Processo nº 29/2008
(Recurso Cível e Laboral)
Data: 16/Junho/2011
Assuntos:
- Indemnização por prisão preventiva em caso de absolvição
- Responsabilidade da RAEM por acto lícito
- Responsabilidade por actos jurisdicionais
SUMÁRIO :
1. Não havendo erro grosseiro não é de conceder indemnização a quem esteve preso preventivamente numa situação que veio a culminar com a absolvição do arguido, numa situação em que se formula o pedido com fundamento na previsão do artigo 209º do Código de Processo Penal.
2. Uma absolvição pode sobrevir por falta de prova de cometimento do crime ou por se ter provado a inocência do arguido.
3. Divergem as legislações em termos de Direito Comparado, umas atribuindo indemnização pela prisão preventiva em processo que culminou na absolvição, independentemente da prova da inocência, outras pressupondo-a.
4. O regime da responsabilidade da RAEM por actos lícitos não contemplaria a situação subjacente ao caso sob apreciação.
O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira
Processo n.º 29/2008
(Recurso Civil e Laboral)
Data: 16/Junho/2011
Recorrente: A (A)
Recorrida: Região Administrativa Especial de Macau
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
A (A) interpôs uma acção de responsabilidade civil contra a RAEM na sequência da absolvição num determinado processo crime no âmbito do qual esteve preso preventivamente por 152 dias.
A acção foi julgada improcedente e, inconformado, recorre o A., alegando em síntese conclusiva:
De acordo com a sentença a fls. 119 a 127 dos autos, o Tribunal a quo entende que “a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva ao autor deste caso foi decidida com base na situação concreta do caso. Tal decisão foi proferida pelo Juízo de Instrução Criminal através da livre convicção, no âmbito das atribuições legais e conforme a proposta do Ministério Público, sendo adequada, proporcional e não existindo erro grosseiro. Portanto, o pedido do autor deste caso não se enquadra no estipulado no nº 2 do artigo 209º do Código de Processo Penal. Sendo assim, indefere-se o pedido de indemnização”. Foi também decidida “improcedente a acção do autor e indeferido o pedido”.
Segundo os factos provados e não impugnados, constata-se uma contradição nas alegações do ofendido e do autor, ficando-se na dúvida se o autor realmente praticou o referido crime.
No respectivo caso criminal, não se encontram outras provas que dão suporte ao facto alegado pelo ofendido.
Existem, ao contrário, provas que dão suporte à alegação do autor. Na primeiro interrogatório judicial, B, outro arguido do caso criminal, manifestou claramente ao Sr. Juiz de Instrução que não conhecia o autor.
A alegação do referido arguido é idêntica à do autor. Embora não chegue para retirar as suspeitas sobre o autor, é suficiente para reforçar a possibilidade de o autor não ter cometido o respectivo crime ou, pelos menos, contribuir para fortalecer as dúvidas e reduzir os indícios do crime do mesmo.
No entanto, o Sr. Juiz de Instrução negligenciou as alegações referidas e entendeu, baseando-se simplesmente na alegação do ofendido, que havia fortes indícios da prática do crime de roubo pelo autor.
Existe erro grosseiro na decisão do Sr. Juiz de Instrução.
Qualquer “homem médio” não entenderá que há fortes indícios de que o autor tinha cometido o crime somente com base na alegação do ofendido. Ainda por cima, existem provas em contrário no aludido processo criminal.
Ademais, é de saber que existe no caso criminal prova em contrário racional que comprova que o autor não é o autor do respectivo crime (nas alegações do autor próprio e do outro arguido do caso).
Nestes termos, embora que a prova referenciada não fosse suficiente para eliminar as suspeitas sobre o autor no primeiro interrogatório judicial, outrossim, não é suficiente para qualquer homem médio entender que há fortes indícios de o autor ter cometido o tal crime. Pelo dito, a aplicação da medida de prisão preventiva ao autor pelo Sr. Juiz do Juízo de Instrução Criminal é obviamente errada.
Após a aplicação da medida de prisão preventiva, o Ministério Público interrogou ou inquiriu, a pedido do defensor do autor, o irmão mais novo do autor, C, o ofendido, D, a testemunha, E, os guardas da PSP, F e G, outro arguido do caso, B e o autor próprio.
Das respostas da Sociedade Hutchison - Telefone (Macau), Limitada e Companhia de Telecomunicações de Macau, S.A.R.L., datadas de 21 de Junho de 2002 e de 24 de Junho de 2002, respectivamente, o Sr. Magistrado ficou ciente de que não havia prova de que o autor tinha contactos com o outro arguido antes ou depois de o caso ter lugar.
Após ter consultado as provas recolhidas através da diligência instrutória, verificou-se que não foram descobertas quaisquer novas provas de que o autor tinha cometido o tal crime, ou seja, não foram encontradas provas novas para reforçar os indícios de crime e as suspeitas sobre o mesmo.
Ao contrário, foram obtidas novas provas para comprovar que o autor não cometeu o crime ou, pelo menos, atenuar os seus indícios de crime e suspeitas sobre ele.
Tais provas são oriundas principalmente das alegações do irmão mais novo do autor, C, e das outras testemunhas, bem como da Sociedade Hutchison - Telefone (Macau), Limitada e da Companhia de Telecomunicações de Macau, S.A.R.L.
Estas provas, em princípio, são mesmo a causa para libertar o autor quanto a este caso.
Porém, diante estas provas favoráveis ao autor, o Ministério Público não defendeu a imparcialidade e legalidade, não considerava as novas provas suficientes para mostrar que os indícios de crime e suspeitas sobre o autor não eram tão fortes, nem pediu ao Sr. Juiz de Instrução a substituição da medida de prisão preventiva por outra medida de coacção.
É de saber que o caso estava na fase instrutória naquela altura e o Ministério Público era a única entidade que teve conhecimentos sobre o andamento e as provas existentes do caso.
Portanto, em virtude de o Ministério Público não ter ponderado adequadamente com base nas provas existentes e não ter pedido ao Sr. Juiz de Instrução a substituição da medida de prisão preventiva por outra medida de coacção, o autor teve que ficar em prisão preventiva a aguardar julgamento, prejudicando os interesses do mesmo. O tal acto é obviamente negligente e errado.
O autor é, sem dúvida, a grande vítima do caso. A permanência em prisão preventiva por 152 dias sem ter cometido nada tem-lhe causado a maior dano moral na sua vida. A medida de coacção aplicada faz com que o autor e sua família percam a confiança no sistema jurídico e deixou cicatrizes indeléveis na memória do autor.
Face a todo exposto, a decisão recorrida viola o artigo 114º, o artigo 186º, nº 1, alínea a) e artigo 209º, nº 2 do Código de Processo Penal, bem como o artigo 56º, nº 1, do Lei de Bases da Organização Judiciária.
Conclui por pedir que seja julgado procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida e condenando-se o réu a pagar ao autor uma indemnização no montante de MOP275.000,00.
O Ministério Público, em representação da Região Administrativa Especial de Macau, contra-alega, em síntese:
O recorrente entende que a sentença viola o artigo 114º, o artigo 186º, nº 1, alínea a) e artigo 209º, nº 2 do Código de Processo Penal, bem como o artigo 56º, nº 1, do Lei de Bases da Organização Judiciária.
O entendimento do recorrente desafia a livre convicção formada pelo Sr. Juiz. De acordo com o artigo 114º do Código de Processo Penal: “Salvo disposição legal em contrário, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”
Portanto, devem ser negados todos os fundamentos.
Pugna assim pelo não provimento do recurso.
Foram colhidos os vistos legais.
II - FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
1. Em 16 de Junho de 2002, pela 1:45 hora, o autor foi interceptado por guarda da P.S.P., num local aproximado do Centro Comercial ......, sito na Av. Marginal do ......, e depois foi conduzido à esquadra para ser investigado.
2. Em seguida, o arguido e mais outras duas pessoas foram indicados para realizarem o processo de identificação no Comissariado n.º 2, e em conformidade com o respectivo auto de identificação de arguido, o ofendido confirmou que o autor foi o qual que lhe tinha praticado o roubo.
3. Por conseguinte, o autor foi declarado imediatamente como arguido.
4. Em 17 de Junho de 2002, o autor foi entregue ao Ministério Público, onde foram autuados os autos (Inquérito n.º 4199/2002), para efeito de investigação.
5. Em 17 de Junho de 2002, os autos acima referidos foram remetidos ao Juízo de Instrução Criminal, a fim de proceder ao primeiro interrogatório judicial.
6. O outro arguido dos referidos autos B (B) declarou que não conhecia o autor A (A), conforme as suas alegações prestadas ao Juiz de instrução.
7. O autor não confessou os factos que lhe foram imputados e declarou que não conhecia o outro arguido dos referidos autos penais B (B), nem o ofendido D (D) e o cidadão E (E), conforme as suas alegações prestadas ao Juiz de instrução.
8. Dado o Ministério Público entende que os autos indiciam fortemente a prática pelo autor e por outro arguido dos referidos autos B (B), de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 204º, n.º 1 do Código Penal, tendo também em consideração a gravidade das circunstâncias e a personalidade dos arguidos, assim promove que seja aplicada ao autor e a outro arguido dos referidos autos B (B) a medida coactiva de prisão preventiva.
9. Tendo em conta a douta promoção do Ministério Público, o Juiz de instrução proferiu o despacho, aplicando a medida de prisão preventiva ao autor e a outro arguido dos referidos autos B (B).
10. O autor foi conduzido imediatamente ao Estabelecimento Prisional de Macau, a fim de aí aguardar em prisão preventiva.
11. Finda a respectiva medida de investigação, ao abrigo do disposto no art.º 265º, n.º 1 do Código de Processo Penal, o Ministério Público deduziu acusação contra o autor e o outro arguido dos referidos autos B (B), imputando-lhes a prática, em 16 de Junho de 2002, do crime de roubo, p. e p. pelo art.º 204º, n.º 1 do Código Penal.
12. Os autos aludidos foram remetidos ao Tribunal Judicial de Base (Processo n.º PCC-053-02-4) e foram julgados em 7 de Novembro de 2002.
13. Em conformidade com o acórdão proferido pelo T.J.B. em 15 de Novembro de 2002, o autor foi absolvido do crime e libertado, por não terem provados integralmente todos os factos que lhe foram imputados.
14. Desde 17 de Junho a 15 de Novembro de 2002, o autor estava preso preventivamente por um total de 152 dias.
15. No momento em que o autor foi interceptado, o qual não tinha em sua posse nenhum objecto relacionado com o aludido caso de roubo.
16. O depoimento do ofendido D (D) foi prestado em 17 de Junho de 2002, pelas 12:05 horas, ao Ministério Público.
17. Às 16:46 horas do mesmo dia, o irmão mais novo do autor, C (C), apresentou um requerimento ao Ministério Público, requerendo que seja inquirido pelo MºPº, a fim de relatar os factos relacionados com a respectiva causa.
18. Com base nos dados constantes do Certificado de Registo Criminal n.º RC010340/2002, emitido em 17 de Junho de 2002, pela Direcção dos Serviços de Identificação, o autor não tem nenhum antecedente criminal.
19. Após a aplicação da respectiva medida de prisão preventiva, o Ministério Público atendeu ao requerimento apresentado pelo defensor do autor, inquirindo C (C), o ofendido D (D), a testemunha E (E), os guardas policiais F (F) e G (G), bem como, interrogando o outro arguido dos referidos autos B (B) e o autor.
20. Em conformidade com as respostas dadas pela Hutchison – telefone (Macau), Limitada e pela Companhia de Telecomunicações de Macau, S.A.R.L., respectivamente em 21 de Junho e 24 de Junho de 2002, verifica-se que o autor e o outro arguido dos referidos autos não tinham nenhum contacto antes nem depois da ocorrência do facto.
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21. Durante a noite de 15 de Junho de 2002, o autor A (A) permanecia na casa do seu irmão mais novo C (C), sita no Beco do ......, vendo televisão com os familiares do seu irmão.
22. À 1:30 hora de madrugada do dia seguinte, depois de ter acabado o programa de televisão, o autor abandonava a residência do seu irmão mais novo C (C) e regressava sozinho ao seu domicílio, sito na Av. Marginal do ......, Edf. “……”, bloco …, …º andar ….
23. O Ministério Público não atendeu ao requerimento apresentado em 17 de Junho, pelas 16:46 horas, por C (C), ou seja, não o tinha convocado para ser inquirido, uma vez que o respectivo processo foi remetido ao J.I.C., pelas 15:50 horas, para a realização do primeiro interrogatório judicial.
24. Em fases de investigação posteriores, o Ministério Público não apresentou ao Juiz o requerimento de substituição da prisão preventiva por outras medidas coactivas.
25. O autor é casado, tem dois filhos e tinha uma família normal antes de ser preso preventivamente.
26.Antes de ser preso preventivamente, o autor era trabalhador por conta própria, exercia obra de remodelação, auferindo por volta de MOP$7.000,00 a MOP$9.000,00 por mês.
27. Devido ao autor foi preso preventivamente, não podia dar seguimento à obra em decurso e ficava sem o emprego, causando a perda parcial de receita económica da sua família.
28. Os dois filhos menores do autor estavam numa fase de idade em que deviam ser necessariamente educados pelos pais, entretanto, devido ao pai foi preso preventivamente, ficavam com falta de cuidado paterno.
29. O autor constituiu um advogado para sua defesa na referida causa e efectuou o pagamento de MOP$30.000,00 de honorários advocatórios.
30. A reputação do autor foi danificada e, por consequência, os seus clientes perderam confiança nele, sendo indirectamente influenciado o seu futuro trabalho.
III – FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passa fundamentalmente por saber se os factos que vêm provados geram responsabilidade civil por parte da RAEM.
O recorrente, parece depreender-se, face ao pedido que formula nos autos, pedido de indemnização no montante de MOP275.000,00, que faz radicar essencialmente no erro grosseiro a apreciação dos pressupostos de facto de que dependia a prisão preventiva, tal como prevista artigo 209º, n.º 2 do Código de Processo Penal (CPP), dizendo que “a decisão recorrida viola o artigo 114º, o artigo 186º, nº 1, alínea a) e artigo 209º, nº 2 do Código de Processo Penal, bem como o artigo 56º, nº 1, do Lei de Bases da Organização Judiciária.”
2. Atentemos na respectiva norma (artigo 209º do CPP):
1. Quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos com a privação da liberdade.
2. O disposto no número anterior aplica-se a quem tiver sofrido prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, se a privação da liberdade lhe tiver causado prejuízos anómalos e de particular gravidade.
3. O disposto no número anterior não se aplica no caso de o preso ter concorrido, por dolo ou negligência, para aquele erro.
Constitui pressuposto da responsabilidade civil consagrada nesta normas a existência de erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto da prisão preventiva.1
3. A lei não define o que seja o erro grosseiro.
O erro grosseiro na aplicação dos pressupostos de facto da privação de liberdade é um erro indesculpável, crasso ou palmar, cometido contra todas as evidências e no qual incorre quem actua sem os conhecimentos ou as diligências exigíveis, bem como o acto temerário, no qual devido à ambiguidade da situação se corre o risco evidente de se chegar a um resultado injusto2, isto numa apreciação à formulação civilista de que é grosseiro o erro vencível com um grau médio de diligência, que o agente podia e devia ter evitado em termos de diligência.3
O erro significa o engano ou a falsa concepção de um facto ou de uma coisa, distinguindo-se da ignorância porque esta se traduz essencialmente na falta de conhecimento. O erro de facto e ou direito na apreciação judicial dos pressupostos de facto da prisão preventiva é o indesculpável ou inadmissível, porque o juiz podia e devia conscencializar o engano que esteve na origem da sua decisão que a determinou.4
4. O recorrente diz que a decisão proferida desafia a livre convicção formada pelo Sr. Juiz de acordo com o artigo 114º do Código de Processo Penal, mas, no fundo, é exactamente em nome desse princípio, o da livre convicção do julgador, plasmado em tal norma, que se conclui no sentido exactamente oposto ao pretendido por ele.
A sentença recorrida contém já as razões da sem razão do recorrente, pelo que nos remetemos para o desenvolvimento ali contido.
Não obstante, vejamos as razões aduzidas que na sua argumentação evidenciam o erro do julgador:
- A decisão da prisão preventiva baseou-se tão somente nas declarações do reconhecimento do ofendido, o que é contrariado pela negação do arguido, ora recorrente, donde estarmos apenas de uma versão contra outra, donde resultar daí uma situação de empate;
- acresce que a versão do arguido - negação na participação no roubo - é corroborada pelo outro co-arguido, donde resultar daí até um reforço da posição do arguido, ora recorrente;
- Após a aplicação da aplicação da prisão preventiva fora feitas, a pedido do recorrente, várias diligências, tendo-se comprovado que não houve contactos telefónicos entre os arguidos;
- Foram ouvidas testemunhas que comprovam que o recorrente não praticou os factos, em particular a partir das declarações do irmão mais novo.
Analisando cada um destes argumentos de per se, importa dizer que a força das provas não resulta de uma qualquer operação matemática; podiam até ser 10 testemunhas a dizer uma coisa contra um único depoimento e este ser mais fiável e credível. É exactamente aí que reside a livre convicção do julgador, bastando que esta não fuja às regras da experiência comum, da prova tarifada ou da própria evidência das provas em si.
Esta asserção não deixa de se retirar da própria experiência comum, da mediana prudência e sabedoria, do senso e da vida prática.
Do argumento da inexistência de contactos entre os arguidos também nada se retira em termos definitivos, pois que bem podia não ter havido contactos telefónicos, ou não ter havido os que foram investigados, e de alguma forma ter havido concluio para perpetração do crime.
O argumento de que houve testemunhas que comprovam que o arguido não cometeu os factos não passa da interpretação do recorrente; tal não resulta da sentença, ou seja, não se comprova que o arguido não cometeu os factos, mas tão somente que se não provaram os factos que lhe eram imputados.
Por um arguido ser absolvido daí não resulta a prova de que não cometeu o crime. Embora possa ser absolvido por se ter provado que o não cometeu, a absolvição pode resultar tão somente de um non liquet em termos da comprovação da acção delituosa.
Somos assim a concluir pela inverificação de um erro notório ou grosseiro na aplicação da prisão preventiva ao arguido.
5. Questão que se pode colocar é diversa e reside na possibilidade de o recorrente obter indemnização a partir da responsabilidade da RAEM com base noutra fonte de responsabilidade por facto ilícito ou até, porventura, por facto lícito.
A solução de indemnizar todos os arguidos que tenham estado presos preventivamente e sejam absolvidos – provando-se ou não que não cometeram o crime que lhes foi imputado -, ainda que com assento nalguns ordenamentos (v.g. Alemanha e Itália)5 ou a solução de indemnizar nos casos em que se tenha provado que o arguido não cometeu o crime (v.g. Portugal)6 não foram acolhidas entre nós.
Nem se pode sequer fazer apelo à aplicação directa de uma norma constitucional (artigo 22º da então vigente CRP7), actualmente inexistente entre nós, que terá justificado a condenação do Território de Macau no proc. 279, de 28/6/95, do então TSJ.8
6. Não é este o lugar adequado para se proceder a uma resenha histórica do desenvolvimento do princípio da responsabilidade civil extracontratual do Estado.
Da irresponsabilidade do Estado e da impunidade dos funcionários, a partir dos finais do século XIX e posteriormente por inspiração na Declaração dos Direitos do Homem, foi-se arreigando a ideia, dela fazendo primeiramente eco a jurisprudência dos Tribunais e, depois, vindo a consagração legislativa,9de que o Estado respondia solidariamente com os seus agentes por perdas e danos causados aos cidadãos no desempenho das suas funções e que não cumprissem culposamente as disposições legais que as regulamentavam.
O regime da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas, dos seus titulares e agentes - foi aqui o que resultou in illo tempore dos artigos 22º e 271º da então Constituição da República Portuguesa10, bem como dos artigos 2399º e 2400º do C.Civil de Seabra (cfr. Preâmbulo do DL 28/91/M de 22/4), já que em Macau nunca foram postos em vigor os Decretos Leis n.º 48051, de 21/11/67 e n.º 100/84, de 29/3.
Ainda no passado, o art. 453º do CPP então vigente dispunha que no caso de absolvição se houvesse parte acusadora o Tribunal arbitraria indemnização se houvesse culpa ou dolo na acusação e o réu a requeresse a seguir à leitura da sentença absolutória.
7. Independentemente da aplicabilidade ao caso do regime decorrente do Dec-Lei n.º 28/91/M, de 22 de Abril - aplicabilidade aos actos jurisdicionais ou se o seu âmbito se limita aos factos causais e actos administrativos legais ou materialmente lícitos praticados pela Administração -11, o certo é que o pedido do recorrente não vem estruturado nessa base, nem esta questão é objecto do presente recurso.
Em todo o caso, a entender-se que o enquadramento jurídico da pretensão das partes cabe ao Tribunal - jura novit curia - não se deixa de referir que não se verificam os respectivos pressupostos, seja face ao disposto no artigo 2º do DL 28/91/M de 22/4
- "a Administração do Território e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante os lesados, pelos actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício" -
seja face ao artigo 10º -“1. A Administração do Território e demais pessoas colectivas públicas indemnizarão os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos, tenham imposto encargos ou causado prejuízos especiais e anormais.
2. Quando a Administração do Território ou as demais pessoas colectivas públicas tenham, em estado de necessidade e por motivo de imperioso interesse público, de sacrificar especialmente, no todo ou em parte, coisa ou direito de terceiro, deverão indemnizá-lo.”.
Face a todo o exposto somos a concluir no sentido da exclusão de responsabilidade da RAEM no caso vertente.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Macau, 16 de Junho de 2011,
João A. G. Gil de Oliveira (Relator)
Ho Wai Neng (Primeiro Juiz-Adjunto)
José Cândido de Pinho (Segundo Juiz-Adjunto)
1 - Mesmo em termos de Direito Comparado, mesmo com uma regulação própria para a indemnização dos actos jurisdicionais em Portugal, Lei n.º 67/2007, é quase unânime a exigência de verificação de tal tipo de erro (cfr., v. g., Ac. STJ de 28 de Janeiro de 2003, responsabilidade por função jurisdicional; responsabilidade do Estado; privação de liberdade; prisão preventiva; erro grosseiro; Ac. STJ de 1 de Junho de 2004 (responsabilidade civil; prisão preventiva; erro grosseiro; « II-A prisão preventiva não é injustificada e muito menos grosseira só porque o detido vem a ser absolvido. »); Ac. STJ de 19 de Outubro de 2004, responsabilidade civil do Estado; prisão preventiva; erro grosseiro e erro temerário).
2 - Ac. STJ, de 28/1/03, CJ XXVIII, 1, 52
3 - Pessoa Jorge, Pressuposto da Responsabilidade Civil, 1ª ed., 346
4 - Ac. STJ, proc. 08B84, de 29/1/08
5 - Na esteira da Recomendação do Cons. da Europa, ponto 34º da Rec(2006)13
6 - Lei 48/2207, de 29/8
7 (- Cfr, relativamente ao artigo 22.° daquela Lei Fundamental, v. Ac. STJ de 26 de Setembro de 2000, BMJ 499, pág. 323, onde se cita muita doutrina e jurisprudência - sobre responsabilidade extracontratual do Estado por actos legislativos; Ac. RL de 7 de Maio de 2002, Caso Aquaparque, comentado por J. J. Gomes Canotilho, na RLJ, 134, págs. 202 e ss.; Ac. STJ de 31 de Março de 2004, CJACSTJ, XII, T. I, págs. 157 e ss. - sobre erro judiciário, desrazoabilidade da decisão, erro de direito grosseiro, palmar, evidente, crasso, indiscutível; Ac. STJ de 21 de Março de 2006, CJACSTJ, XIV, T. I, pág. 138 - sobre inquérito judicial, Magistrado do MP, acto ilícito, culpa funcional; Ac. TC 154/2007, DR, II Série, de 4 de Maio de 2007, que se pronunciou sobre a inconstitucionalidade de uma certa interpretação do n.º 1 do artigo 2.° do DL 48051 e que referencia muita doutrina e jurisprudência do TC
8 - Não obstante o voto de vencido (cfr. Col. Jurisp. do TSJ, 1995, 461 e segs.
9 - Lei de 14/2/1907, DL 19126 de 16/Dez/1930, DL 48051 de 21/Nov/67 e 100/84 de 29/3
10 - Onde se previam ainda dois casos de responsabilidade do Estado por facto do exercício da função jurisdicional nos artigos 27º, n.º 5 (privação inconstitucional da liberdade e 29º, n.º 6 (erro judiciário)
11 - Aliás, no sentido da exclusão da aplicação do diploma referido aos actos jurisdicionais, o acima citado acórdão do então TSI em toda a linha, em qualquer das posições ali vertidas.
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