Processo nº 45/2011 Data: 17.02.2011
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “tráfico de estupefacientes”.
Atenuação especial da pena.
SUMÁRIO
1. A atenuação especial da pena só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, ou seja, quando a conduta em causa se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.
2. Nesta conformidade, e não obstante a confissão dos factos e arrependimento, não deve ser especialmente atenuada a pena de 7 anos e 6 meses de prisão aplicada a um arguido surpreendido em flagrante delito com um total de 295,302 gramas de heroína destinadas ao tráfico, dado que aquela confissão não reveste, no caso, de valor atenuativo, sendo também prementes as necessidades de prevenção – nomeadamente geral – deste tipo de ilícito.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 45/2011
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. No Processo Comum Colectivo n° CR3-10-0128 proferiu o Colectivo do T.J.B. Acórdão decidindo condenar a arguida A, com os sinais dos autos, pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de “tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, p. e p. pelo art.º 8º, n.º 1 da Lei n.º 17/2009, na pena de 7 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 329 a 329-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformada a arguida recorreu.
Motivou para concluir nos termos seguintes:
“1) Pelo acórdão, a recorrente foi acusada da prática de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, p. e p. pelo art.º 8º, n.º 1 da Lei n.º 17/2009, de 9 de Setembro, sendo punida com pena de 7 anos e 6 meses de prisão efectiva.
2) A recorrente é delinquente primária. Pela acusação, a recorrente, desde detenção desta até audiência de julgamento, tem sempre a atitude colaboradora, bem como revelou o seu sentimento de arrependimento sincero perante o facto da detenção ilícita de estupefacientes que lhe foi imputado, mediante as cartas de desculpas.
3) À luz do relatório social, verifica-se que a arguida não é consumidora de drogas e mantém-se boa conduta durante o período de 11 meses do cumprimento da prisão preventiva, bem como tentou aperfeiçoar a si mesmo para corrigir os erros cometidos.
4) Na audiência de julgamento, a recorrente confessou sem reservas o crime que lhe foi imputado, e demonstrou nas suas declarações o sentimento de arrependimento sincero perante o crime cometido.
5) Todavia, o Tribunal a quo, como aplicador das leis, ao proferir o acórdão, não atendeu minimamente ao disposto no art.º 66º do Código Penal, ou seja, proceder à análise das circunstâncias concretas, através da conjugação das disposições sintéticas e abstractas com o presente caso concreto (2º e 3º parágrafos da pág. 22 do acórdão do Recurso em processo penal n.º 534/2010 do T.S.I.).
6) In casu, a recorrente demonstrou o sentimento de arrependimento sincero desde a fase de inquérito até o julgamento, com que se revela a diminuição considerável da ilicitude do facto (al. c) do n.º 2 do art.º 66º do Código Penal); e a agente mantém-se permanentemente boa conduta após o cometimento de crime e durante o período do cumprimento da prisão preventiva, com que se revela a diminuição das circunstâncias da necessidade da pena (al. d) do n.º 2 do art.º 66º do Código Penal);
7) O Tribunal a quo não observou o disposto no art.º 66º do Código Penal, de modo não atendeu nem aplicou o mecanismo de atenuação especial, e acabou por condenar a recorrente numa pena excessivamente pesada, sendo assim manifestamente um erro e injustiça para a recorrente.
8) Nos termos do art.º 400º, n.º 1 do Código de Processo Penal, por falta de atendimento às circunstâncias supra mencionadas na determinação da pena, a pena aplicada pelo Tribunal a quo é excessivamente pesada.”; (cfr., fls. 343 a 345 e 378 a 384).
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Respondendo, assim conclui o Exm° Magistrado do Ministério Público:
“1. A recorrente é primária, tem sempre a atitude colaboradora, apresentou cartas de desculpas, mantém-se boa conduta durante o período do cumprimento da prisão preventiva e, na audiência, confessou sem reservas o crime que lhe foi imputado, pelo que, esta considerou que a sua situação mostrava-se adequada a atenuação especial da pena, razão pela qual, duvidou que o acórdão do Tribunal a quo tivesse violado os art.ºs 66º e 67º do Código Penal, conjugado com o art.º 400º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
2. O Ministério Público não concorda com isto.
3. In casu, não se verificou que a recorrente tivesse praticado actos demonstrativos de arrependimento sincero nem circunstâncias enumeradas no art.º 66º, n.º 2 do Código Penal.
4. Não se encontra no acórdão do Tribunal a quo o vício a cima exposto.
5. Assim sendo, os fundamentos apresentados pela recorrente devem ser denegados.”; (cfr., fls. 348 a 349 e 385 a 391).
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Em sede de vista juntou o Ilustre Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:
“Mostra-se a recorrente inconformada com a medida concreta da pena que lhe foi aplicada, entendendo que, pelo facto de ser primária, ter confessado e demonstrado arrependimento, se imporia a atenuação especial da pena, nos termos do art° 66, CPM.
Atentas as circunstâncias em que os factos ocorreram, digamos que, apanhada a recorrente pelos agentes da autoridade "com a boca na botija ", o alegado revela-se, no mínimo, caricato, já que, como é evidente, a confissão, em tais termos, se revela de valor diminuto, não detendo, por outro lado, a contrição, nos mesmos condicionalismos, mesmo que a ter-se como séria, a virtualidade de, por si, diminuir de forma acentuada a ilicitude do facto, a sua culpa ou a necessidade da pena.
Termos em que, afigurando-se-nos que na pena concretamente aplicada, usou o tribunal "a quo" de dosimetria penal adequada e justa, não merecerá provimento o presente recurso.”; (cfr., fls. 393).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados os factos seguintes:
“No dia 20 de Janeiro de 2010, às 16H45, na área de bagagens do átrio de chegada do Aeroporto Internacional de Macau, agentes da Polícia Judiciária interceptaram a arguida A que acabou de chegar ao Aeroporto Internacional de Macau no voo n.º AKXX da Air XX e levaram-na posteriormente à Divisão de Investigação e Combate ao Tráfico de Estupefacientes da P.J. para feitos de averiguação.
No mesmo dia, às 18H30, a arguida A foi conduzida por agentes da P.J. para os Serviços de Urgência do Centro Hospitalar Conde de S. Januário para feitos de examinação, por suspeita de ter possuído estupefacientes dissimulados no interior do corpo.
Os Serviços de Urgência do Centro Hospitalar Conde de S. Januário realizaram o exame de raio X na cavidade abdominal da arguida A e detectaram que havia objectos estranhos no interior do corpo da mesma (vide relatório médico de fls. 22 e 83 dos autos).
Em seguida, agentes da P.J. levaram a arguida A à Divisão de Investigação e Combate ao Tráfico de Estupefacientes da P.J. para evacuar do corpo dela os objectos estranhos.
Das 21H35 do dia 20 de Janeiro de 2010 até 10H12 do dia 21 de Janeiro de 2010, a arguida A evacuou do ânus 31 peças de pós da cor de iogurte que foram embrulhadas, em forma oval pequena, com fita adesiva branca e transparente; e evacuou da vagina 1 peça de pós da cor de iogurte que foi embrulhada, em forma oval grande, com preservativo amarelo (vide auto de apreensão de fls. 24 dos autos).
Após o exame laboratorial, averigua-se que as referidas 31 peças de pós da cor de iogurte, que foram embrulhadas em forma oval pequena, contêm “Heroína” abrangida pela tabela I-A anexa à Lei n.º 17/2009, com peso líquido de 299,05 gramas (após a análise de métodos quantitativos, verifica-se que a percentagem de “Heroína” é de 60,31% e tem o peso de 180,357 gramas); e, a referida 1 peça de pós da cor de iogurte, que foi embrulhada em forma oval grande, também contem “Heroína” abrangida pela tabela I-A, com peso líquido de 199,73 gramas (após a análise de métodos quantitativos, verifica-se que a percentagem de “Heroína” é de 57,55% e tem o peso de 114,945 gramas).
Os aludidos estupefacientes foram adquiridos pela arguida A de indivíduo não identificado em Kuala Lumpur, com o objectivo de os entregar a outro indivíduo desconhecido em Shenzhen de Guangdong.
A arguida A praticou o referido acto, com a intenção de ganhar remuneração pecuniária.
A par disso, agentes da P.J. encontraram em posse da arguida A 1 telemóvel, 4 cartões SIM de telemóvel, 2 bilhetes electrónicos de avião da Air XX e 1 cartão de embarque da Air XX (vide auto de apreensão de fls. 26 dos autos).
O aludido telemóvel, os cartões de telemóvel das marcas Xpax Prepaid e one2free, bem como os bilhetes electrónicos de avião foram instrumentos de comunicação e bilhetes de avião usados pela arguida A no transporte de estupefacientes.
A arguida A agiu livre, voluntária, consciente e deliberadamente.
A arguida A sabia perfeitamente que as supramencionadas substâncias trazidas ocultamente no interior do corpo para Macau eram Heroína.
O acto praticado pela arguida A não foi permitido por lei.
A arguida A tinha perfeito conhecimento de que a referida conduta era proibida e punida por lei.
Segundo o certificado de registo criminal, a arguida não tem antecedentes criminais.
A arguida confessou integral e sinceramente os factos que lhe foram imputados, bem como demonstrou arrependimento sincero.
Antes de ser presa, a arguida exercia funções de vendedora de vestuário, auferindo o salário mensal de cerca de 200.000,00 rupiah; tem os pais a seu cargo; e, tem como habilitações literárias o ensino secundário complementar completo.”; (cfr., fls. 327 a 328 e 368 a 371).
Do direito
3. Com o presente recurso busca apenas a arguida recorrente a atenuação especial da pena, assacando ao acórdão recorrido a violação do art. 66° do C.P.M..
Como se consignou em sede de exame preliminar, mostra-se-nos porém ser o recurso manifestamente improcedente, e, por isso, de rejeitar.
Eis o porque deste nosso entendimento.
Nos termos do art. 66° do C.P.M.:
“1. O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2. Para efeitos do disposto no número anterior são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta;
e) Ter o agente sido especialmente afectado pelas consequências do facto;
f) Ter o agente menos de 18 anos ao tempo do facto.
3. Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou em conjunto com outras, der lugar simultaneamente a uma atenuação especial da pena expressamente prevista na lei e à atenuação prevista neste artigo.”
Atento o assim estatuído, tem este T.S.I. entendido que a atenuação especial só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, ou seja, quando a conduta em causa “se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo”, (cfr., v.g., o recente Ac. deste T.S.I. de 11.11.2010, Proc. n° 670/2010).
No caso dos autos, alega a recorrente que “confessou, na íntegra os factos, bem como demonstrou arrependimento sincero”.
Ora, é verdade que assim foi, pois que assim consta do Acórdão recorrido.
Todavia, não se pode olvidar que foi a arguida surpreendida em flagrante delito, pouco valor tendo assim a sua confissão dos factos em audiência de julgamento, o que, desde logo, inviabiliza a consideração de estarmos numa “situação especial” ou “extraordinária” para efeitos do art. 66° do C.P.M..
Por sua vez, importa ter em conta que em causa estão 295,302 (180,357 + 114,945) gramas de “heroína” e que prementes são as necessidades de prevenção deste tipo de crime: “tráfico de estupefacientes”.
De facto, tal ilícito, constitui um dos “maiores flagelos das sociedades actuais”…, impondo-se, por isso, alguma dureza no seu combate.
Dito isto, e re(ponderada) a situação fáctica que, em nossa opinião, não permite que se accione o comando do art. 66° do C.P.M., e outra questão não havendo a apreciar, à vista está a solução.
Decisão
4. Nos termos que se deixam expostos, e em conferência, acordam rejeitar o recurso; (cfr., art°s 409°, n° 2, al. a) e 410°, n° 1 do C.P.P.M.).
Pagará a recorrente a taxa de justiça de 5 UCs, e, pela rejeição, o equivalente a 3 UCs; (cfr., art. 410°, n° 4 do C.P.P.M.).
Honorários ao Exm° Defensor no montante de MOP$900,00.
Macau, aos 17 de Fevereiro de 2011
Jose Maria Dias Azedo (Relator)
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
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