Processo nº 319/2011 Data: 14.07.2011
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “ofensa simples à integridade física” e dano.
Embriaguez.
Absolvição.
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Erro notório na apreciação da prova.
SUMÁRIO
1. O vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão apenas ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre matéria objecto do processo.
2. O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”
É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.
3. O “elemento subjectivo”, (dolo), e a “consciência da ilicitude”, é matéria de facto que ao Tribunal cabe apreciar de acordo com a regra da “livre apreciação da prova”, consagrada no art. 114° do C.P.P.M..
4. Tendo o Tribunal concluído que o estado de embriaguez em que se encontrava a arguida a colocou numa situação de “inimputabilidade”, correcta se mostra a decisão da sua absolvição da prática dos crimes de “ofensas simples à integridade física” e “dano”, cometidos em tal estado.
O relator,
______________________
José Maria Dias Azedo
Processo nº 319/2011
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A (A), com os sinais dos autos, respondeu, em audiência colectiva no T.J.B., vindo a ser absolvido da prática dos crimes de “ofensas simples à integridade física” e “dano”, p. e p. pelos art°s 137°, n.° 1 e 206°, n.° 1 do C.P.M., que pelo Ministério Público lhe eram imputados; (cfr., fls. 91 a 92 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado, o Exmo. Magistrado do Ministério Público recorreu.
Conclui a sua motivação de recurso afirmando o que segue:
“1. No acórdão só se provou que a arguida estava em estado de embriaguez no momento da prática do facto, o qual não é suficiente para a exclusão do dolo dela.
2. Dos artigos 284.°, n.° 1 e 279.° do CP e art.° 90.° da Lei do Trânsito Rodoviário resulta que quem praticar crimes em estado de embriaguez deve assumir responsabilidade criminal, e que o facto de em estado de embriaguez pode ser um elemento constitutivo dum crime.
3. No acórdão não foram especificados os fundamentos de facto e de direito segundo os quais o Tribunal reconheceu que não se encontrou elemento constitutivo subjectivo de crime, isso viola o disposto no art.° 349.°, n.° 2, al. d) do CPP.
4. Encontra-se o vício referido no art.° 400.°, n.° 2, al. a) do CPP.
5. Segundo os factos provados, a arguida praticou as condutas com o fim claro, e disputou com o ofendido sobre um certo assunto, mas não estava a dizer disparates.
6. Os factos de a ofendida dizer disparates no veículo, agir como queria vomitar e precisar de ser acordada pelo ofendido no momento da chegada não são suficientes para reconhecer que esta não sabia as consequências da agressão.
7. Ao contrário, a arguida bem sabia que já chegou no destino, que estava a disputar com o taxista sobre a passagem, e que praticou a agressão a fim de ir-se embora sem pagar. Pelo que, não é possível que ela não soubesse as consequências de lesões da integridade física do ofendido e de dano na roupa deste, resultantes da sua prática de agressão.
8. O Tribunal incorreu em erro notório na apreciação da prova por ter conhecido o não dolo na prática dos crimes com base nos factos provados.
9. Encontra-se vício referido no art.° 400.°, n.° 2, al. c) do CPP.
10. O acórdão recorrido viola o art.° 13.°, art.° 284.°, n.° 1 do CP e art.° 355.°, n.° 2 do CPP, pelo que deve ser declarado nulo ao abrigo do art.° 360.°, al. a) do CPP”; (cfr., fls. 97 a 101-v e 136 a 144).
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Respondendo, diz a arguida ora recorrida que:
“1. O recorrente entende que o acórdão do Tribunal a quo incorre em vício referido no art.° 400.°, n.° 2, al.s a) do CPP: a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; Erro notório na apreciação da prova.
2. Mas este vício só se verifica quando o tribunal não apurar o integral objecto da acção. (vide o 1.° ponto do sumário do acórdão no processo n.° 869/2010 do TSI)
3. No acórdão do Tribunal a quo foram reconhecidos factos provados os principais factos acusados pelo MP,
4. No entanto, tendo em conta o comportamento embriagado da arguido no veículo, o Tribunal Colectivo a quo entendeu que não conseguiu reconhecer que a arguida praticou as condutas de arranhar o ofendido e rasgar a roupa deste de forma consciente e sabendo que estas eram proibidas por lei, pelo que não conseguiu apurar se que se a arguida tinha culpa dolosa no momento da prática das condutas acusadas.
5. Pelo que, este Tribunal absolveu a arguida com base no princípio de in dubio pro reo, não incorrendo no vício previsto no art.° 400.°, n.° 2, al. c) do CPP (Erro notório na apreciação da prova.)
6. O recorrente entende que “segundo o conhecimento duma pessoa normal, mesmo que uma pessoa esteja em estado de embriaguez, teria a sua consciência. Quanto à arguida, ela tinha uma disputa com o ofendido e sabia que já chegou ao destino, pelo que, embora tivesse bebido álcool, não era possível que ela não sabia as consequências necessárias resultantes da sua conduta de agressão.” (vide a 2ª linha contada do fim de fls. 3 da petição do recurso)
7. O recorrente põe em causa, evidentemente, o princípio da livre convicção do Tribunal a quo, princípio esse previsto no art.° 114.° do CPP.
8. O Tribunal a quo formou a conclusão de “não consegue reconhecer que a arguida praticou as condutas de arranhar o ofendido e rasgar a roupa deste de forma consciente e sabendo que estas eram proibidas por lei, pelo que não consegue apurar que se a arguida tinha culpa dolosa no momento da prática das condutas acusadas” depois de ter apreciado todos os materiais constantes dos autos e os depoimentos das testemunhas.
9. Pelo que o Tribunal a quo não incorreu num erro notório que o homem médio facilmente dele se dá conta, nem violou nenhum regras sobre o valor probatório ou da experiencia comum.
10. Dado que o Tribunal a quo não incorreu em erro notório na apreciação da prova, é proibido por lei que o recorrente põe em causa a livre convicção do Tribunal formada após atentas as provas.
11. O acórdão a quo não viola os dispostos no art.° 360.°, al, a) e art.° 355.°, n.° 2 e n.° 3, al. b) do CPP.
12. Por outro lado, mesmo que o TSI concorde com os fundamentos do recuso do MP, a prescrição do procedimento criminal já teve lugar.
13. Porque a arguida foi acusada pela prática de um crime de ofensas simples à integridade tisica previsto e punido pelo art.° 137.°, n.° 1 do Código Penal e de um crime de dano previsto e punido pelo art.° 206.°, n.° 1 do Código Penal.
14. Estes dois crimes são punidos respectivamente na pena de prisão até 3 anos, nos termos do art.° 110.°, n.° 1, al. d) do CP, o prazo da prescrição do procedimento penal é 5 anos, contado desde o momento da prática de crime.
15. Isto quer dizer que, a partir de 13 de Novembro de 2004, se não houvesse situação de suspensão ou interrupção, a prescrição teria lugar em 14 de Novembro de 2009.
16. A arguida prestou a declaração em 13 de Novembro de 2004 (vide fls, 23), isto é, a notificação da inquirição da arguida. Nos termos do art.° 113.°, n. ° 1, al. a) e n.° 2 do CPM, a prescrição do procedimento penal interrompeu-se e começou imediatamente a correr o novo prazo.
17. O MP notificou a arguida a inquirição como arguida (vide fls. 3 7 dos autos) em 13 de Novembro de 2008 por via postal (n.° RRI20504362MO). Segundo as disposições legais, a notificação considera-se feita no terceiro dia posterior ao do registo.
18. Apesar da existência desta presunção' legal, a mesma é ilidível mediante a prova de factos concretos. E na realidade, a arguida não recebeu esta notificação (v. documento 1), razão pela qual, não havia interrupção da prescrição.
19. Dos autos não consta qualquer notificação posterior dirigida à arguida, no sentido de proceder à inquirição dele na qualidade de arguida.
20. Em 19 de Dezembro de 2008, o MP acusou a arguida, tendo-a notificado em 30 de Dezembro de 2008 por carta registada com aviso de recepção (n.° RR160478379MO) (v. fls, 48 dos autos).
21. Pelo mesmo raciocínio, esta notificação também não produz efeito de interrupção da prescrição descrita na alínea c) do n.° 1 do artigo 113.° do CPM, visto que a arguida não a recebeu (v. documento 2), situação essa que é idêntica àquela descrita no artigo 26.°.
22. A seguir, em 4 de Fevereiro de 2009, o juiz do JIC ordenou a aplicação da medida de TIR a arguida, notificando-o em 19 de Outubro de 2010 por carta registada com aviso de recepção (n.° RR160097327MO) (v. fls. 56 e 63 dos autos).
23. Esta notificação foi recebida pela arguida em 25 de Outubro de 2010 por intermédio de B (v. fls, 95-96 dos autos, e o documento 3).
24. É de salientar que, bem comparados os documentos 1, 2 e 3,
verificamos que quando a encomenda foi recebida pelo destinatário, agentes dos serviços postais da China preenchiam na coluna da “situação” da encomenda “entregue”,. e na da “assinatura do destinatário”, um sinal “X”. Ora, não consta da coluna da “situação” dos documentos 1 e 2 o tal registo “entregue”, nem o sinal “X” da “assinatura do destinatário”, o que reforça ainda mais a ideia exposta nos artigos 24.0 e 29.0 do presente articulado de que a notificação não foi recebida pela arguida.
25. Ou seja, estas notificações não interrompem a prescrição do procedimento criminal contra a arguida.
26. Apesar de a arguida ter recebido notificação de aplicação de medidas coactivas, o facto é que, a mesma só foi recebida em 25 de Outubro de 2010, e o procedimento criminal já havia sido prescrito em 14 de Novembro de 2009.
27. Por outro lado, apesar de no dia 15 de Fevereiro de 2009 o juiz ter marcado data de julgamento (v. fls. 57 dos autos), a verdade é que esta data foi cancelada em 5 de Fevereiro de 2010, e adiada, no mesmo dia, para 19 de Janeiro de 2011 (v. fls, 60 dos autos).
28. Porém, como a arguida ausentou-se ao julgamento em 19 de Janeiro de 2011, o juiz cancelou novamente o julgamento, tendo-o adiado para o dia 3 de Março de 2011 (v. fls. 60 dos autos).
29. Portanto, em termos precisos, a data em que foi designada a data da audiência de julgamento no processo de ausentes deve ser 19 de Janeiro de 2011, ou 5 de Fevereiro de 2010, em caso de entendimento
diverso.
30. Tal como se referiu atrás, antes do dia 5 de Fevereiro de 2010, apenas ocorreu uma única interrupção de prescrição, isto é, a notificação de ser inquirido na qualidade de arguido, datada de 13 de Novembro de 2004.
31. Assim, passados 5 anos sobre o dia 13 de Novembro de 2004, a prescrição do procedimento criminal contra a arguida completou-se em 14 de Novembro de 2009, ou seja, a mesma já se tinha completado antes da data em que foi designada a data da audiência de julgamento no processo de ausentes (19 de Janeiro de 2011, ou 5 de Fevereiro de 2010, em caso de entendimento diverso).
32. Pelo exposto, carece de fundamentos de facto e de direito a pretensão do recorrente de anulação do acórdão do tribunal a quo, e de ser julgada provada a prática dos crimes imputados à arguida.
33. Mesmo que não se entenda assim, deve ser declarado extinto o procedimento criminal contra a arguida por efeito da prescrição”; (cfr., fls. 104 a 109 e 145 a 159).
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Em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:
“Ao que descortinamos da douta sentença controvertida, pelo menos do conteúdo da tradução fornecida, os julgadores “a quo” absolveram a arguida por se lhes pôr a dúvida quanto à ocorrência, no caso, quer da consciência da ilicitude, quer da culpa, sustentando, nomeadamente, que “este Tribunal entende que não consegue reconhecer que a arguida praticou as condutas de arranhar o ofendido e rasgar a roupa deste de forma consciente e sabendo que estas condutas eram proibidas por lei”, acrescentando que “Isto quer dizer que este tribunal não consegue apurar se a arguida tinha culpa dolosa no momento da prática das condutas acusadas”, declarando improcedente a acusação pela “falta de elemento constitutivo do crime, isto é, a arguida saber da ilicitude da conduta no momento da sua prática”.
Como é sabido, o dolo faz parte da vida interior de cada um, sendo, portanto, da natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão.
Daí que, como se afirma no ac. Rel. Porto - Portugal de 23/2/83, in BMJ 324/620 (aqui citado a título meramente doutrinal), “... só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, como maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção.
Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência”.
Ora, no caso, não se questionando que, aquando da prática dos factos delituosos imputados, a recorrida se encontrava em elevado estado de embriaguez, a verdade é que se não alcança que, tendo a mesma tido a “arte” de apanhar um táxi e saber indicar correctamente o destino pretendido, se possa, razoavelmente, estabelecer a dúvida sobre a capacidade de discernimento da mesma àcerca da legalidade da sua conduta e vontade de a tomar, com as consequências respectivas, a tal se não opondo o facto de a mesma ter tido vontade de vomitar ou proferir frequentes asneiras, “processos”, aliás, típicos dos alcoolizados, apresentando-se, pois, a “dúvida” estabelecida no espírito dos julgadores como não consonante com as regras da normalidade e da experiência comum, as quais, claramente, apontam no sentido de que, podendo a sua culpa ser mitigada pelo estado de embriaguez em que se encontrava, o mesmo não é passível, no caso, do estabelecimento de dúvida razoável sobre a imputabilidade, sobre a capacidade de discernimento da recorrida sobre a ilicitude da sua conduta e vontade de a levar a cabo, com as consequências inerentes.
Mal andaríamos se assim não fosse, atentos até, os frequentíssimos casos da prática de ilícitos sob a influência do álcoól...
Razões por que, por ocorrência de erro notório na apreciação da prova, somos a entender merecer provimento o presente recurso”; (cfr,. fls. 162 a 163).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Deu o Colectivo a quo como provados os factos seguintes:
“1. Em 13 de Novembro de 2004, cerca das 0h00, a arguida entrou no táxi de matrícula n.° M-XX-XX, conduzido pelo ofendido C (C) (identificado em fls. 41 dos autos), perto do Banco Nacional Ultramarino sito na Avenida de Artur Tamagnini Barbosa, e dirigiu-se para o Hotel Royal sito na Estrada da Vitória.
2. Dentro do táxi, a arguida ficou a dizer disparates e apresentou um estado de embriaguez.
3. Tendo chegado ao hotel, a arguida recusou-se ao pagamento da sua passagem no valor de MOP$20, pelo que os dois começaram a disputar.
4. Mais tarde, a arguida propriamente saiu do veículo pretendeu ir embora.
5. Pelo que C saiu do veículo de imediato e pegou a mão direita da arguida, impedindo-lhe de ir-se embora e pediu-lhe o pagamento da passagem.
6. A arguida empurrou o taxista com grande força e afastou-se deste, e arranhou o braço esquerdo e peito dele com as suas unhas, causando derramamento nas partes arranhados. A arguida também rasgou a roupa do ofendido (vide as três fotos no topo e em baixo à esquerda de fls. 11 dos autos)
7. Vide fls. 9 e 32 para o relatório médico e o parecer do médico-legal sobre as lesões do ofendido, que se dão aqui por integralmente reproduzidas por efeito jurídico.
8. A agressão praticada pela arguida causou directamente contusões e escoriações dos tecidos moles da parede torácica e do membro esquerdo, lesões essas que constituem ofensas simples à integridade fisica e que precisam de 3 dias para recuperar, durante o qual o ofendido perdeu a capacidade de trabalho. (vide o parecer do médico-legal em fls. 32 dos autos)
9. O dano decorrente da roupa rasgada do ofendido foi no valor de MOP$l00.
10. A agressão praticada pela arguida causou directa e necessariamente lesões à integridade fisica do ofendido.
11. A arguida rasgou a roupa do ofendido e causou dano nesta.
Segundo o registo criminal, a arguida é delinquente primária.
Por sua vez, como factos não provados, consignou os seguintes:
“1. Tendo chegado ao hotel, a arguida recusou-se ao pagamento da sua passagem no valor de MOP$20 com fundamento em que o taxista deliberadamente se tinha dirigido pela rota mais longe.
2. A arguida agiu de forma livre e consciente ao praticar as condutas acima referidas.
3. A arguida, com a intenção de ofender o lesado, praticou dolosamente as condutas que causaram ofensas à integridade fisica do ofendido.
4. Além disso, apesar de bem saber que a sua conduta de rasgar a roupa do ofendido causaria necessariamente dano na roupa, a arguida praticou a conduta com dolosa, e causou praticamente dano na roupa do ofendido.
5. A arguida sabia que as suas condutas são proibidas e punidas por lei de Macau”; (cfr., fls. 89 a 90 e 128 a 131).
Do direito
3. Vem o Exmo. Magistrado do Ministério Público recorrer do Acórdão absolutório proferido pelo Colectivo do T.J.B..
É de opinião que o mencionado veredicto está inquinado com os vícios de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” e “erro notório na apreciação da prova”, considerando também que o mesmo “viola o art. 349°, n.° 2, al. d) do C.P.P.M.”, e terminando as suas conclusões de recurso afirmando ainda que:
“O acórdão recorrido viola o art.° 13°, art. 284°, n.° 1 do CP e art.° 355°, n.° 2 do CPP, pelo que deve ser declarado nulo ao abrigo dop art.° 360°, al. a) do CPP”.
Sem prejuízo do muito respeito por melhor entendimento, cremos que ao Exmo. Recorrente não assiste razão.
Passa-se a expor o porque deste nosso entendimento.
Vejamos.
–– No que toca aos assacados “vícios da decisão da matéria de facto”, repetidamente, tem este T.S.I. afirmado que:
O vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., o Acórdão de 09.06.2011, Proc. n.°275/2011 e de 02.06.2011, Proc. 198/2011)..
Por sua vez, “o erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 26.05.2011, Proc. n.° 268/2011 do ora relator).”
Motivos não havendo para se alterar o assim entendido quanto ao sentido e alcance dos imputados vícios, evidente é que os mesmos não existem.
Com efeito, e como de uma mera leitura ao teor do Acórdão recorrido se constata, o Colectivo a quo não deixou de emitir pronúncia sobre (toda) a “matéria objecto do processo”, (aliás, nem o Exmo. Recorrente explicita as razões que o levam a considerar padecer a decisão recorrida do vício de “insuficiência”), certo sendo também que não se vislumbra como, onde, ou em que termos se terá incorrido em “erro notório na apreciação da prova”, pois que não se vislumbra a violação de qualquer regra sobre o valor da prova tarifada, regra de experiência ou legis artis.
Quanto ao “erro”, é verdade, diz o Exmo. Recorrente que o mesmo se verifica dado que o Colectivo a quo deu como não provado o dolo da arguida em relação aos crimes que lhe eram imputados; (cfr., concl. 8ª ).
Porém, e como já se deixou consignado, outro é o nosso ponto de vista.
Desde logo, não se pode olvidar que o “elemento subjectivo” em questão não deixa de ser “matéria de facto” que, (como qualquer outra), o Tribunal aprecia em conformidade com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 114° do C.P.P.M.
Por sua vez, há que atentar na fundamentação pelo Colectivo a quo exposta no seu veredicto.
De facto, assim ponderou:
“Neste processo, segundo os factos provados, a roupa do ofendido foi rasgada pela arguida, além disso, aquele foi arranhado pela esta. Pelo que, a arguido praticou as condutas acusadas de rasgar a roupa do ofendido e causar lesões à integridade deste.
Segundo a acusação, no táxi, a arguida ficou a dizer disparates e apresentou um estado de embriaguez.
Por outro lado, o ofendido disse na audiência que a arguida, após ter entrado no veículo, agiu como queria vomitar várias vezes, pelo que aquele lhe perguntou por várias vezes que se ela precisou de sair do veículo e vomitar. O ofendido também declarou que depois de terem chegado ao Hotel Royal, ele precisou de abrir a porta e acordou a arguida para que ela saísse. Depois de ela sair do veículo, o ofendido pediu-lhe o pagamento da sua passagem no valor de MOP$20, mas a arguida disse que não queria pagar apesar de ter dinheiro. A mesma mais disse ao ofendido: só és um taxista, que vais fazer se não te pago.
Segundo o relatório n.º 8342/C3/2004 da polícia, naquela noite a polícia foi notificada cerca das 0h11. A arguida, depois de ter sido trazida para a esquadra, “ainda estava em estado de embriaguez e disse disparate, até cercas das 3h30 da manhã, começou a ficar sóbria…” (vide o 5º parágrafo de fls. 7v dos autos).
Ressalvado o devido respeito pelo entendimento do MP, tendo em conta o estado de embriaguez apresentado pela arguida, este Tribunal entende que não consegue reconhecer que a arguida praticou as condutas de arranhar o ofendido e rasgar a roupa deste de forma consciente e sabendo que estas eram proibidas por lei. Isto quer dizer que este Tribunal não consegue apurar que se a arguida tinha culpa dolosa no momento da prática das condutas acusadas. Pelo que, por a falta do elemento constitutivo de crime, isto é, a arguida saber da ilicitude da conduta no momento da sua prática, este Tribunal declara improcedente a acusação deduzida contra a arguida A e absolve esta, da prática, do imputado crime de ofensas simples à integridade física previsto e punido pelo art.º 137.º, n.º 1 do Código Penal e do imputado crime de dano previsto e punido pelo art.º 206.º, n.º 1 do Código Penal”.
E perante isto, muito não é preciso dizer, pois que, em rigor, e se bem ajuizamos, limita-se o Exmo. Recorrente a expor a sua convicção (pessoal) no sentido de que, “agindo como agiu, teria a arguida que ter agido com dolo”.
Porém, tal convicção, (sem prejuízo do muito respeito), é irrelevante, já que, como mera convicção, não pode sobrepor-se à convicção do Colectivo a quo que, no fundo, e apreciando globalmente a prova existente e produzida em conformidade com o “princípio de livre apreciação da prova”, concluiu que o “estado de embriaguez” com o qual se encontrava a arguida lhe impediu o discernimento quanto à sua conduta.
Não se nega que admissível também seria outra “conclusão”.
Porém, sob pena de se estar a sindicar a referida “livre convicção”, censura não merece a decisão em crise.
Claro nos parecendo este aspecto, continuemos.
–– Afirma também o Exmo. Recorrente que “no acórdão não foram especificados os fundamentos de facto e de direito segundo os quais o Tribunal reconheceu que não se encontrou elemento constitutivo subjectivo de crime, isso viola o disposto no art.° 349.°, n.° 2, al. d) do CPP”.
Ora, prescreve o invocado preceito que:
“1. O tribunal começa por decidir separadamente as questões prévias ou incidentais sobre as quais ainda não tiver recaído decisão.
2. Em seguida, se a apreciação do mérito não tiver ficado prejudicada, o juiz que preside ao julgamento enumera discriminada e especificadamente e submete a deliberação e votação os factos alegados pela acusação e pela defesa, e bem assim os que resultarem da discussão da causa, relevantes para as questões de saber:
a) Se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime;
b) Se o arguido praticou o crime ou nele participou;
c) Se o arguido actuou com culpa;
d) Se se verificou alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa;
e) Se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança;
f) Se se verificaram os pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil.
3. Em seguida, o juiz que preside ao julgamento enumera discriminadamente e submete a deliberação e votação todas as questões de direito suscitadas pelos factos referidos no número
anterior”.
Atento o que reza a “alínea d”, afigura-se-nos haver equívoco.
De facto, e como se deixou transcrito, o Tribunal a quo não deixou de consignar no seu Acórdão as razões que o levaram a dar como não provado o dolo da arguida, motivos não existindo para a censura que lhe é feita.
Por fim, (na sua 10ª conclusão), afirma o Exmo. Recorrente que “o acórdão recorrido viola o art.° 13.°, art.° 284.°, n.° 1 do CP e art.° 355.°, n.° 2 do CPP, pelo que deve ser declarado nulo ao abrigo do art.° 360.°, al. a) do CPP”.
Ora, desde já, cabe dizer que integralmente observado não nos parece estar o enunciado no art. 402°, n.° 2 do C.P.P.M., mas ainda que assim não seja, não se vislumbra que se tenha violado os invocados preceitos legais.
Com efeito, o “art. 13° do C.P.M.” dá-nos apenas o conceito e modalidades do “dolo”, no art. 284° do mesmo Código prevê-se o crime
de “embriaguez e intoxicação”, pelo qual a arguida não tinha sido acusada e que nada tem a ver com o de “ofensas a integridade física” e “dano” que lhe eram imputados, e quanto aos “art°s 355°, n.° 2 al. a) e 360°, al. a) do CP.P.M.”, mais não se mostra de acrescentar, pois que, como se deixou consignado, não deixou o Colectivo a quo de fundamentar, adequadamente, a sua decisão.
Nesta conformidade, sendo de se confirmar a decisão absolutória proferida pelo T.J.B., improcede o presente recurso.
Decisão
4. Nos termos que se deixam expostos, acordam negar provimento ao recurso; (cfr., art°s 409°, n° 2, al. a) e 410°, n° 1 do C.P.P.M.).
Sem custas, (por das mesmas estar o Exmo. Recorrente isento).
Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.500.00.
Macau, aos 14 de Julho de 2011
(Relator)
José Maria Dias Azedo
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng
(Segunda Juiz-Adjunta)
Tam Hio Wa
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