contratos promessa que se juntam e se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais - Docs. n°s 5, 6 e 7);
15° Bem como foi a R autorizada a adquirir, em nome individual, o veículo automóvel com a matrícula MH-XX-XX que a R utiliza no dia a dia, por conta e sob autorização da citada empresa de Zhuhai (Cfr. citado doc n° 2).
Ora,
16° Como se disse, A. e R são casados no regime da separação de bens e, como tal, os bens adquiridos pela R, na RA.E.M., não fôra a situação especial a que supra se aludiu, sempre estariam sob o domínio e fruição da R, podendo deles dispôr livremente.
Mas mesmo que assim se não entenda, o que se admite sem conceder,
17° O certo é que, mesmo no regime da comunhão de adquiridos, sempre estaria o A. obrigado a participar por metade no activo, o que nunca aconteceu, como se referiu (Cfr. art° 1607° do C.C.);
18° Mostrando-se, por outro lado, ilidida a presunção a que se alude no art° 1606° do C.C., para efeitos entre os cônjuges.
19° Para que conste, nunca o casal decidiu comprar algo em Macau, sendo que o A. nem residência na RA.E.M. tem;
20° Nunca a R foi incumbida pelo A. de constituir qualquer sociedade ou de adquirir quotas sociais em sociedades preexistentes, pelo que, também, nunca lhe confiou a administração desses participações sociais; e
21° Nunca o A. incumbiu a R de abrir e administrar contas bancárias na RA.E.M., nomeadamente, aquelas a que alude no art° 6° da p.i., sendo falso e fruto de prodigiosa imaginação que alguma vez o A. as tenha provisionado com qualquer montante.
Forçoso se torna, pois, concluir,
22° Ou A. e R estão casados no regime da separação de bens, como convencionado, e como tal a R., face ao A., pode administrar e dispôr livremente dos bens que, nos termos e pelos motivos expostos, adquiriu na RA.E.M.;
23° Ou A. e R estão casados no regime da comunhão de adquiridos e, então, os bens que a R adquiriu na RA.E.M. estão, pelos motivos expostos, excluídos da respectiva comunhão, porquanto o A. não participou em nada para a respectiva aquisição.”; (cfr., fls. 42 a 47).

*

Após, resposta do A., e despacho saneador onde se julgou improcedente a invocada excepção da ineptidão da petição inicial, veio-se a proferir sentença julgando improcedente a acção e absolvendo-se a R. do pedido.

*

Em síntese, entendeu-se que, dado que o casamento entre A. e R. foi celebrado em ZHUHAI, e dado que eram então ambos aí residentes, aplicável era a Lei do Casamento da R.P.C., com base na qual, e não se provando a realização de convenção antenupcial, se devia presumir que os bens adquiridos na constância do matrimónio eram bens comuns do casal.

Seguidamente, e considerando-se que os bens em causa estão situados em Macau, entendeu-se aplicável a Lei de Macau, e, assim, dando aplicação ao estatuído no art. 1546°, n° 1 do C.C.M., conclui-se que a R. não estava obrigada a prestar contas, o que levou à referida decisão de improcedência da acção e consequente absolvição da mesma R. do pedido; (cfr., fls. 228-v a 230).

*

Inconformado com o assim decidido, o A. recorreu.
Em sede das suas alegações, conclui que:
“A. A dispensa da obrigação de prestar contas pelo cônjuge administrador prevista no art.° 1546.°, n.° 1 do Código Civil só vigora durante a constância do casamento.
B. Das decisões judiciais de fls. 144 a 149 (cópia certificada), 172 a 182 (cópia simples) e 211 a 221 (cópia certificada) resulta que o casamento entre as partes se dissolveu por sentença do Tribunal Popular da Zona de Xingzhou da Cidade de Zhuai, Província de Guangdong, de 16 de Junho de 2005.
C. À data da prolação da sentença recorrida em 12/02/2008, já não era aplicável à gestão do ex-cônjuge administrador o regime especial do art.° 1546° do Código Civil.
D. Dissolvido o casamento, como sucedeu no caso "sub judice", o ex-cônjuge administrador está obrigado a prestar contas ao autor/recorrente relativamente à administração do património comum.
E. Ao não considerar provado na fundamentação da sentença recorrida que o casamento entre as partes se dissolveu na pendência da acção, o Tribunal a quo não observou o disposto no artigo 380.°, n.°1 do CCM, e 562.°, n.° 3 do CPCM quanto à força probatória dos documentos de fls. 144 a 149 e 211 a 221, o que determinou a improcedência da pretensão do A.”; (cfr., fls. 241 a 246).

*

Contra-minutando, afirma a R. que:
“a) O recorrente intentou a presente acção de prestação de contas, estando pendente o seu matrimómio com a recorrida.
b) É hoje doutrina e jurisprudência dominantes que o cônjuge administrador não está constituído na obrigação de prestar contas ao outro cônjuge, na constância do matrimónio.
c) A acção intentada pelo recorrente visa precisamente que a recorrida lhe preste contas do período em que ambos foram casados.
d) Tal não se afigura à recorrida possível, nos termos da disposição invocada na decisão recorrida.
e) Está a correr, actualmente, processo de inventário (CV1-06-0027-CIV), no qual de novo se discute "... a avaliação dos patrimónios em participação, tendo em vista a determinação do titular e do montante do crédito na participação de qualquer dos ex-conjuges ".
f) A recorrida, foi, aqui, investida no cargo de cabeça-de-casal.
g) É neste processo, salvo melhor opinião, que o ora recorrente - uma vez decidida a questão da relação de bens do dissolvido casal - poderá exigir a prestação de contas por parte da recorrida, nos termos do art.° 886° do C.P.C..
h) Mas apenas quanto ao período ulterior à cessação da relação matrimonial.
i) Não, como pretende o recorrente, quanto ao período em que vigorava o casamento.”; (cfr., fls. 249 a ...2).

*

Cumpre deicidir.


Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados os factos seguintes:
“1. O Autor e a Ré casaram em Zhuhai, na RPC, em 12/12/1986.
2. Em 13/09/2004, a ora Ré intentou uma acção de divórcio litigioso no Tribunal Popular da Zona Xiangzhou da Cidade de Zhuhai contra o Autor.
3. O Autor e a Ré casaram sem convenção antenupcial.
4. Encontram se registados em nome da R. bens em Macau, designadamente :
(i) uma quota de 1/2 da fracção autónoma, designada por "5A" do 5.° andar "A", destinada à habitação, do prédio n.° ... da Alameda Dr. ......, descrito na Conservatória do Registo Predial (CRP) sob o n.° 2XXXX, a fls. 92, do Livro ..., inscrita a favor da Ré na mesma Conservatória sob o n.° 3XXXXG, com o valor matricial de MOP$123,216.00, adquirida em 28/12/2001;
(ii) uma quota de 1/2 da fracção autónoma, designada por "5B" do 5° andar "B", destinada à habitação, do prédio n.° ... da Alameda Dr. ......, descrito na CRP sob o n.° 2XXXX, do Livro ..., inscrita a favor da Ré na mesma Conservatória sob o n.° 3XXXXG, com o valor matricial de MOP$84,864.00, adquirida em 28/12/2001;
(iii) uma quota de 1/2 da fracção autónoma, designada por "1CE" do 1° andar "CE", destinada ao estacionamento, do prédio n.° ... da Alameda Dr. ......, descrito na CRP sob o n.° 2XXXX inscrita a favor da Ré na mesma Conservatória sob o n.° 3XXXXG, com o valor matricial de MOP$4,896.00, adquirida em 28/12/2001;
(iv) o veículo automóvel, matriculado sob o n.° MG-XX-XX, marca Mercedes Benz, modelo C200 e registado em 7/1/1997, com o valor actual de MOP150.000,00;
(v) o veículo automóvel, matriculado sob n.° MH-XX-XX, marca Honda, modelo Odyssey M (E-RA3) A/T , registado em 24/2/2000, com o valor actual de MOP120.000,00;
(vi) o veículo automóvel, matriculado sob n.° MH-XX-XX, marca Toyota, modelo Corolla GLI 4 Door Sedan Automatic, registado em 02/03/2000, com o valor actual de MOP140.000,00.
5. A Ré é titular de quotas sociais em sociedades comerciais em Macau.
6. A Ré é titular de contas bancárias na RAEM, nomeadamente, a conta n.° 4755XXXXXXXX do Hongkong and Shanghai Banking Corporation Ltd. e a conta n.° 0811XXXXXXXX no Banco da China.
7. A Ré declarou que era casada em regime de separação de bens aquando da aquisição dos bens supra identificados.”; (cfr., fls. 227-v a 228-v).

Do direito

3. Como se viu, dando aplicação ao estatuído no art. 1546°, n° 1 do C.C.M., entendeu o Mm° Juiz a quo que a R. não estava obrigada a prestar contas.

Vejamos se é de manter o assim entendido.

Estatui o art. 1543° do C.C.M. que:
“1. Cada um dos cônjuges tem a administração dos seus bens próprios.
2. Cada um dos cônjuges tem ainda a administração:
a) Dos proventos que receba por seu trabalho;
b) Dos seus direitos de autor;
c) Dos bens comuns por ele levados para o casamento ou adquiridos a título gratuito depois do casamento, bem como dos sub-rogados em lugar deles;
d) Dos bens que tenham sido doados ou deixados a ambos os cônjuges com exclusão da administração do outro cônjuge, salvo se se tratar de bens doados ou deixados por conta da legítima desse outro cônjuge;
e) Dos bens móveis, próprios do outro cônjuge ou comuns, por ele exclusivamente utilizados como instrumento de trabalho;
f) Dos bens comuns ou próprios do outro cônjuge, se este se encontrar impossibilitado de exercer a administração por se achar em lugar remoto ou não sabido ou por qualquer outro motivo, e desde que não tenha sido conferida procuração bastante para administração desses bens;
g) Dos bens comuns ou próprios do outro cônjuge, se este lhe conferir por mandato esse poder.
3. Fora dos casos previstos no número anterior, cada um dos cônjuges tem legitimidade para a prática de actos de administração ordinária relativamente aos bens comuns do casal; os restantes actos de administração só podem ser praticados com o consentimento de ambos os cônjuges.”

E, nos termos do art. 1546°, do mesmo C.C.M.:
“1. O cônjuge que administrar bens comuns ou próprios do outro cônjuge, ao abrigo do disposto nas alíneas a) a f) do n.º 2 do artigo 1543.º, não é obrigado a prestar contas da sua administração, mas responde pelos actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge.
2. Quando a administração, por um dos cônjuges, dos bens comuns ou próprios do outro se fundar em mandato, são aplicáveis as regras deste contrato, mas, salvo se outra coisa tiver sido estipulada, o cônjuge administrador só tem de prestar contas e entregar o respectivo saldo, se o houver, relativamente a actos praticados durante os últimos 5 anos.
3. Se um dos cônjuges entrar na administração dos bens próprios do outro ou de bens comuns cuja administração lhe não caiba, sem mandato escrito mas com conhecimento e sem oposição expressa do outro cônjuge, é aplicável o disposto no número anterior; havendo oposição, o cônjuge administrador responde como possuidor de má fé.”

Atento o assim estatuído, vejamos.

O referido art. 1546°, n° 1 do C.C.M. corresponde ao art. 1681°, n° 1 do anterior C.C. de 1966, e, comentando-o, afirmava A. Varela que o preceito em causa contém uma excepção à obrigação de prestar contas que normalmente recai sobre o administrador de coisa alheia e outra excepção à regra da responsabilidade civil, quer contratual quer extracontratual, que obriga o agente a indemnizar tanto os danos causados com dolo, como os resultantes da mera negligência.

É que, dizia o referido Mestre:
"As questiúnculas frequentes vezes nascidas da obrigação de prestar contas ou da apreciação da diligência do administrador poderiam perturbar de tal modo o bom entendimento entre os cônjuges e a paz familiar, que a lei civil prefere fazer vista grossa sobre a matéria, dispensando o cônjuge administrador daquela obrigação e só o considerando responsável pelos danos causados com dolo directo ou indirecto"; (in, R.L.J., Ano 115, pág. 126).

Sobre este assunto e na mesma linha, avança ainda Antunes Varela com a seguinte argumentação:
“Duas ordens de razões justificam o estatuto especial do cônjuge administrador, no que respeita à sua responsabilidade.
Por um lado, tomam-se em linha de conta as graves perturbações que as acções de indemnização de um dos cônjuge contra o outro, facilitadas pela obrigação periódica de prestação de contas, podem causar nas suas relações pessoais, em prejuízo da estabilidade familiar. (...)
Por outro lado, não se considera razoável aplicar a uma gestão tão camplexa como o do cônjuge administrador, chamado a curar simultaneamente de assuntos pessoais e patrimoniais, incumbido de zelar pelos interesses do outro cônjuge e dos filhos, os padrões normais de julgamento da administração isolada de bens alheios.”; (in, Dto Matrimonial, I, pág. 382).

No mesmo sentido, veja-se também Jacinto Bastos que em anotação ao preceito em causa, escreveu:
“1 O preceito faz excepção à regra geral de que a administração de bens alheios acarreta para o administrador a obrigação de prestar contas por essa actividade. Entendeu-se que exigir, neste caso, a prestação de contas, por um dos cônjuges ao outro, estaria em desarmonia com o sentimento de recíproca confiança que entre eles deve existir, podendo ser, até, que tal exigência viesse a motivar dissensões entre os cônjuges, com grave reflexo no ambiente familiar.”; (in, Notas ao Código Civil, VI, 1998, página 122)

Perante o assim exposto, e se nada mais houvesse, seria de se confirmar a decisão recorrida, pois que claro é o alcance do art. 1546°, n°1 do C.C.M., no sentido de, na constância do matrimónio, não ter a R. que prestar contas ao A., seu marido.

Porém, importa ponderar um outro aspecto.

Nos termos do art. 566°, n° 1 do C.P.C.M.:
“Sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições legais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir, deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da acção, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.”

Ora, in casu, e oportunamente, juntou o A. documentos que permitem dar por assente que o casamento com a R. está dissolvido por sentença proferida em 16.06.2005, pelo Tribunal Popular de XIANGZHOU, da cidade de ZHUHAI; (cfr., fls. 144 a 149).

E, nesta conformidade, de manter não é a sentença recorrida, pois que, face à dissolução do casamento entre a A. e R., de aplicar não é o mencionado art. 1546°, n° 1 do C.C.M..

Então, “quid iuris”?

Afirma a R. que é no processo de inventário que corre termos no T.J.B. que se poderá exigir à mesma a prestação de contas e apenas quanto ao período ulterior à cessação da relação matrimonial.

Sem prejuízo do muito respeito por outro entendimento, não nos parece a solução acertada.

Como se entendeu no Ac. do S.T.J. de ....03.2004, Proc. n° 04A364 (in “www.dgsi.pt.jstj.”), “Dissolvido o casamento por divórcio, o ex-cônjuge administrador que detenha a posse de bens comuns do casal e deles colha os seus frutos ou utilidades é obrigado a prestar contas ao outro ex-cônjuge, desde a data da propositura da acção de divórcio .”

De facto, a obrigação de prestar contas retrotrai-se à data da propositura da acção de divórcio, uma vez que, a essa data, se retrotraem os efeitos patrimoniais da dissolução do casamento, nos termos do art. 1644°, n° 1 do C.C.M., onde se preceitua que: “Os efeitos do divórcio produzem-se a partir da data em que a respectiva sentença transita em julgado ou a decisão se torna definitiva, mas retrotraem-se à data da proposição do processo quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges.”

Com efeito, quem administra coisa comum trata de negócios próprios e alheios, e a intenção da Lei ao estabelecer que os efeitos do divórcio se produzem a partir do transito da sentença, mas retroagem à data da propositura da acção quanto às relações patrimoniais, é de “evitar que um dos cônjuges seja prejudicado pelos actos de insensatez e de prodigalidade ou de pura vingança, que o outro venha a praticar, desde a proposição da acção, sobre valores do património comum”; (cfr., P. Lima e A. Varela, C.C. Anotado, Vol. IV, pág. 501).

Nesta conformidade, e certo sendo que a presente acção foi intentada em data anterior ao referido processo de inventário, onde, ainda nem sequer há pedido de prestação de contas, motivos não havendo assim para se não prosseguir com os presentes autos, meio especial e próprio para a pretensão já apresentada, há que se alterar a decisão recorrida, e, em sua substituição, decide-se que deve a R. prestar contas desde a data da intauração da acção que culminou com a dissolução do seu casamento com o A.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam conceder provimento ao recurso.
Custas pela R..
[...]>>.
Entretanto, como o Mm.o Juiz Relator acabou por sair vencido da votação então feita, cabe decidir do recurso em questão nos termos constantes do presente acórdão definitivo, lavrado pelo primeiro dos Juízes-Adjuntos.
Para o efeito, há que, desde já, converter em definitivo todo o teor dos Ponto 1 (“Relatório”) e 2 (“Dos factos”) do douto Projecto de Acórdão acima transcrito.
Entretanto, é de considerar também os seguintes elementos coligidos do exame dos presentes autos, devido à sua pertinência à solução do recurso sub judice:
– A acção especial de prestação de contas, subjacente à presente lide recursória, foi movida pelo Autor em 26 de Novembro de 2004 (cfr. o carimbo de entrada da respectiva petição a fl. 2 dos presentes autos correspondentes);
– De acordo com as duas únicas alíneas A) e B) dos factos assentes descritos no despacho saneador lavrado em 17 de Março de 2005 a fls. 83 a 84v, “O Autor e a Ré casaram em Zhuhai, na RPC, em 12/12/1986” (alínea A)) e “Em 13/09/2004, a ora Ré intentou uma acção de divórcio litigioso no Tribunal Popular da Zona Xiangzhou da Cidade de Zhuhai contra o Autor” (alínea B));
– O acórdão de resposta aos quesitos formulados no saneador foi proferido pelo Tribunal a quo em 22 de Setembro de 2005 (a fls. 159 a 160 dos autos), segundo o qual foi provado que “o Autor e a Ré casaram sem convenção antenupcial” (cfr. a resposta ao quesito 1);
– Em 17 de Novembro de 2005, foi junto pelo Autor a fls. 211 a 221v dos autos um documento alusivo ao Acórdão Cível n.o 975 do Ano 2005, de 4 de Novembro de 2005, do Tribunal Popular Intermédio da Cidade de Zhuhai da Província de Cantão, por força do qual foi nomeadamente confirmada, em sede de recurso, a dissolução do casamento entre os ora Autor e Ré, como tal já vinha decidida pelo inferior Tribunal Popular da Zona Xiangzhou da Cidade de Zhuhai na acção de divórcio movida em Setembro de 2004 pela ora Ré contra o ora Autor;
– Em 2 de Dezembro de 2008, foi proferida pelo Tribunal Judicial de Base de Macau a sentença ora recorrida (a fls. 2... a 230), por força da qual foi julgada improcedente a acção de prestação de contas intentada pelo Autor, com absolvição da Ré do pedido, sem que tenha constado desse texto decisório qualquer referência ao acima identificado documento apresentado pelo Autor em 17 de Novembro de 2005.
Pois bem, juridicamente falando, é de naufragar efectivamente o recurso interposto pelo Autor da sentença da Primeira Instância, porquanto:
– embora de acordo com o teor do documento de fls. 211 a 221v (realmente superveniente à data de emissão do acórdão de resposta aos quesitos), a que se refere inclusivamente na conclusão B da alegação do recurso (a fl. 246), o Tribunal Popular Intermédio da Cidade de Zhuhai da Província de Cantão, no seu Acórdão proferido concretamente antes da emissão da ora recorrida sentença do Tribunal Judicial de Base de Macau, já tenha confirmado, em sede de recurso, a dissolução do casamento entre os ora Autor e Ré, isto, mesmo que se acredite na força probatória desse documento, não pode conduzir à procedência da acção de prestação de contas, uma vez que enquanto não se mostrar essa Decisão Cível do dito Tribunal Chinês já revista e confirmada na jurisdição de Macau nos termos previstos do art.o 1199.o, n.o 1, do Código de Processo Civil de Macau, o divórcio aí decretado não pode relevar em Macau, ainda que nos termos permitidos pelo n.o 2 do citado art.o 1199.o, se possa considerar provado que os ora Autor e Ré já se encontram efectivamente divorciados na jurisdição do interior da China por força do mencionado Acórdão Chinês, com o que, e independentemente de mais outra indagação por desnecessária ou prejudicada, há que decair – ao contrário do preconizado na conclusão D da alegação do recurso (a fl. 246) – a pretensão da procedência da subjacente acção especial de prestação de contas, posto que não tendo tal Decisão Cível Chinesa eficácia em Macau, vigora ainda – ante a matéria de facto já dada por provada pelo Colectivo a quo, e a abordagem jurídica, já correctamente feita pela Mm.a Juíza autora da sentença recorrida, da questão de aplicação da lei de Macau, por remissão da pertinente lei civil da China, aos bens situados em Macau – a aplicação, ao caso dos autos, da norma do n.o 1 do art.o 1546.o do Código Civil de Macau, preceito este que é efectivamente impeditivo do provimento do pedido do Autor.
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas do recurso a cargo do Autor.
Macau, 19 de Maio de 2011.
______________________
Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
______________________
Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)
______________________
José Maria Dias Azedo
(Relator do processo)
(Vencido nos termos do projecto de acórdão que – em 07.05.2009 – submeti à apreciação de Conferência e que foi incorporado no presente aresto).

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