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Processo nº 258/2011 Data: 23.06.2011
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “detenção de estupefacientes para consumo” e de “detenção de utensilagem”.
Insuficiência da matéria de facto para a decisão.
Erro notório na apreciação da prova.
Concurso de crimes.





SUMÁRIO

1. O vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão apenas ocorre quando o Tribunal (a quo) não emite pronúncia sobre toda a matéria objecto do processo.

2. O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.

3. De facto, é na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.

O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo














Processo nº 258/2011
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por sentença proferida pelo Mmo Juiz do T.J.B. decidiu-se condenar A, arguido com os sinais dos autos, como autor da prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de:
- 1 crime de “consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, p. e p. pelo art.º 14º da Lei n.º 17/2009, na multa de 45 dias, à taxa diária de MOP$60,00, o que perfaz o valor de MOP$2.700,00, ou 30 dias de prisão subsidiária; e de
- 1 crime de “detenção indevida de utensílio ou equipamento”, p. e p. pelo art.º 15º da Lei n.º 17/2009, na multa de 45 dias, à taxa diária de MOP$60,00, o que perfaz o valor de MOP$2.700,00, ou 30 dias de prisão subsidiária.
- em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na multa de 75 dias, à taxa diária de MOP$60,00, o que perfaz o valor de MOP$4.500,00, ou 50 dias de prisão subsidiária; (cfr., fls. 123-v a 124-v e 171 a 174 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformado o arguido recorreu.
Motivou para concluir nos termos seguintes:

“I. O Tribunal recorrido condenou o recorrente pela prática de um crime de consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas e dum crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento. Pelo crime de consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, o Tribunal recorrido condenou o recorrente na multa de 45 dias, à taxa diária de MOP$60,00, o que perfaz no valor de MOP$2.700,00, se esta não for paga ou substituída por trabalho forçado, seria convertida numa pena de prisão de 30 dias; e pelo crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento, o Tribunal recorrido também condenou o recorrente na multa de 45 dias, à taxa diária de MOP$60,00, o que perfaz no valor de MOP$2.700,00, se esta não for paga ou substituída por trabalho forçado, seria convertida numa pena de prisão de 30 dias.
II. Em cúmulo jurídico, o recorrente foi condenado na multa de 75 dias, à taxa diária de MOP$60,00, o que perfaz no valor global de MOP$4.500,00, se esta não for paga ou substituída por trabalho forçado, seria convertida numa pena de prisão de 50 dias.
III. Face à referida condenação, o recorrente considerou que existia vício na apreciação da prova efectuada pelo Tribunal recorrido e que a matéria de facto provada era insuficiente para suportar a decisão.
IV. Finda a audiência de julgamento, o Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
- Em 2 de Maio de 2008, às --H45 (sic), nas proximidades da entrada principal da Casa Real Hotel, os guardas do Corpo de Polícia de Segurança Pública interceptaram um Taxi que passou por ali (matrícula n.º MM-37-XX).
- Na dada altura, o arguido A estava sentado no banco traseiro do Taxi.
- O arguido A reparou que os guardas policiais estavam a efectuar a operação Stop e, em consequência, tirou duma caixa de cigarro um saco de objectos e deixou-o em cima do tapete do carro.
- Após o exame laboratorial, averigua-se que as substâncias encontradas no referido saco contêm Metanfetamina abrangida pela tabela II-B anexa ao Decreto-Lei n.º 5/91/M, com peso líquido de 0,252 gramas.
- Em seguida, os guardas encontraram no bolso das calças do arguido A uma caixa de dardos onde continha 8 sacos plásticos transparentes, 4 rolos de papel de prata e 1 palhinha plástica.
- Após o exame laboratorial, averigua-se que referidos os sacos plásticos transparentes e a palhinha plástica contêm Metanfetamina abrangida pela tabela II-B anexa ao Decreto-Lei n.º 5/91/M, e que os papéis de prata contêm Metanfetamina e Anfetamina abrangidas pela tabela II-B anexa ao mesmo Decreto-Lei.
- O arguido A detinha os aludidos estupefacientes, com o fim de consumo pessoal.
- A palhinha e os papéis de prata supramencionados foram utensílios para consumo de droga detidos pelo arguido A; e os referidos sacos plásticos foram utensílios usados pelo mesmo para embalar as drogas.
- O arguido A tinha perfeito conhecimento da natureza e características dos aludidos estupefacientes.
- O arguido agiu livre, voluntária, consciente e deliberadamente os actos supramencionados.
- O acto praticado pelo arguido não foi permitido por lei.
- O arguido sabia perfeitamente que a referida conduta era proibida e punida por lei.
- O arguido está envolvido num processo pendente (CR1-09-0399-PCS).
- O arguido tem como habilitações literárias o ensino secundário.
- Tem a esposa e uma filha a seu cargo.
- Na audiência de julgamento, o arguido guardou silêncio.
V. Pelos factos provados acima expostos, o Tribunal recorrido condenou o recorrente pela prática de um crime de consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas e de um crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento.
VI. Quanto ao crime de consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, o recorrente considerou que o Tribunal recorrido cometeu erro notório na apreciação da prova.
VII. Ao ser interrogado sobre o saco de drogas que tinha sido encontrado pelos guardas policiais no tapete do Taxi em que estava presente o recorrente, o recorrente negou que lhe pertencesse o referido saco de drogas. No decurso da audiência, o recorrente também negou que lhe pertencessem as drogas em causa.
VIII. Porém, o Tribunal recorrido ainda considerou que as aludidas drogas pertenciam ao recorrente, já que as duas testemunhas (os guardas policiais que na dada altura estavam a exercer as suas funções) disseram que tinham visto que o recorrente “tirou duma caixa de cigarro um saco de objectos e deixou-o em cima do tapete do carro”.
IX. O recorrente considerou que os depoimentos das duas testemunhas violaram notoriamente as regras da experiência comum, portanto, a credibilidade destes não devia ser admitida pelo Tribunal recorrido.
X. De facto, se as drogas em causa pertencessem ao recorrente e se o recorrente pretendesse evitar a atracção da atenção dos dois guardas policiais e de ser revisado pelos mesmos, no momento em que os polícias estavam a verificar o carro em que estava o recorrente, este não ia, de certeza, tirar da caixa de cigarro o dito saco de drogas e deixá-lo em cima do tapete do carro, mesmo em frente dos polícias. Este acto mostrava precisamente aos guardas policiais os factos criminosos praticados pelo recorrente, não conformando completamente com os modelos psicológico e comportamental comum dos criminosos.
XI. Mais, o recorrente foi revisado às 03H45 e, geralmente, naquele momento a iluminação era relativamente fraca, nomeadamente na parte interior do Taxi, pelo que surgiu-se a questão de se os dois guardas policiais conseguiram ou não observar aquilo que o recorrente estava a fazer no interior do carro.
XII. Não existe nos autos nenhuma prova que mostre que o saco plástico transparente encontrado no interior do carro contenha impressões digitais do recorrente.
XIII. Assim, verifica-se que neste caso existe erro notório na apreciação da prova, uma vez que o Tribunal recorrido deu como provado o facto acima exposto.
XIV. Por outro lado, o Tribunal recorrido condenou o recorrente pela prática do crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento, por ter considerado que os papéis de prata e a palhinha plástica encontrados na posse deste eram utensílios para consumo de droga.
XV. Entretanto, relativamente aos papéis de prata e à palhinha plástica, in casu, apenas foram apurados que a palhinha plástica continha Metanfetamina e que os papéis de prata continham Metanfetamina e Anfetamina. Assim sendo, surgiu-se a questão sobre a utilidade efectiva dos referidos papéis de prata e palhinha plástica, ou seja, se esses objectos foram utensílios para consumo de droga ou recipientes de droga.
XVI. Ora, verifica-se que neste caso existe vício indicado na al. b) do n.º 2 do art.º 400º do Código de Processo Penal, já que, apenas com base no facto provado acima exposto, o Tribunal recorrido considerou que o recorrente praticou o crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento”; (cfr., fls. 136 a 145 e 176 a 189).

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Respondendo, afirma o Exmo. Magistrado do Ministério Público que:

“1. O recorrente considerou que existia vício de erro notório na apreciação da prova, uma vez que o Tribunal a quo tinha reconhecido os factos apenas com base nos depoimentos das testemunhas, enquanto o local da ocorrência de factos e o teor dos depoimentos eram suficientes para gerarem dúvidas sobre a sua credibilidade.
2. Quanto ao facto relativo ao abandono de drogas pelo recorrente, nos termos das provas, as testemunhas responderam expressamente sobre a ocorrência dos factos presenciada.
3. Além dos depoimentos das testemunhas, as demais provas documentais e as circunstâncias do caso são compatíveis com isso.
4. Segundo os factos provados e os não provados da sentença a quo, não se verifica a contradição no reconhecimento de factos nem a contradição entre a conclusão e os factos, pelo que não existe o erro notório na apreciação da prova alegado pelo recorrente.
5. O recorrente ainda considerou que existia insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, porque apenas foram apurados que os papéis de prata e a palhinha plástica apreendidos continham estupefacientes, entretanto, surgiu-se a questão de se esses objectos foram utensílios para consumo de droga ou recipientes de droga.
6. De facto, a questão levantada pelo recorrente é inexistente, já que, na dada altura, as drogas não estavam embrulhadas nos papéis de prata e na palhinha plástica, além disso, quanto à forma daqueles objectos, especialmente, a palhinha, antes da alteração da sua forma, não dava para colocar as drogas, no sentido de facilitar a posse das mesmas.
7. Pois, verifica-se que neste caso não existem os vícios alegados pelo recorrente”; (cfr., fls. 147 a 148-v e 190 a 195).

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Admitido o recurso, vieram os autos a este T.S.I..

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Em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“A nossa Exma. Colega demonstra, cabalmente, a sem razão do recorrente.
E nada temos a acrescentar, de facto, às suas judiciosas considerações.
O arguido, ao invocar os vícios referidos no n°. 2 do art. 400° do C. P. Penal, mais não faz, realmente, do que manifestar a sua discordância em relação ao julgamento da matéria de facto, afrontando o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 114° do mesmo Diploma.
E isso, como é sabido, está-lhe vedado .

A qualificação jurídico-penal efectuada, entretanto, merece uma reflexão.

A douta sentença, na verdade, julgou verificada uma relação de concurso efectivo entre os crimes previstos nos arts. 14° e 15° da Lei n°, 17/2009.
Mas não se divisa, a propósito, uma diversidade relevante nos bens jurídicos tutelados.
E há que atentar, também, na construção típica do segundo ilícito, que pressupõe a detenção “com intenção de ...”.
É certo, todavia, que este Tribunal tem rechaçado, nesse âmbito, a tese de um concurso aparente (cfr., nomeadamente, ac. de 31-3-2011, proc. n°. 81/2011).
Este o nosso parecer”; (cfr., fls. 198 a 199).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão dados como provados os factos seguintes:

“Em 2 de Maio de 2008, às 03H45, nas proximidades da entrada principal da Casa Real Hotel, os guardas do Corpo de Polícia de Segurança Pública interceptaram um Taxi que passou por ali (matrícula n.º MM-37-XX).
Na dada altura, o arguido A estava sentado no banco traseiro do Taxi.
O arguido A reparou que os guardas policiais estavam a efectuar a operação Stop e, em consequência, tirou duma caixa de cigarro um saco de objectos e deixou-o em cima do tapete do carro.
Após o exame laboratorial, averigua-se que as substâncias encontradas no referido saco contêm Metanfetamina abrangida pela tabela II-B anexa ao Decreto-Lei n.º 5/91/M, com peso líquido de 0,252 gramas.
Em seguida, os guardas encontraram no bolso das calças do arguido A uma caixa de dardos onde continha 8 sacos plásticos transparentes, 4 rolos de papel de prata e 1 palhinha plástica.
Após o exame laboratorial, averigua-se que os referidos sacos plásticos transparentes e a palhinha plástica contêm Metanfetamina abrangida pela tabela II-B anexa ao Decreto-Lei n.º 5/91/M, e que os papéis de prata contêm Metanfetamina e Anfetamina abrangidas pela tabela II-B anexa ao mesmo Decreto-Lei.
O arguido A detinha os aludidos estupefacientes, com o fim de consumo pessoal.
A palhinha e os papéis de prata supramencionados foram utensílios para consumo de droga detidos pelo arguido A; e os referidos sacos plásticos foram utensílios usados pelo arguido para embalar a droga.
O arguido A tinha perfeito conhecimento da natureza e características dos aludidos estupefacientes.
O arguido agiu livre, voluntária, consciente e deliberadamente os actos supramencionados.
O acto praticado pelo arguido não foi permitido por lei.
O arguido sabia perfeitamente que a referida conduta era proibida e punida por lei.
O arguido está envolvido num processo pendente (CR1-09-0399-PCS).
Mais, foi apurada a situação económica pessoal do arguido:
O arguido tem como habilitações literárias o ensino secundário; é desempregado.
Tem a esposa e uma filha a seu cargo.
Na audiência de julgamento, o arguido guardou silêncio”; (cfr., fls. 121-v a 122 e 164 a 166).

Do direito

3. Vem A recorrer da sentença proferida pelo Mmo Juiz do T.J.B. que o condenou pela prática, em autoria e em concurso real, de um crime de “detenção de estupefacientes para consumo” e um outro de “detenção indevida de utensílio ou equipamento”, p. e p. pelos art°s 14° e 15° da Lei n.° 17/2009.

É de opinião que a decisão recorrida padece dos vícios de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” e de “erro notório na apreciação da prova”.

Cremos porém que razão não tem o ora recorrente.

Vejamos.

–– Quanto à alegada “insuficiência”.

Pois bem, em relação ao dito vício tem este T.S.I. entendido que o mesmo apenas ocorre quando o Tribunal (a quo) não emite pronúncia sobre toda a matéria objecto do processo; (cfr., v.g. o recente Acórdão de 02.06.2011, Processo n.° 198/2011).

No caso, assim não sucedeu, pois que o Mmo Juiz a quo emitiu pronúncia sobre toda a “matéria objecto do processo”, elencando (como se deixou transcrita) a factualidade que do julgamento resultou “provada”, indicando a que resultou “não provada” e, fundamentando adequadamente a sua decisão.

Aliás, diz o recorrente que o dito vício ocorre quanto à sua condenação pelo crime de “detenção indevida de utensílio ou equipamento” dado que “relativamente aos papéis de prata e à palhinha plástica, in casu, apenas foram apurados que a palhinha plástica continha Metanfetamina e que os papéis de prata continham Metanfetamina e Anfetamina. Assim sendo, surgiu-se a questão sobre a utilidade efectiva dos referidos papéis de prata e palhinha plástica, ou seja, se esses objectos foram utensílios para consumo de droga ou recipientes de droga”; (cfr., concl. XV).

Ora, tal não corresponde à verdade.

Com efeito, provado está que “A palhinha e os papéis de prata supramencionados foram utensílios para consumo de droga detidos pelo arguido A”.
Perante isto, mais não é preciso dizer para se reafirmar a solução que atrás se deixou explicitada.

–– Quanto ao “erro”.

Aqui, e em síntese, afirma o recorrente que negou os factos, e que a convicção do Tribunal, formada com base nos depoimentos das testemunhas, (agentes da P.S.P.), viola as regras da experiência.

Pois bem, no que tange ao vício ora em questão, repetidamente tem este T.S.I. afirmado que “o erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”

De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.”; (cfr., v.g., Acórdão de 02.06.2011 já citado).

E, atento o sentido e alcance do vício em questão, muito não é preciso dizer.

Na verdade, não se pode olvidar que as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento são objecto de livre apreciação, relevando aqui os principais (típicos desta fase processual) da oralidade e imediação.

Por sua vez, não nos parece que tenha havido violação das “regras de experiência”.

Considera o recorrente que “se as drogas em causa pertencessem ao recorrente e se o recorrente pretendesse evitar a atracção da atenção dos dois guardas policiais e de ser revisado pelos mesmos, no momento em que os polícias estavam a verificar o carro em que estava o recorrente, este não ia, de certeza, tirar da caixa de cigarro o dito saco de drogas e deixá-lo em cima do tapete do carro, mesmo em frente dos polícias. Este acto mostrava precisamente aos guardas policiais os factos criminosos praticados pelo recorrente, não conformando completamente com os modelos psicológico e comportamental comum dos criminosos” e que “o recorrente foi revisado às 03H45 e, geralmente, naquele momento a iluminação era relativamente fraca, nomeadamente na parte interior do Taxi, pelo que surgiu-se a questão de se os dois guardas policiais conseguiram ou não observar aquilo que o recorrente estava a fazer no interior do carro”.

Outra é a nossa opinião.

Com efeito, as invocadas “regras de experiência”, dizem-nos (exactamente) o contrário, isto é, que muitas das vezes, quando confrontados com uma situação de forte probabilidade de detenção em flagrante, tentam os delinquentes, a todo o custo, libertar-se dos estupefacientes que possuem a fim de não serem criminalmente responsabilizados.

Quanto à “fraca luminosidade”, ainda que seja de confirmar que os factos em questão ocorreram às 03H45, importa também ter em conta o “local” onde os mesmos ocorreram, nas proximidades da entrada principal da “Casa Real Hotel”, que, como é público e notório, não deixa de ser um local, no mínimo, com alguma iluminação, (ainda que às ditas horas), e que os mesmos ocorreram após intercepção do Taxi onde o recorrente seguia, o que demonstra que os agentes policiais estavam próximos do dito recorrente, (e certamente, sensibilizados para prestarem atenção ao que ocorria no interior do veículo, até mesmo por questões da sua própria segurança).

Daí, (e como nos parece, evidente), não ser de acolher o “ponto de vista” do recorrente.
*

Aqui chegados, uma outra questão importa resolver.

Como se viu, foi o ora recorrente condenado como autor da prática em concurso real de um crime de “detenção de estupefaciente para consumo” e de um outro de “detenção de utensilagem”.

Porém, não é de manter o assim decidido.

Vejamos.
Preceitua o art. 29°, n° 1 do C.P.M. que:
“O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.”
E, tanto quanto nos parece, e como já teve este T.S.I. oportunidade de afirmar, “ perfilha-se, pois, o chamado «critério teleológico» para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, atendendo-se assim ao número de tipos legais de crime efectivamente preenchidos pela conduta do agente, ou ao número de vezes que essa conduta preencheu o mesmo tipo de crime.”; (cfr., v.g., Ac. de 05.06.2003, Proc. n° 76/2003, e de 29.04.2010, Proc. n° 63/2010).
Com efeito, e como já ensinava Eduardo Correia, (“pluralidade de crimes significa … pluralidade de valores jurídicos negados” - vd. “Direito Criminal”, II vol., Livraria Almedina 1971, pág. 200), na indagação da unidade ou pluralidade de crimes perpetrados, há que atender não aos fins procurados pelo agente que os praticou, mas antes aos fins visados pela incriminação das normas violadas.

Ora, nos termos do art. 14° da Lei n.° 17/2009:
“Quem consumir ilicitamente ou, para seu exclusivo consumo pessoal, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, adquirir ou detiver ilicitamente plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a IV, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias”.
Por sua vez, estatui o art. 15° da mesma Lei que:
“Quem detiver indevidamente qualquer utensílio ou equipamento, com intenção de fumar, de inalar, de ingerir, de injectar ou por outra forma utilizar plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a IV, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias”.

Atento o assim estatuído, cremos que adequado é o entendimento no sentido de que ambos os comandos legais visam tutelar (essencialmente) o mesmo bem jurídico: a saúde (individual) do consumidor.
O primeiro – art. 14° – visa prevenir e reprimir o “consumo de estupefacientes”, e o segundo – art. 15° – punindo a “detenção de utensílio ou equipamento” com intenção de ser utilizado no consumo de estupefacientes, visa também prevenir esta “actividade”.

Desta forma, e notando-se que foram tais ilícitos cometidos pelo mesmo arguido, afigura-se-nos pois que correcta não será uma decisão no sentido do seu cometimento em “concurso real”.

De facto, aquando do debate na generalidade da então Proposta de Lei intitulada “Proibição da produção, do tráfico e do consumo ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas” ocorrido na Assembleia Legislativa, e em expressa resposta à questão ora em causa assim se pronunciou o Exmo. Assessor do Gabinete da Secretária para a Administração e Justiça:
“Ora bem, eu gostaria antes de mais de dizer que a detenção indevida de cachimbos e outros utensílios consta actualmente no artigo 12 do Dec-Lei 5/91/M e é punida com multa de até um ano, ou de 500 a 10.000 patacas. Porquê então agora 6 meses? É que não se entende porque é que eu tenho, porquê que de eu ter um cachimbo hei-de ter uma pena de um ano, um cachimbo para fumar, e fumando ter uma pena de seis… que antigamente era de 3 meses, ou seja, era pena maior ter um utensílio do que por consumir. Como os objectivos são os mesmos, optou-se por pôr a mesma pena dos 6 meses.
A questão colocada e bem pela Sra. Deputada aplicam-se cumulativamente os dois? A minha resposta é não. Se eu tenho o utensílio e não fumei, sou punido pela detenção. Se eu tenho o utensílio, por exemplo, o cachimbo, fumei, sou punido pelo consumo. Porque é aquilo que se diz em termos jurídicos, um crime consome o outro”; (cfr., Diário da Assembleia da R.A.E.M., I Série, n.° III – 100, pág. 17 e 18).

Assim, e atento o estatuído no art. 8°, n.° 1 do C.P.M., há que decidir em conformidade, ficando o arguido ora recorrente apenas condenado como autor de um crime de “detenção de estupefaciente para consumo”, p. e p. pelo art. 14° da Lei n.° 17/2009, na pena que pelo mesmo crime lhe foi fixada pelo Mmo Juiz do T.J.B..

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam negar provimento ao recurso, alterando-se, oficiosamente, a qualificação jurídica operada pelo T.J.B..

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 6 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.500,00.

Macau, aos 23 de Junho de 2011
José Maria Dias Azedo
Tam Hio Wa (Subscrevo a decisão com declaração de voto em anexo)
Chan Kuong Seng (vencido, por entender dever ser mantida a decisão recorrida, e haver, pois, concurso real efectivo entre os crimes dos art.º 14.º e 15.º da Lei 17/2009, na esteira do Ac. deste TSI, de 31/3/2011, no Proc. 81/2011).


Processo nº 258/2011 (Autos de recurso penal)
Data: 23/06/2011


Declaração de voto


Subscrevo a decisão da absolvição do crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento, p. e p. pelo art.15º da Lei nº17/2009, mas por razões diversas das defendidas pelo Mm. Juiz Relator no acórdão antecedente.

Pune o art.15º da Lei nº17/2009 quem detiver indevidamente qualquer utensílio ou equipamento, com intenção de fumar, de inalar, de ingerir, de injectar ou por outra forma utilizar plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a IV…

Entendo que o utensílio ou equipamento previsto na referida disposição legal exige uma certa durabilidade.

Assim sendo, atendendo aos factos provados, o arguido recorrente A detinha 4 rolos de papel de prata e 1 palhinha plástica, destinados para o consumo de droga.

No entanto, os papeis de prata e a palhinha plástica são consumíveis e carece a durabilidade exigida pelo referido art.15º, e sendo assim, devia absolver o arguido do crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento por não estarem preenchidos os elementos do tipo legal.


A Segunda Adjunta

___________________________
Tam Hio Wa

Proc. 258/2011 Pág. 30

Proc. 258/2011 Pág. 1