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Processo nº 622/2010
Data do Acórdão: 07JUL2011


Assuntos:
Cheque
Título executivo
Interesse processual

SUMÁRIO

O recurso desnecessário à acção declarativa por parte de quem dispuser de título com força executiva manifesta é gerador da falta do interesse processual.


O relator


Lai Kin Hong

Processo nº 622/2010


Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I

A, devidamente identificado nos autos, veio intentar contra B uma acção declarativa ordinária, que veio a ser registada no 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Bas sob o nº CV2-08-0049-CAO, pedindo que seja condenado o Réu a pagar-lhe a quantia de HKD$1.544.877,00 e juros legais vincendos até ao integral pagamento, assim como as despesas realizadas com o seu mandatário judicial.

Devidamente tramitados os autos, veio a final proferida a seguinte sentença julgando improcedente a acção e absolvendo o réu do pedido:

I – 敍述部份 :
  原告,A (XXX),男,離婚,中國籍,持有由澳門身份證明局於XXXX年XX月XX日發出編號XXXXXXX(X)之澳門永久性居民身份證,聯絡地址為氹仔XXX地下P舖;
  於2008 年7月16日,以第2至5頁之起訴狀所載之事實為由,提起本通常宣告程序,要求本院判處:
  被告,B,男,澳洲籍,持有由澳洲有權限當局於XXXX年X月XX日發出編號EXXXXXXX之護照,聯絡地址為XX市XXXX路15XX號XX大廈B楝XXXXA,XXXXXX及XX市XX路XXXX號XX大廈副樓504室,XXXXXX,
  向原告支付港幣壹佰伍拾肆萬肆仟捌佰柒拾柒元正 (HKD1,544,877.00) ,折合澳門幣壹佰伍拾玖萬叁仟伍佰肆拾壹元正 (MOP1,593,541.00)、自傳喚日至清償日的法定利息、訴訟費及職業代理費 。
  原告提交了第7至17頁之文件。
    ***
  本院依法以公示傳喚被告,答辯期屆滿後,被告未有作出答辯,現由檢察院代表。
    ***
  在事宜、等級及地域方面,本法院對此案有管轄權。
  不存在不可補正之無效。
  訴訟雙方具有當事人能力及訴訟能力,且具有正當性。
  沒有無效、抗辯或妨礙審查本案實體問題且依職權須即時解決的先決問題。
    ***
  本院依法由合議庭主席以獨任形式對本訴訟進行公開審理。
    ***
II – 事實:
  經查明,本院認定如下事實:
- 於不確定日期被告開具一張抬頭為原告,金額為港幣壹佰伍拾萬元正 (HKD1,500,000.00)之香港上海滙豐銀行有限公司支票 (支票號碼XXX481),支付日期為2008年1月15日。
- 原告於2008年1月16日透過銀行託收服務兌現上述款項。
- 2008年1月17日,原告收到香港上海滙豐銀行有限公司通知,被告的上述還款支票被銀行退票,退票原因是上述的支票戶口已結清。
***
III – 法律理據:
  原告以被告曾向其借款港幣壹佰伍拾萬圓但過期拖欠為由,要求本院判處被告償還有關款項及法定利息。
  根據原告陳述,其於2008年1月12日將現金港幣1,500,000元交予被告,並協定以香港上海滙豐銀行有限公司發出、到期日為2008年1月15日之期票償還欠款。然而,因上述支票戶口早已結清,原告在支票到期日未能成功兌現支票,被告並未為此透過其他方式歸還欠款。
  按《民法典》第1070條之規定“ 消費借貸為一合同,透過該合同,一方將金錢或其他可代替物借予他方,而他方則有義務返同一種類及品質之物”,即借用人有義務將借用物返還予貸與人。
  以原告提出之請求而言,其必需證明與被告間確存在主張的借貸關係。
  已證實之事實僅顯示被告曾向原告開具一張港幣1,500,000元但於到期日未能兌現的支票。原告主張的借貸關係之事實則未獲得證實。
  單憑支票之開具不足推定當事人間曾設定上述借貸關係,或被告因其他原因需向原告支付上述金額。
  即使認為被告開具支票後便有義務向原告提供有關金額,原告仍需證明被告未有以其他方式交付該金額; 然而,原告在此方面主張之事實亦未獲得證實。
  因此,原告之請求不能成立。
***
IV – 裁 決:
  據上論結,本法庭裁定原告訴訟理由不成立,裁決如下:
  就原告A (XXX)針對被告B提出之請求,開釋被告。
***
  訴訟費由原告支付。
***
  依法作出通知及登錄本判決。

Não se conformando com essa sentença absolutória, vem agora o Autor A recorrer para este Tribunal de Segunda Instância, concluindo e pedindo:

CONCLUSÕES:
I. A sentença recorrida, ao não distinguir os factos não provados dos que consubstanciam meras conclusões de facto ou de direito, abstém-se de declarar quais os factos que julga não provados.
II. Pelo que não especifica, nessa parte, os fundamentos de facto que justificam a decisão.
III. Sendo, por isso, nula nos termos do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 571º do Código de Processo Civil de Macau.
IV. A matéria provada nos autos não admite concluir que não existe um empréstimo ou uma dívida por cujo reembolso ou pagamento ao autor o réu é responsável.
V. Os fundamentos de facto da sentença recorrida estão, por isso, em franca oposição com a conclusão de que o empréstimo ou a dívida não ficaram provados e, consequentemente, com a decisão que não condenou o réu a restituí-lo ou a pagá-la ao autor.
VI. Nessa medida, a sentença recorrida é nula nos termos do disposto no artigo 571º do Código de Processo Civil ou viola o disposto no artigo 562º do mesmo diploma que manda interpretar e aplicar aos factos provados às normas jurídicas correspondentes.
VII. Não tendo o cheque, apresentado em tempo útil, sido pago e tendo a recusa de pagamento sido verificada por uma declaração do sacado, datada e escrita sobre o cheque, com a indicação do dia em que este foi apresentado, ao autor é-lhe sempre conferida a faculdade de reclamar em juízo o valor dele.
VIII. A sentença recorrida, ao não condenar o réu a pagar ao autor o valor do cheque não pago, viola, por isso, o disposto na alínea b) do artigo 1251º do Código Comercial.
IX. A sentença recorrida, ao não condenar o réu a pagar ao autor a dívida com o fundamento de que este não provou que a mesma não foi saldada através de quaisquer outros meios, viola, ainda, o disposto no nº 2 do artigo 335º do Código Civil.
Pelo que deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, a sentença recorrida ser revogada, condenando-se, por seu lado, o réu a restituir ou a pagar ao autor a quantia de HK$1.500.000,00, acrescida dos respectivos juros, assim se fazendo a já costumada JUSTIÇA.

Notificado da motivação do recurso, o Ministério Público, aqui em representação do Réu em parte incerta, nada respondeu.

II

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

Sintetizadas as conclusões do recurso, são as seguintes questões levantadas:


1. Da nulidade da sentença por falta de fundamentação;

2. Da nulidade da sentença por oposição dos fundamentos com a decisão; e

3. Da violação do disposto no artº 1251º/b) do Código Comercial e no artº 335º/2 do Código Civil.


Apreciando.

1. Da nulidade da sentença por falta de fundamentação

Como se sabe, é pacífico quer na doutrina quer na jurisprudência que só a falta absoluta da fundamentação é que constitui a nulidade da sentença por falta de fundamentação, nos termos do disposto do artº 571º/1-b) do CPC.

Assim, da leitura da sentença ora integralmente transcrita supra, nitidamente não resulta a alegada falta de fundamentação.

Na verdade, ao dizer que o simples facto de o Réu ter emitido um cheque a favor do Autor não é suficiente para demonstrar a existência de uma relação de mútuo entre o Autor e o Réu e que por isso mesmo o Tribunal não pode condenar o Réu, na qualidade de mutuário, a pagar o valor peticionado enquanto a coisa fungível, o Tribunal a quo não deixou de cumprir o seu dever de fundamentação.

Improcede o recurso nesta parte.

2. Da nulidade da sentença por oposição dos fundamentos com a decisão

Ao assacar à sentença da pretensa oposição dos fundamentos com a decisão geradora da nulidade a que se refere o artº 571º/1-c) do CPC, o recorrente alega:

“......com base nos factos que julgou provados, o tribunal concluiu que o empréstimo e a dívida ficaram provados nos autos.
E que, ainda que a dívida existisse, não se provou que a mesma não foi saldada através de outros meios.
Ora, desde logo, os referidos factos não permitem, de modo nenhum, concluir pela inexistência do empréstimo ou da dívida.”

Cabe frisar que em parte alguma a sentença recorrida concluiu que o empréstimo e a dívida ficaram provados, antes foi com fundamento na não comprovação da versão alegada pelo Autor, isto é, a versão da existência de um mútuo entre ele e o Réu, que julgou improcedente a acção.

Assim, cai por terra a tese sustentada pelo recorrente nesta parte.

3. Da violação do disposto no artº 1251º/b) do Código Comercial e no artº 335º/2 do Código Civil.

Antes de entrarmos na análise da pertinência das disposições aqui invocadas pelo recorrente, convém salientar que na petição inicial o autor, ora recorrente, para fundamentar o pedido da condenação do Réu, veio invocar, como causa de pedir, não o direito cartular incorporado no cheque em causa, mas sim a alegada relação subjacente à emissão do tal cheque, isto é, a celebração de um contrato de mútuo pelo qual o Autor emprestou ao Réu o valor pecuniário de HKD$1.500.000,00 e a alegada não restituição no prazo estipulado da quantia mutuada por parte do Réu.

Só que, aliás curiosamente, invocou os artºs 1239º, 1251º/c) e 1256º, todos do Código Comercial, reguladores da matéria do direito cartular consubstanciado no cheque.

Como analisámos supra, o Tribunal a quo julgou improcedente a acção justamente porque não resultou provada a alegada causa de pedir, dado que na óptica do Tribunal a quo, o simples facto de o Réu ter emitido um cheque a favor do Autor não é suficiente para demonstrar a existência de uma relação de mútuo entre o Autor e o Réu.

Assim, é claro que não pode condenar o Réu com fundamento nisso.

Portanto, não andou mal o Tribunal a quo ao julgar improcedente a acção.

Mesmo assim, por razões que passamos agora a expor infra, a decisão de improcedência da acção não é de manter.

Vejamos então.

Talvez não tivesse reparado que a causa de pedir invocada na petição inicial era a alegada existência de um contrato de mútuo entre ele próprio e o Réu e a alegada não restituição no prazo estipulado da quantia mutuada, vem agora, infelizmente, o Autor, ora recorrente, já patrocinado por outro mandatário, repetir o mesmo fundamento de direito já invocado na petição inicial, isto é, pedir ao Tribunal para condenar o Réu a reconhecer uma dívida que já confessou.

Na verdade, se o Autor quisesse exercitar o direito cartular incorporado no cheque de que é portador mediante a presente acção declarativa, estaria a agir mal por lhe faltar manifestamente o interesse de agir – artº 73º/3-a), in fine, do CPC.

É assim, porque in casu, o Autor está munido de um cheque que pode valer perfeitamente como título executivo na modalidade de documento particular a que se refere o artº 677º/-c) o CPC.

A propósito de documentos particulares como título executivo, Amâncio Ferreira ensina que “...... ao ordenar ao seu banqueiro, através de um cheque por si assinado, que pague determinada importância a um terceiro a quem entrega o cheque, o sacador reconhece dever a este uma determinada importância (obrigação pecuniária), pelo que o cheque em causa preenche todos os requisitos previstos na alínea c) ...... valendo assim como título executivo.” – Curso de Processo de Execução, 8ª edição, pág. 36.

Esta doutrina encontra-se entre nós hoje em dia expressamente consagrada no artº 677º/-c) do CPC, nos termos da qual constituem títulos executivos os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável.

Ora, in casu, verificam-se todos esses requisitos legalmente exigidos a um documento particular para valer como título executivo, quais são:

* Contem a assinatura do Réu;

* Importa o reconhecimento da obrigação (pois o Réu, ao ordenar ao banco através do cheque por si assinado, que pague HKD$1.500.000,00 ao Autor, a quem entrega o cheque, está reconhecer dever ao Autor a tal quantia);

* A obrigação assumida reporta-se ao pagamento de uma quantia bem determinada, que é HKD$1.500.000,00;

Ao contrário do que sucede com código de 1961, à luz do qual ainda que a acção declarativa desnecessária venha a julgada procedente, o autor apenas é condenado no pagamento das custas, como sanção contra o facto de ter recorrido desnecessariamente ao processo de declaração (cf. Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, § 33º), já no código de 1999, o portador de título executivo não é permitido a usar do processo declaratório para obter judicialmente o cumprimento da obrigação já titulada no título executivo, não lhe restando outra alternativa que não seja o recurso imediato ao processo executivo, uma vez que, face ao disposto no acima citado artº 73º/3-a), in fine, do CPC, se o autor dispuser de título com manifesta força executiva, que é o caso em apreço, não tem interesse processual para intentar acções de condenação.

E a falta de interesse processual determina a absolvição do réu de instância – artºs 412º/1 e 2, e 413º/-h) do CPC.

A ser assim, sem necessidade de nos debruçarmos sobre os invocados normativos que se prendem com o regime próprio do cheque estabelecido no Código Comercial.

Tudo visto, resta decidir.
III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em negar provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e absolvendo o Réu da instância.

Custas pelo recorrente.

Notifique.

RAEM, 07JUL2011
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan
João A. G. Gil de Oliveira


Proc. 622/2010-1