打印全文
Processo n.º207/2009
(Recurso Cível)
Data: 15/Julho/2010

ASSUNTOS:

- Contrato de consórcio atípico, misto de vários regimes
    
    SUMÁRIO:
    
Se o A. acorda com a irmã ir mandando para Macau diversas quantias em numerário para aquela investir no imobiliário e, passados anos, aquela nada fez e retém essas quantias, é legítimo que o A. resolva o acordo e que a Ré deva restituir as quantias guardadas com os juros após interpelação para o efeito.
O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira
Processo n.º 207/2009
(Recurso Civil e Laboral)
Data: 15/Julho/2010
Recorrente: A
Recorrido: B

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I - RELATÓRIO
1. B, melhor identificado nos autos, veio intentar contra A, também ela melhor identificada nos autos, acção de condenação, alegando que em meados de 1992 combinou com a sua irmã, ora Ré, que enviaria para Macau determinadas quantias em dinheiro para que ela as investisse no ramo do imobiliário.
Não tendo feito, passados os anos, o A. interpelou-a para que lhe devolvesse o dinheiro, o que não aconteceu até à data.
A final, corrida a acção e feito julgamento, foi decidido pelo Mmmo Juiz:
“1) - Condenar a Ré A a pagar ao Autor B a quantia de MOP$793,326.60, acrescido de juros vencidos, calculados à taxa legal desde 25 de Outubro de 2004, até integral e efectivo pagamento.
2) – Julgar-se improcedente o demais pedido do Autor.
Custas pela Ré.”
    
2. Inconformada a Ré, vem recorrer alegando, em síntese conclusiva:
Da sentença recorrida resulta: “O montante de dinheiro referido no quesito nunca foi investido pela Ré. A qual mantém consigo esse dinheiro.” é visivelmente contraditório com os factos constantes dos 54 documentos prestados pela recorrente em 12 de Outubro de 2007, 9 de Julho de 2008 e 14 de Julho de 2008 antes da audiência de julgamento, os quais constam dos autos. No entanto, falta fundamentação à sentença recorrida, também não toma posição quanto a que não admitiu e não reconheceu o teor dos 54 documentos” (sic.).
Conforme os 54 documentos pode-se confirmar que, “O montante de dinheiro referido no quesito anterior nunca foi investido pela Ré. A qual mantém consigo esse dinheiro.” não deve ser provado, por ser desconforme ao facto. De facto, o recorrido também nunca apresentou nenhuma impugnação em relação ao teor dos 54 documentos.
A sentença recorrida considera provado “O montante de dinheiro referido no quesito anterior nunca foi investido pela Ré. A qual mantém consigo esse dinheiro.”, não atendendo absolutamente o teor dos 54 documentos, pelo que violou os dispostos no art.º 436.º do Código de Processo Civil. Nessa situação, é inevitável o julgamento errado por omissão de atendimento e a existência de erros resultante da subsunção do facto no preceito legal, resultando na injustiça da sentença recorrida.
Caso contrário, quer dizer a sentença recorrida já foi atendida, então, sendo provas documentais os 54 documentos, constituem limitações ao princípio da livre convicção do Tribunal a quo. Nessa situação, quanto à avaliação e apreciação das provas, a sentença recorrida evidentemente ultrapassa a limitação à livre convicção constituída pelas provas documentais, de tal modo que a sentença recorrida padece de vício de infracção.
A sentença recorrida considera provado “Desde 25 de Outubro de 2004, o Autor tem interpelado a Ré para lhe devolver o referido dinheiro acrescido e juros legais” na ausência de qualquer prova. Por um lado, facto como este é normalmente provado pelas provas documentais para ter o efeito jurídico de interpelação extrajudicial, mas não há nenhuma prova documental nos autos para o provar. Por outro lado, a “declaração” assinada pela recorrente em 25 de Outubro de 2004 não produz automaticamente efeitos da comprovação do facto “Desde 25 de Outubro de 2004, o Autor tem interpelado a Ré para lhe devolver o referido dinheiro acrescido e juros legais”. Em fim, sobre a testemunha. Os depoimentos da testemunha, segundo as regras da experiência, embora todos prestados simultaneamente no sentido de saber da “reclamação da devolução” do recorrido, o que pode ser provado é, quando muito, esta reclamação da recorrente (sic.). No entanto, com referência ao facto “...e juros legais”, os depoimentos da testemunha, segundo as regras da experiência, não alcançam nível este. Nesta situação, quanto ao avaliação e apreciação das provas, a sentença recorrida violou visivelmente as regras da experiência, fazendo com que a mesma padeça de vício de infracção.
Além disso, como o facto “ juros legais” não é provado, é inevitável a existência de erros resultante da subsunção deste no preceito legal aplicável por o ter considerado como provado, resultando assim na injustiça da sentença recorrida.
A recorrente apresentou na contestação que conforme o teor da disputa entre a recorrente e o recorrido, este não deve propor uma acção ordinária de condenação, reclamando a condenação de quantia concreta em dinheiro, mas deve propor, nos termos do art.º 879.º e seguintes do Código de Processo Civil, uma acção especial de prestação de contas para apurar a prestação a que o recorrido eventualmente tenha direito. No entanto, a sentença recorrida não toma nenhuma posição quanto à questão acima referida. A sentença recorrida só indica “O processo é o próprio. Inexistem nulidades, excepções ou outras questões prévias que obstem à apreciação “de meritis”.”, é evidente que não tem fundamentação.
A sentença recorrida qualifica juridicamente o acordo celebrado entre a recorrente e o recorrido como “um acordo de consórcio” previsto no art.º 528.º do Código Comercial. No entanto, dos materiais dos autos resulta que nenhum dos dois foi empresário comercial, ou explorou empresas comerciais, e o acto praticado no âmbito do acordo celebrado entre os dois não é acto comercial. Pelo que, os dispostos no Código Comercial não são nada aplicáveis mas é aplicável direito privado comum, quer dizer o Código Civil.
caso assim não entenda, a situação da recorrente e do recorrido também não preenche o requisito do concordo de consórcio previsto no art.º 528.º do Código Comercial.
Os objectos previstos do art.º 529.º do Código Comercial também não são o que a recorrente e o recorrido queriam prosseguir. A recorrente e o recorrido também não celebraram, nos termos do art.º 530.º, n.º 1 do Código Comercial, o contrato de “forma escrita”. Nessa situação, mesmo que considere aplicável o Código Comercial e qualifique o acordo como contrato de consórcio previsto no art.º 528.º do Código Comercial, nos termos do art.º 212.º do Código Civil, o acto é nulo. Face ao exposto, a sentença recorrida padece de vícios de erro na aplicação dos Códigos e das leis.
A sentença recorrida indicou que “Por outro lado, a partir do momento em que o Autor interpelou a Ré-isto é, desde 24 de Outubro de 2004- (sic.), para que esta lhe devolvesse o montante investido e a Ré se recusa a fazê-lo, constituiu-se em mora.” O qual não tem fundamento jurídico. A declaração foi proferida em 25 de Outubro de 2004, mas não indicou a data exacta de vencimento. Por outro lado, não pode provar que o recorrido tinha feito a interpelação. Pelo que, não pode constituir-se em mora prevista do art.º 794.º do Código Civil. Também não existe a obrigação de indemnização prevista do art.º 795.º do Código Civil.
Caso assim não entenda, constitui-se em mora a partir do momento em que a recorrente foi citada para que esta intervenha no processo. Face ao exposto, a sentença recorrida padece de vícios de erro na aplicação da lei.
A sentença recorrida indicou que “Assim, desde aquela data, deve entender-se que o Autor revogou o acordo, com base no artigo 431 º do CCM, daí os efeitos do artigo 427 º. Pelo que, a Ré tem de proceder à devolução das quantias ao Autor.” O qual não tem fundamento jurídico.
O presente caso não tem nenhum facto que pode ser subsumido no requisito previsto no art.º 431.º do Código Civil. A sentença recorrida tem erro na aplicação do art.º 431.º e art.º 427.º do Código Civil.
A sentença recorrida não especificou especificamente os fundamentos de facto e de direito com base nos quais tomou decisão, pelo que existe vício previsto no art.º 571.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil, causando a nulidade da mesma.
A sentença recorrida não se pronunciou sobre todas as questões que a recorrente submeteu à sua apreciação, pelo que viola o disposto no art.º 563.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, existe vício previsto no art.º 571.º, n.º 1, al. d) do mesmo Código, causando a nulidade da sentença.

    Face ao exposto, pede se julgue procedente o recurso interposto pela recorrente, anulando/ revogando a sentença recorrida.

    3. Contra alega, em síntese, o recorrido B:
     A sentença recorrida não padece de qualquer vício, não existindo, assim, qualquer motivo para que a mesma seja total ou parcialmente revogada.
     A recorrente pretende conferir a documentos particulares o mesmo valor probatório que é conferido por lei a documentos autênticos, o que não é manifestamente aceitável.
     Na verdade, os documentos que a recorrente apresentou foram apreciados criticamente pelo douto colectivo, tal como consta da fundamentação constante do acórdão que decidiu a matéria de facto.
     Não existe qualquer erro grosseiro ou patente por parte da Primeira Instância na apreciação da matéria de facto pertinente à solução da causa, pelo que não é de aceitar que a recorrente venha agora sindicar o julgamento da matéria de facto já feito pelos Meritissimos Juízes do Colectivo "a quo", sob pena de comprometer o príncipio da livre apreciação da prova estipulado no art. 558º do Código do Processo Civil.
     A sentença recorrida encontra-se muito bem fundamentada, tanto do ponto de vista factual como de direito pelo que a mesma não incorre no vício mencionado na alínea b) do n° 1 do art. 571º do C.P.C.
     A sentença recorrida também não enferma do vício de omissão de pronúncia previsto na d) do n° 1 do art. 571º do C.P.C., pois o tribunal "a quo" decidiu todas as questões que lhe foram colocadas.
    Nestes termos, deve, em sua opinião, ser mantida, na íntegra, a sentença recorrida.
    
    4. A, ré no processo, ora recorrente, veio ainda aditar o seguinte às suas alegações:
    
    1. Antes do julgamento da primeira instância, a recorrente apresentou um rol de testemunha, incluindo o marido da recorrente C. O recorrido B também apresentou rol de testemunha, incluindo a Sra. D.
    2. Na audiência do julgamento da primeira instância, D prestou declaração ao Tribunal a quo. No entanto, o marido da recorrente C foi recusado de ser ouvido pelo presidente do tribunal colectivo, por motivo de ser este marido da recorrente, havendo entre si interesse, após ser vencida, emergiu problema na execução de bens.
    3. Nesta data a recorrente descobriu no certidão de registo predial, o recorrido B e D também são casal, casado no regime de comunhão de adquiridos. (a fls.6)
    4. Pelo que, D não declarou o facto de ser casado com o recorrido B, ao ser ouvido na audiência, fazendo com que a sua declaração foi ouvida pelo Tribunal a quo, que formou a convicção, e proferiu a sentença recorrida. Objectivamente, violou o princípio da igualdade entre a parte autora e a parte ré.
    5. Face ao exposto, a sentença recorrida vislumbra o aludido vício. Pede a justiça do Tribunal Colectivo.
    
5. Foram colhidos os vistos legais.
    
    II - FACTOS
Com pertinência, respiga-se o seguinte da sentença recorrida:
    “(...)
    II – FACTOS (事 實 部 份):
    Dos autos resulta assente a seguinte factualidade, entre outra, com interesse para a decisão da causa:
    Da Matéria de Facto Assente:
    - Em 25 de Outubro de 2004, a Ré efectuou, por escrito a declaração que se encontra a fls. , com o seguinte teor: 本人A(澳門身份證A 7/XXX/5o)現居澳門羅利老馬路XX號XX大廈X樓X座
    從1991年至92年12月間,先後收到B(U.S.A. PASSPORT NO. XXX B)從美國寄來或現交美元及合作投資房產滾存款折合港幣HK$770,220,即柒拾柒萬零貳佰貳拾元正。該款項仍然存放在我處,未曾取出 (alínea A) da Especificação)。
    * * *
    Da Base Instrutória
    - Em meados de 1992, o Autor combinou com a Ré que enviarias para Macau determinadas quantia em dinheiro para que ela as investisse no ramo imobiliário (resposta ao quesito 1º).
    - Tendo acordado ambos que o lucro proveniente desse investimento seria, depois, anualmente dividido pelo dois, em partes iguais (resposta ao quesito 2º).
    - Na sequência desse acordo, o Autor enviou para a Ré o montante em dólares americanos equivalente ao que consta da declaração referida na alínea a) da matéria de facto assente (resposta ao quesito 3º).
    - O montante de dinheiro referido no quesito anterior nunca foi investido pela Ré (resposta ao quesito 4º).
    - A qual mantém consigo esse dinheiro (resposta ao quesito 5º).
    - Desde 25 de Outubro de 2004, o Autor tem interpelado a Ré para lhe devolver o referido dinheiro acrescido e juros legais (resposta ao quesito 6º).
     (...)”

    III – FUNDAMENTOS
    1. O objecto do presente recurso passa pela análise das seguintes questões:
    - Questão alegadamente superveniente relativa ao facto de a esposa do A., ora recorrido ter deposto em audiência.
    - Impugnação da matéria de facto
    - forma de processo
    - (in)existência da obrigação de restituir o dinheiro e respectivos juros
    
    2. Não tem razão alguma na questão colocada supervenientemente.
    Contrariamente ao que afirma, a testemunha declarou a sua relação de casasda com o A., tal com da acta consta, foi advertida nos termos legais, para além de que a apresentação do rol atempado nos autos é precisamente para dar oportunidade às partes de saberem quem vai depor e e poderem invocar as competentes incompatibilidades e oposições.
    Acresce que se trata de um facto que não é novo e a recorrente conhecia ou tinha obrigação de conhecer há muito.
    Irreleva, de todo, esta linha argumentativa.
    
    3.1. A recorrente insurge-se das respostas dadas aos quesitos 4º e 6º da Base Instrutória, alegando haver um conflito entre a resposta dada ao quesito 4º no sentido de que o montante de dinheiro referido no quesito anterior nunca foi investido pela Ré e os documentos juntos aos autos pela recorrente, não se sabendo se o Tribunal aceitou e valorou tais documentos.
    Esse dinheiro reportava-se a montantes enviados dos Estados Unidos pelo A. para a Ré, sua irmã, no âmbito de um acordo nos termos do qual ela devia investir esse dinheiro no sector imobiliário, acordando em dividir os lucros resultantes dessa actividade.
    É verdade que em diferentes momentos a recorrente apresentou uma série de documentos nos autos, todos eles documentos particulares, que não têm a virtualidade de infirmar aquela conclusão a que o Tribunal chegou.
     Esses documentos não deixaram de ser referidos pelo Tribunal na fundamentação da sua convicção em sede de julgamento de facto, a fls 172, mas por si só nada comprovam em termos de pôr em crise as respostas do Tribunal.
    Trata-se na verdade de documentos uns elaborados pela recorrente, de correspondência trocada entre a recorrente e recorrido e outros cópias de contratos promessa sem qualquer relevância ou explicação para os autos em discussão, pois não demonstram, (desde logo, pelas datas apostas nos mesmos e pelos outorgantes) que tais contratos traduzam o investimento efectuado pela recorrente com o dinheiro do recorrido.
    E se alguma declaração releva, dos documentos particulares, é a declaração da própria Ré que declarou ter recebido o aludido dinheiro e nunca se ter desfeito dele, sendo certo que nos termos do art. 370º, n.º 2 do CC fazem fé as declarações constantes de documento particular contrárias aos interesses do respectivo autor.
    Há que não esquecer que domina no Processo Civil, por regra, o princípio da livre apreciação da prova, plasmado no art. 558º, n.º 1 do CPC e a argumentação desenvolvida não é de molde a fazer descrer em que houve erro por parte do Tribunal.
    
    3.2. Depois, ainda na senda de colocação em crise da factualidade dada como comprovada, vem a recorrente dizer que nada permitia dar como provada a interpelação do A., constante da resposta ao quesito 6°, isto é que: "desde 25 de Outubro de 2004, o Autor tem interpelado a Ré para lhe devolver o referido dinheiro acrescido de juros legais."
    Não estando sujeito tal facto a qualquer prova tarifada não se vê razão que abale a convicção a que o Tribunal chegou a partir dos diferente elementos probatórios, nomeadamente o testemunhal.
    Domina, ainda aí, o princípio da consensualidade.1
    Assim se afasta a invocação de falta de fundamentação da sentença - aliás não concretizada – e a pretensa desconsideração por banda do Tribunal a quo da prova documental exibida nos autos.
    
    3.3. Como se afasta a divergência em relação às regras da experiência comum e da normalidade da vida, enquanto a recorrente pretende que o Tribunal nunca podia ter considerado que o A. interpelou a Ré pedindo-lhe que lhe devolvesse as quantias entregues acrescidas dos juros legais.
    Não vindo requerida uma reapreciação das provas, devidamente concretizadas, não é possível realmente saber se as testemunhas referiram essa cominação, aliás, desnecessária por duas ordens de razões: em primeiro lugar, contrariamente ao afirmado, a normalidade da vida e da experiência aponta no sentido de que o dinheiro ganho juros e se alguém deve pagar, deve pagar o capital e mais o seu rendimento que mais não é do que o juro; depois, porque sempre essa consequência é uma decorrência da mora em termos legais.
    
    4. Há, depois, uma questão que o recorrente aventa nas suas alegações e se prende como facto de entender, tal como defendera na contestação, que o que o A. devia propor era uma acção de prestação de contas.
    É verdade que a Ré suscitou essa questão relativa à forma do processo e pediu que os autos deviam enformar um processo de prestação de contas. Mas não é menos certo que esse desiderato, ainda que tacitamente, não foi atendido pelo Mmo juiz aquando da prolação do Saneador, devendo então a parte ter reagido dessa posição ou da não tomada de posição.
    Tem-se presente, no entanto, que o código vigente tomou expressamente posição sobre a força de caso julgado formal relativa à prolação de uma de uma declaração em termos genéricos sobre a inexistência de excepções2, aquando do saneador, conforme o disposto no art. 429º, n.º 2 do CPC, exigindo-se aí que a pronúncia o seja sobre as questões concretamente apreciadas.
    Não sem que se tenha em atenção que tal como configurada a acção, face à matéria alegada pelo A., não haveria contas algumas a prestar. O que o A. alegou foi que adiantou determinadas verbas para investimento no ramo imobiliárioa e que a irmã reteve essas quantias e nada investiu. Donde, vir reclamar a devolução desse dinheiro.
    É verdade que se arriscava a não provar essa factualidade, mas o que é certo é que logrou provar essa alegação. Se o não tivesse provado a sua pretensão não deixaria de claudicar e, então, aí sim, face aos investimentos, importaria apurar os resultados.
    Falece, pois, razão á recorrente neste particular.
5. Assim se entra na questão principal e se reconduz à obrigação da Ré, condenada por sentença a cumprir, resultante do contrato celebrado entre as partes, enquadrado na sentença recorrida como um acordo de consórcio atípico, pois reúne alguns elementos desta figura, prevista no artigo 528º do Código Comercial, que tem o seguinte teor:
    “Consórcio é o contrato pelo qual duas ou mais pessoas, singulares ou colectivas, que exercem uma actividade económica se obrigam entre si a, de forma concertada, realizar certa actividade ou efectuar certa contribuição com o fim de prosseguir qualquer dos objectos referidos no artigo seguinte.”
    Explicitando o enquadramento feito, o Mmo Juiz a quo escreveu:
    “Ou seja, ficaram acordado entre as partes que o Autor enviou dinheiro dos EUA para a Ré para que esta se dedicasse à especulação imobiliária em Macau, só que a Ré nunca chegou a realizar estes actos, não obstante ela tentar a provar que chegou a fazer investimentos imobiliários, adquirindo algumas fracções autónomas e vendendo-as, mas não chegou a provar que tais investimentos foram feitos no âmbito do acordo celebrado com o Autor e utilizarem as quantias enviadas pelo Autor, e como tal tais negócios deviam ser entendidos como negócios feitos em nome e por conta própria da Ré.
    E quanto às quantias enviadas pelo Autor e que estão ainda na mão da Ré? Como ela não tem legitimidade sobre tais quantias, obviamente tem de as devolver ao Autor.
    Por outro lado, a partir do momento em que o Autor interpelou a Ré - isto é, desde 24 de Outubro de 2004 -, para que esta lhe devolvesse o montante investido e a Ré se recusa a fazê-lo, constituiu-se em mora.
    Assim, desde aquela data, deve entender-se que o Autor revogou o acordo, com base no artigo 431º do CCM, daí os efeitos do artigo 427º. Pelo que, a Ré tem de proceder à devolução das quantias ao Autor.”
    Basicamente tem-se o enquadramento feito como correcto, realçando-se o facto de se estar perante um contrato atípicou ou misto de diversos regimes, com laivos de consórcio, sociedade e prestação de serviços.3
    O argumento de que se considerou um contrato comercial aplicável a não comerciantes não colhe, na medida em que um contrato de consórcio, não obstante regulado pela lei comercial, pode ser considerado comercial na sua vertente objectiva ou subjectiva, tal como acontece com a generalidade dos contratos.
    O que importa realçar é que qualquer que seja a perspectiva de enquadramento do contrato em causa, o mesmo é dominado pela liberdade de forma e se o não for, se da não consensualidade do contrato resultar um vício de invalidade fulminante de nulidade, sempre a obrigação de restituir o que fora recebido se impunha.
Em todo o caso, como se disse, somos a sufragar o entendimento seguido na sentença ora sob escrutínio, mantendo-se válida a análise acima delineada.
O incumprimento contratual da Ré nos termos que vêm comprovados é justificativo objectivamente de uma reacção por parte do A. no sentido de pôr cobro ao acordo que tinham feito, assim, de resolver o contrato seja por incumprimento da ré - art. 784º do CC-, a entender-se o compromisso por si assumido perante o A., seja perante uma alteração das circunstâncias e pressupostos da cooperação das partes no empreendimento que se haviam proposto - art. 431º do CC (tese da sentença recorrida).
     O Direito não poderia tutelar uma situação inerte, anos e anos, em que uma das partes tinha o dinheiro de outro sem nada fazer e sem o devolver. Perante essa inércia o A., sempre tendo por boa a factualidade fixada – e é com essa que temos de lidar -, justificadamente, viu-se na necessidade de pôr fim ao acordo e pedir a restituição do dinheiro
O incumprimento culposo gera responsabilidade do devedor - art. 787º do CC, que se constitui em mora depois de interpelado - art. 794º, n.º 1 do CC -, traduzindo-se, na obrigação pecuniária, a indemnizção no pagamentos dos respectivos juros - art. 795º do CC.
Nesta conformidade, mostrando-se devidamente fundamentada, de facto e direito a sentença recorrida, nos termos e fundamentos expostos, o recurso não deixará de improceder.

    IV - DECISÃO
    Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
    Custas pela recorrente.
Macau, 15 de Julho de 2010,

João A. G. Gil de Oliveira (Relator)
Tam Hio Wa
Lai Kin Hong
1 “No contrato de consórcio, sendo dois apenas os membros do consórcio, a resolução do contrato, havendo elementos para ela, não carece de ser feita por escrito antes podendo ser oralmente produzindo a declaração efeitos logo que chega ao conhecimento da outra parte” – Ac. STJ, proc. 97B422, de 17/10/96, http://www.dgsi.pt
2 - Na vigência do Código de 1961 o Assento do STJ, de 1/Fev/63 fixou jurisprudência no sentido da definitividade da declaração em termos genéricos sobre a existência da legitimidade, interpretação que analogicamente se estendeu para as outras excepções, excluindo o caso da compet~encia em que norma expressa o não previa.
3 - Está-se perante um contrato atípico, indirecto, do tipo legal do contrato de consórcio, quando o tipo contratual escolhido, embora tenha uma função típica diferente do fim prosseguidor e hábil, tal como está, prossegue, além do seu fim típico, também o fim indirecto. E no contrato atípico privado prevalece a regra da liberdade de forma. - Ac. STJ, proc. 98ª701, de 20/10/98
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------

207/2009 1/21