Processo n.º 550/2010
(Recurso cível)
Data : 31/Março/2011
ASSUNTOS:
- Procuração para celebrar negócio consigo mesmo
- Resolução de um contrato-promessa; restituição do dinheiro entregue pelo promitente comprador
- Obrigação de restituição
- Incumprimento definitivo por venda da coisa a terceiro
SUMÁRIO:
Resolvido um contrato-promessa de compra e venda de uma fracção por incumprimento definitivo do promitente vendedor que o vendeu a terceiros, deve o representante do vendedor ser obrigado a restituir o dinheiro recebido pelo promitente comprador – comprovando-se que foi ele que ficou com o dinheiro recebido do promitente comprador -, para mais quando agiu com uma procuração para celebrar negócio consigo mesmo e resulta que terá agido no seu interesse, enquanto credor dos donos da fracção, devendo fazer-se pagar pelo seu crédito com o valor da coisa prometida vender.
O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira
Processo n.º 550/2010
(Recurso Civil)
Data: 31/Março/2011
Recorrente: A
Recorrido: B, aliás, B
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – RELATÓRIO
A, réu melhor identificado na acção em que foi proferida sentença que o condenou a restituir ao autor a quantia de HK$2,200,000.00, na sequência do pedido de resolução de um contrato promessa por parte do promitente comprador B, aliás, B,
- basicamente, por alegado cumprimento, em que os donos de uma dada fracção representados pelo ora recorrente terão transmitido o andar a outrem -,
vem recorrer alegando em síntese conclusiva:
Não se provou nos autos que o autor, para além das quantias de HK$300,000.00 e HK$170,000.00, haja pago qualquer outro montante.
Logo, se não se provou que o autor pagou a quantia HK$1,900,000.00, naturalmente que também não se provou que o réu A a recebeu.
A matéria provada nos autos é, como tal, insuficiente para suportar a conclusão de que o réu A recebeu do autor a quantia de HK$2,200,000.00 e, consequentemente, a decisão que condena aquele a restituí-la a este.
Nessa medida, a sentença recorrida é nula nos termos do disposto no artigo 571º do Código de Processo Civil ou viola o disposto no artigo 562º do mesmo diploma que manda interpretar e aplicar aos factos provados, neste caso inexistentes, as normas jurídicas correspondentes.
Não pode, por isso, o réu A ser condenado a restituir aquilo que, nos autos, não recebeu.
Por outro lado, ainda que assim não fosse, o que apenas se admite por mera hipótese académica, o réu A actuou sempre em nome dos réus C e D razão pela qual os actos praticados pelo primeiro produziram efeitos apenas nas esferas jurídicas dos segundos.
Não se provou nos autos que o réu A recebeu do autor, em nome próprio, a quantia HK$2,200,000.00 mas sim que actuou em nome e por conta dos réus C e D.
Os fundamentos de facto e de direito da sentença recorrida estão, como tal, em franca oposição com a conclusão de que o réu A recebeu do autor a quantia de HK$2,200,000.00 e, consequentemente, com a decisão que condena aquele a restituí-la a este.
Nessa medida, a sentença recorrida é nula nos termos do disposto no artigo 571º do Código de Processo Civil ou viola o disposto no artigo 251º do Código Civil que prescreve que o negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último.
Não pode, por isso, mais uma vez, o réu A ser condenado a restituir aquilo que, nos autos, não recebeu.
Pelo que deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser a sentença recorrida anulada e o 1º réu absolvido do pedido no qual foi condenado.
B ALIÁs B, contra-alega, em síntese:
Não tem razão o recorrente, o qual litiga nos limites da boa fé.
Afirma, repetidamente, que não se provou nos autos que o autor, para além das quantias de HK$300,000.00 e HK$170,000.00, haja pago qualquer outro montante e que, assim, não está demonstrado que recebeu o remanescente do preço no montante de HK$1,900.000.00. E mais: afirma peremptoriamente que não recebeu essa importância.
A prova dada como provada e a prova documental constante dos autos demonstra a sem razão e a litigância temerária do recorrente.
Quando o A. alegou, na sua petição inicial (artigo 17.°) que «Perante tal circunstancialismo, o Autor muniu-se da ordem de caixa emitida em 15 de Abril de 2005, pelo banco da China, Sucursal de Macau, em favor do 1.º Réu, no montante de HK$1,900.000.00» e quando o Mm.º Juiz deu por provado que tal facto (artigo 14° da BI), ambos deram por subentendido e assente que se muniu e procedeu à entrega dessa ordem de caixa ao seu beneficiário, o 1.º Réu, ora recorrente, como, aliás, resulta exuberantemente da fotocópia junta aos autos, a fls. 57, apôs a sua assinatura no documento, a qual se mostra aposta na parte inferior do documento, em relação a cuja autenticidade nunca foram - porque não podem - ser suscitadas dúvidas.
No artigo 44.º da sua contestação o 1.º Réu, ora recorrente impugnou todos os factos constantes, nomeadamente, do art. 17º da petição inicial, não suscitou o incidente de falsidade da sua assinatura aposta no documento supramencionado, demonstrativo de haver recebido o remanescente do preço.
E tanto é assim - e esse tem de ser o entendimento da referida frase que o Mm.º Juiz, no aresto, escreveu «Segundo a matéria de facto acima descrita, não restam dúvidas que para a celebração do contrato-promessa reportado nos autos, o 1º R. recebeu do A. a quantia de HKD$2,200,000.00 (...)».
A afirmação do Réu recorrente, na sua alegação de recurso, de que «Não ficou demonstrado, portanto, que o autor pagou efectivamente essa quantia a quem quer que seja mas apenas que acordou com o réu A pagá-la, tendo-se munido da ordem de caixa nesse valor (de HK$1,900,000.00) a favor deste que, aliás, não sabemos se lhe entregou» é, no mínimo, surpreendente, por não se perceber quem é que faz sua a afirmação, pois a parte não pode mostrar desconhecimento quanto a um facto que tem obrigação de conhecer.
Não pode, pois, a dúvida expressa ter outra interpretação que não seja a de que o 1.º Réu recebeu efectivamente o referido montante de HK$1,900.000.00 (um milhão e novecentas mil patacas) que, agora, ora afirma não ter recebido ora deixa dito que não sabe se recebeu.
Foi justamente por serem devedores do 1.º Réu, ora recorrente, que os 2º e 3º RR, em 1/2/99, outorgaram uma outra procuração, desta vez declarando constituir seu procurador o 1º R., conferindo-lhes igualmente plenos poderes para, entre outros, prometer vender, vender (...) incluindo a prática de negócios consigo mesmo, pelo que, ao negociar a venda da fracção com o Autor, o ora recorrente, sendo credor dos mandantes, celebrou um negócio consigo próprio e no seu próprio interesse.
A 15 de Abril de 2005, quando o 1.º Réu, ora recorrente, decidiu substabelecer sem reserva no Autor os poderes que lhe haviam sido conferidos por C e D, relativamente à fracção autónoma, fê-lo porque tinha já recebido a totalidade do preço do imóvel.
Provada não está a falta de cumprimento culposa quer por parte do 1° R. quer por parte dos 2° e 3° RR. para efeitos de celebração do contrato prometido com o A., este, não tendo direito de exigir o dobro do sinal que prestou, tem, porém, direito a receber a restituição do preço por inteiro.
Nestes termos, uma vez que o A. tem direito à restituição do dinheiro que pagou para efeitos de celebração do contrato definitivo, os 1° e 3° RR. terão que restituir, respectivamente, as quantias do A.
Não restam dúvidas que para a celebração do contrato-promessa reportado nos autos, o 1° R. recebeu do A. a quantia de HKD$2,200,000.00, enquanto a 3ª R. recebeu o montante de HKD$170,000.00.
A procuração é um negócio unilateral que tem como conteúdo típico a outorga de poderes de representação para a execução duma relação subjacente que constitui, no fundo, a sua causa; sendo assim, o interesse aqui relevante, mais do que pela forma, não pode deixar de passar e ser aferido pela relação jurídica em que a procuração se baseia, na perspectiva da execução do negócio que esta traduz, sendo caso típico do interesse do procurador o de este ter contra o dador de poderes uma pretensão à realização do negócio ou o direito a uma prestação deste.
O recorrente, ao contratar com o Autor, no uso da procuração que lhe foi conferida pelos 2.° e 3.° Réus, exercitou um interesse próprio, pelo que o pagamento recebido do Autor - a totalidade do preço da fracção - não constitui um acto que se tenha repercutido de forma directa na esfera jurídica dos mandantes.
A sentença recorrida fez correcta fixação dos factos provados e boa aplicação do direito.
Termos em que, negando-se provimento ao recurso e confirmando a douta sentença recorrida se deve julgar o recurso improcedente.
Foram colhidos os vistos legais
II - FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
“A 4 de Julho de 1996, D declarou constituir seu bastante procurador C nos termos constantes do documento junto aos autos a fls. 64 e 65, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. (A)
A 4 de Outubro de 1996, C, constituiu sua procuradora E, nos termos constantes do documento junto aos autos a fls. 67 e 68, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. (B)
A 4 de Outubro de 1996, C, em representação de D, constituiu sua procuradora E, nos termos constantes do documento junto aos autos a fls. 70 e 71, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. (C)
Pela apresentação nº 150, de 2 de Julho de 1996, foi inscrita a favor de C e D, na Conservatória do Registo Predial, domínio útil da fracção autónoma, para habitação, designada por “B1” do 1º andar B, com direito ao uso do parque de estacionamento nº …, do prédio urbano com os números … a … da Estrada de ……, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 20XXX, a fls. 139 verso do livro BXX, na matriz predial urbana da freguesia de S. Lázaro do Concelho de Macau sob o artigo nº 38XXX. (D)
A 1 de Fevereiro de 1999 C e D declararam constituir seu bastante procurador A nos termos constantes do documento junto aos autos a fls. 49 a 51, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. (E)
A 15 de Abril de 2005, A declarou substabelecer sem reserva no Autor os poderes que lhe haviam sido conferidos por C e D, relativamente à fracção autónoma designada por “B1” do 1º andar B, com direito ao uso do parque de estacionamento nº …, do prédio urbano com os números … a … da Estrada de ……, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 20XXX, a fls. 139 verso do livro BXX, na matriz predial urbana da freguesia de S. Lázaro do Concelho de Macau sob o artigo nº 38XXX, nos termos constantes no documento junto aos autos a fls. 56 e 57 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. (F)
Pela apresentação nº 103 de 17 de Maio de 2005, foi inscrita a favor de E, na Conservatória do Registo Predial, domínio útil da fracção autónoma, para habitação designada por “B1” do 1º andar B, com direito ao uso do parque de estacionamento nº …, do prédio urbano com os números … a … da Estrada de ……, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 20XXX, a fls. 139 verso do livro BXX, na matriz predial urbana da freguesia de S. Lázaro do Concelho de Macau sob o artigo nº 38XXX. (G)
Pela apresentação nº 186 de 14 de Junho de 2005, foi inscrita a favor de F e G, na Conservatória do Registo Predial, domínio útil da fracção autónoma, para habitação designada por “B1” do 1º andar B, com direito ao uso do parque de estacionamento nº …, do prédio urbano com os números … a … da Estrada de ……, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº20XXX, a fls. 139 verso do livro BXX, na matriz predial urbana da freguesia de S. Lázaro do Concelho de Macau sob o artigo nº 38XXX. (H)
Porque havia sido constituída uma hipoteca voluntária sobre tal imóvel para garantia do reembolso de um empréstimo feito aos 2º e 3ª Réus, foi apresentado o pedido de cancelamento junto da Conservatória do registo Predial. (I)
A 1 de Março de 2005, o 1º Réu A, em representação dos Réus C e D declarou prometer vender ao Autor o prédio melhor identificado em D) nos termos constantes do documento junto aos autos a fls. 33, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. (1º)
Tendo estipulado o preço do imóvel e do parque de estacionamento em HK$2,200,000.00 (dois milhões e duzentos mil dólares de Hong Kong) a que correspondem MOP$2,270,400.00 (dois milhões, duzentas e setenta mil e quatrocentas patacas). (2º)
Tendo o Autor pago, no acto da assinatura do contrato-promessa, o montante de HK$300,000.00 (trezentos mil dólares de Hong Kong) através da ordem de caixa nº H25XXXX emitida, em 1 de Março de 2005, pelo Banco da China, Sucursal de Macau, em favor do 1º Réu, A. (3º)
Estipulado ficou que o remanescente do preço – HK$1,900,000.00 (um milhão e novecentos mil dólares de Hong Kong) – seria pago no acto da escritura pública (ou quando ficasse finalizado o negócio). (4º)
E que esta deveria realizar-se até ao dia 15 de Abril de 2005. (5º)
Tendo acordado as partes que o 1º Réu se comprometeria a tratar das formalidades com vista a ser cancelada a hipoteca constituída em favor do Banco da China, Sucursal de Macau. (6º)
O 1º Réu emitiu a declaração constante em F). (6º-A, 7º e 8º)
Por se encontrar em dívida um montante à Fazenda da RAEM, a título de contribuição predial, dívida que passaria a constituir um encargo do autor caso houvesse transmissão da propriedade para si, o Autor e o 1º R. acordaram suspender o processo de celebração da escritura pública até resolução do problema da dívida. (9º)
Tendo-se o 1º Réu comprometido a envidar todos os esforços com vista a ser liquidada a dívida (no valor estimado de MOP$130,000.00), pelos seus proprietários – os 2º e 3ª RR. (10º)
Acordado ficou que o Autor não ficasse prejudicado, o 1.º Réu depositaria, no escritório do Exm.º Causídico Dr. Luís ……, um cheque no valor de cento e vinte mil dólares de Hong Kong a favor do Autor – o que veio a ocorrer – cheque esse que deveria ser-lhe entregue, caso, no prazo de seis meses a contar de 15 de Abril de 2005, não se encontrasse paga tal dívida na Repartição de Finanças, para que o Autor procedesse, então, à liquidação da mesma utilizando tal montante constante do cheque. (11º)
A fracção autónoma destinava-se à casa de morada de família da mãe do Autor. (12º)
Havendo necessidade de proceder a obras de beneficiação e de decoração antes da data prevista para a chegada a Macau da sua mãe. (13º)
O Autor muniu-se da ordem de caixa emitida em 15 de Abril de 2005, pelo Banco da China, Sucursal de Macau, em favor do 1º Réu, no valor de HK$1,900,000.00 (um milhão e novecentos mil dólares de Hong Kong). (14º)
A 15 de Abril de 2005, foi emitida a declaração pelo Banco da China, Sucursal de Macau e feito o respectivo termo de autenticação, com vista a proceder-se ao cancelamento total da inscrição hipotecária em favor daquele estabelecimento bancário. (15º)
O 1º Réu, entregou, no dia 15 de Abril de 2005, ao Autor o recibo comprovativo de que se encontravam pagas todas as prestações relativas às despesas de condomínio referente à fracção autónoma prometida comprar pelo Autor. (16º)
Pagamento esse efectuado no dia 14 de Abril de 2005, no montante de HK$75,700.00 (setenta e cinco mil e setecentos dólares de Hong Kong). (17º)
Nos inícios de Março de 2005, o Autor recebeu as chaves do imóvel. (18º)
O Autor aguardava que o 1.º Réu lhe comunicasse que estava paga a dívida respeitante à contribuição predial. (19º)
Fez obras de reconstrução, beneficiação e decoração, tendo contratado um empreiteiro e adquirindo as matérias-primas necessárias àquele efeito, no que despendeu a quantia de MOP$274,846.00. (20º)
As obras terminaram no dia 28 de Junho de 2005. (21º)
No dia 29 de Junho de 2005, quando se preparava para entrar na fracção autónoma, foi avisado pelos guardas de segurança do edifício de que a fracção autónoma se encontrava ocupada pelos 5.º e 6.ª Réus que haviam mudado a fechadura para nela se introduzirem. (22º)
Provado o que consta da alínea G) dos factos assentes. (24º)
Em 13 de Junho de 2005, E, declarou vender a F e G, que declararam comprar a fracção melhor identificada em D). (25º)
Tendo estes ocupado aquela fracção no dia 29 de Junho de 2005. (26º)
Em finais de 2004, o Autor comprou à D a fracção autónoma destinada a habitação, designada por “J6” a que corresponde o 6.º andar J do prédio sito na Zona dos …… (……), descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º 22XXX, a fls. 50 do livro BXX. (27º, 28º, 29º e 30º)
No decurso do mês de Fevereiro de 2005, D, por sua iniciativa, contactou o Autor dizendo-lhe que era co-proprietária, juntamente com o 2º Réu, de uma fracção autónoma no prédio sito na Estrada de …… – a referida em D)-, que estava à venda por MOP$2,500,000.00 (dois milhões e quinhentas mil patacas) e tinha a área pretendida pelo Autor, embora precisasse de obras de beneficiação e melhoramentos porque se encontrava em muito mau estado de conservação. (31º)
O Autor foi visitar a identificada fracção autónoma e constatou que, fazendo obras estimadas entre 250 mil patacas a 350 mil patacas, poderia transformar a fracção autónoma reconstruindo-a e beneficiando-a, o que significava que podia adquirir uma boa fracção autónoma por HK$2,850,000.00, tendo o Autor considerado ser o preço do mercado e, porque ouvira dizer que os preços ainda iriam aumentar mais, tomou a decisão de a adquirir. (32º)
Quando o Autor comunicou a D a vontade em concretizar o negócio, esta deu a conhecer ao Autor que o 1.º Réu, A, era credor dos proprietários (2.º e 3.ª RR.) de uma dívida no montante de HK$2,200,000.00 (dois milhões e duzentos mil dólares de Hong Kong), razão por que havia entregue tal fracção autónoma àquele. (33º)
Foi o Autor informado que a compra deveria ser negociada com o 1º Réu, A, que interviria, quer no contrato-promessa de compra e venda, quer na escritura pública que titularia a compra e venda do imóvel. (34º)
Ficou ainda acordado entre a 3ª Ré e o Autor que o remanescente de HK$300,000.00 do valor do preço, isto é, a diferença entre o crédito do 1º Réu, e o preço do imóvel devia ser–lhe entregue a ela, 3ª Ré, pelo Autor. (35º)
Foi, então, celebrado o acordo referido em 1), 2) e 3). (36º)
Provado o que resulta da resposta dada ao quesito 9º. (37º)
O Autor pagou o montante de HK$170,000.00 a D. (39º)
O Autor e o 1º Réu, com conhecimento da 3ª Ré, acordaram em proceder ao pagamento da totalidade do preço estipulado. (41º)
Provado o que resulta da resposta dada ao quesito 9º. (42º)
Tendo então sido emitida a declaração referida em F). (43º)
Provado o que consta da alínea G) dos factos assentes. (44º)
A 4ª Ré sabia que a fracção já havia sido entregue ao Autor. (46º)
A 4ª Ré declarou vender aos 5º e 6ª Réus que declararam comprar tal fracção. (47º)
Os 5º e 6ª Réus procederam à mudança das fechaduras das portas da fracção melhor descrita em D). (59º)
Provado o que resulta da resposta dada ao quesito 3º. (62º)
Provado o que resulta da resposta dada ao quesito 16º. (63º)
O 1º Réu acordou com a 3ª Ré a compensação da dívida com o valor recebido da venda daquela fracção. (65º)
Dos montantes que o Autor entregou ao 1º Réu, apenas a quantia de HK$300,000.00, foi a título de sinal. (66º)”
III - FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passa fundamentalmente por saber se a sentença é nula por ter como pressupostos factos não provados, como seja o pagamento do preço da coisa por parte dos AA., enquanto compradores da dita fracção.
E não se deixará de acentuar que este Tribunal de recurso só deve resolver as questões concretamente postas pela parte recorrente e delimitadas pelas conclusões das suas alegações de recurso, transitando em julgado as questões nelas não contidas, mesmo que alguma vez tenham sido invocadas nas mesmas alegações. Neste sentido, o Prof. Alberto dos Reis ao dizer “Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” .
2. O caso
Meramente em termos sincopados:
Os 2º e 3º RR eram os donos da fracção X (fracção dos autos);
Em 4/7/99 o 2º R constitui sua procuradora com poderes de disposição e de negócio consigo mesmo a 4ª R.;
Em 4/10/99 a 3ª R também constitui sua procuradora com poderes de disposição e de negócio consigo mesmo a 4ª R.;
Em 1/2/99 os 2º e 3º RR constituem seu procurador com poderes de disposição e de negócio consigo mesmo o 1º R;
Em 1/3/2005, em representação dos 2º e 3º RR o 1º R promete vender X aos AA por HKD 2.200,00;
Tendo sido naquele acto pagos HKD300.000,00 ao 1º R. e sido acordado que os restantes HKD 1.900.000,00 seriam pagos ao 1º R por este ser credor dos 2º e 3º RR;
A escritura devia ser realizada até 15 de Abril 15/4/2005;
Nos inícios de Março de 2005 o A. recebeu as chaves de X;
Nessa data, em 15/4/05, os AA. muniram-se de uma ordem de caixa de HKD 1900.000,00 a favor do 1º R e o 1º R substabelece os poderes sobre X nos AA;
Em 17/5/2005 a 4ª R regista a aquisição de X;
Em 17/6/2005, por venda da 4ª R, os 5ºs RR registam X a seu favor.
No dia 29/6/2005 quando o A. vai entrar em X é avisado pelos guardas de segurança que a casa estava ocupada pelos 5ºs RR.
3. O litígio
Como é fácil de ver o litígio estava desencadeado.
Vieram os AA. pedir a juízo que se declarasse a nulidade dos negócios celebrados entre os 2º e 3º RR e a 4ª Ré e entre esta e os 5ºs RR, por alegada simulação, em termos muito gerais, por fraude e conluio entre as partes, com o intuito de prejudicarem os AA, todos bem sabendo que o 1º R era credor dos donos da coisa.
Assim não se entendendo, pediram se declarasse a resolução do contrato-promessa de 1/3/2005, por incumprimento definitivo e culpa dos 1º, 2º e 3º RR e com condenação destes a pagarem o dobro do sinal, para além do pedido à 4ª Ré do pagamento de obras de remodelação feitas na aludida fracção.
A final, veio o Mmo Juiz a quo a considerar apenas o pedido subsidiário, declarando resolvido o contrato-promessa de 1/3/05, condenando o 1º R. a restituir ao A. a quantia de HKD 2.200.000,00 e a 3º Ré a pagar-lhe a quantia de HKD 170.000, quantia esta adiantada pelo A. por despesas inerentes à fracção, no mais absolvendo os RR. dos pedidos.
4. Apenas vem recorrer o 1º R. e fá-lo pedindo a nulidade da sentença nos termos do art. 571º do Código de Processo Civil (CPC) ou por violação do art. 562º do mesmo diploma, baseando-se nos seguintes argumentos:
- Não ficou demonstrado que o A. pagou HKD 1.900.000,00 a quem quer que seja, mas apenas acordou com o 1º R. em pagá-la;
- Não se provou que o 1º R recebeu do A. em nome próprio, a quantia de HKD2.200.000,00;
- Actuou em nome e por conta dos 2º e 3º RR;
- Não pode ser condenado a pagar aquilo que não recebeu.
5. Ora, há muitas maneiras de dizer que o preço foi pago, não sendo necessário descrever todos os actos materiais da detenção do título de pagamento, do modo, forma detalhada, da sua entrega brevitatis manu, do recebimento pela outra parte e sua guarda e recolha.
A descrição fáctica de um determinado acontecimento contenta-se com uma formulação donde não resultem dúvidas quanto à sua existência. E essa formulação mostra-se como evidente pela leitura da factualidade acima transcrita. Ele é o acordo prévio, o próprio contrato, a entrega das chaves, o acordar sobre o pagamento da totalidade do preço, o facto de o A. se munir de uma ordem de caixa do Banco da China a favor do 1º R naquele apontado valor, a entrega de um título com poderes transmissivos e aquisitivos sobre a coisa, tudo apontando, dentro dos critérios de normalidade que o A procedeu a esse pagamento.
Mas o que é grave é que o recorrente venha invocar um facto que se verificou, não podia ignorar que aconteceu, e declara até, por confissão expressa, a sua existência.
No artigo 25º da sua contestação declara expressamente que “o 1º Réu, após ter recebido do autor, em nome e representação dos 2º e 3º réus e de acordo com as instruções expressas da última, o sinal e o preço da fracção, acordou com a 3º ré proceder à compensação da quantia em causa com o valor do seu crédito sobre aqueles”.
Este é um facto - o do pagamento do sinal e do preço - que resulta das alegações das partes, se mostra admitido por confissão e sendo relevante, como é, na alegação do recorrente, deve ser relevado por este Tribunal, independentemente do facto de ter sido vertido na matéria especificada ou quesitada - art. 629º, n.º 1, a) e 562º, n.º 3 do CPC.
Vir negar nesta sede um facto admitido nos autos configura manifesta má-fé e como tal não deixará o recorrente de ser condenado.
6. Mas como vimos não foi apenas no fundamento da não comprovação da entrega do dinheiro em que se estribou o recorrente.
Ainda que imperfeitamente expresso não se deixa de vislumbrar, tal como já assinalado, que o recorrente pretende imputar aos 2º e 3º RR o dever de restituírem o dinheiro ao A., porquanto terá agido na qualidade de procurador, repercutindo-se os efeitos dos actos por si praticados na esfera jurídica do representado.
Desde logo se anota que não se trata de uma obrigação de indemnização pelo incumprimento, mas sim numa obrigação de restituição do que foi recebido.
Ora, em termos de um mero juízo de regedoria a questão que logo surge é saber quem recebeu o dinheiro, pois que deve ser esse a repor. E aí, nada nos autos nos diz que não foi o 1º R. que recebeu o dinheiro, antes pelo contrário, como acima se viu.
Mas ao Tribunal exige-se mais do que uma mera regedoria; exige-se-lhe a aplicação do direito e o correcto enquadramento jurídico dos actos praticados.
Numa primeira análise poderia parecer que, tendo ele agido como representante dos 2º e 3º RR, os actos por si praticados produziriam efeitos na esfera destes últimos, donde a responsabilização destes em termos de consequências no incumprimento ou impossibilidade de realização do contrato prometido.
Poder-se-ia até pensar que haveria entre eles uma relação de solidariedade, mas este enquadramento é afastado na medida em que não se alcança qual a fonte para a solidariedade da obrigação, face ao que dispõe o artigo 506º do C. Civil (CC) e essa solidariedade não resulta da representação, seja por via da procuração passada a favor do 1º R. por parte dos 2º e 3º RR, seja por qualquer outra via.
Teremos então de ensaiar uma outra via.
Embora, em tese, se possa considerar, face ao disposto no artigo 251º do CC que deviam ser os 2º e 3º RR a restituir o dinheiro pago pelo contrato-promessa e daí derivaria uma obrigação autónoma, não podemos ignorar que o 1º R era um procurador munido com poderes para celebrar negócio consigo mesmo e não será atrevimento concluir no sentido, face à globalidade da matéria provada, que essa procuração relativa àquela fracção lhe foi dada para satisfação do crédito que ele tinha sobre os 2º e 3ª RR, tendo sido nesse contexto que ele, por sua vez contratou com o A.
Aliás, não há dúvida que foi acordado com os donos da fracção que o dinheiro correspondente àquele crédito de MOP 1.900.000,00 devia ficar com o 1º R. e que em relação ao remanescente de MOP300.000,00 ele se comprometia a restitui-lo àqueles.
Daqui resulta que o 1º R. terá agido, pelo menos com um interesse próprio, donde não chocar, para mais, sabendo-se que foi ele que recebeu o dinheiro e não tendo invocado que se desfez dele ou o canalizou para os donos do negócio – os donos da fracção, promitentes vendedores -, configurando-se que nasce aí uma obrigação autónoma da dos representados e que se deve traduzir na restituição do que foi prestado pelo A. e por ele recebido.
Reforça esta posição a situação jurídica do representante com poderes de negócio consigo mesmo, descortinando-se aqui, como se descortina, a relação subjacente que conduz à outorga daquela procuração, descortinando-se como se descortina, que, não obstante os poderes de representação, a sua actuação sai reforçada, não se devendo deixar de imputar as consequências na esfera jurídica de quem, no fundo, tira proveito com o negócio, neste caso, a satisfação do seu crédito.
E não será despiciendo recordar que aquela procuração era irrevogável, visto o interesse do representante, como flui do artigo 258º, n.º 3 do CC.
Não se deixará ainda de referir, sobre a questão da repercussão dos efeitos do negócio do representante munido com uma procuração com poderes para celebrar negócio consigo, que esses efeitos, como doutrinária e jurisprudencialmente se admite, de certa forma se transferem para a esfera do representante no quadro fáctico em presença, importando não esquecer que o 1º R. era credor dos donos da fracção que acordaram com ele passar-lhe essa procuração e que o preço da transmissão da coisa valeria para pagamento da sua dívida por via da compensação que acordaram operasse naquele caso em concreto.1
Ora se esta abordagem se mostra válida para a restituição do montante correspondente a MOP1.900.000,00 poderia parecer que já não assim em relação ao restante.
Só que em relação ao montante restante, não obstante ter sido acordado que o 1º R. o devia entregar à 3º R., tal facto, respeitante à entrega efectiva, não vem comprovado, nem alegado, donde resultar que uma não restituição desse montante reverteria sempre numa situação injusta para o promitente comprador que se veria a braços sem a fracção e sem o dinheiro, para já não falar no seu desapossamento e nas obras de melhoria da coisa.
Até porque, mesmo com base na aludida obrigação autónoma de cada um dos 2º e 3ª RR, por um lado, e do 1º R, por outro, já não por via de uma obrigação de solidariedade baseada em fonte legal, nunca se poderia, nesta sede, face ao âmbito da extensão subjectiva do caso julgado decorrente do artigo 558º do CPC, condenar os 2º e 3ª RR a pagar ao A. qualquer quantia, vista a sua absolvição nos autos e inexistência de recurso quanto a essa decisão por quem com interesse e legitimidade.
Por tudo quanto exposto, o recurso não deixará de improceder, devendo o recorrente ser condenado como litigante de má-fé, na medida em que veio esgrimir com a falta de prova de um facto que não só não podia ignorar, como ainda ele próprio o confessou nos autos, facto esse que foi respeitante ao recebimento do preço da fracção.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Mais acordam em condenar o recorrente como litigante de má-fé na multa de 10 Ucs - artigos 385º, n.º 2, a) do CPC e 101º, n.º 2 do C. das Custas.
Custas pelo recorrente.
Macau, 31 de Março de 2011,
João A. G. Gil de Oliveira (Relator)
Ho Wai Neng (Primeiro Juiz-Adjunto)
José Cândido de Pinho (Segundo Juiz-Adjunto)
1 - Numa aproximação da relevância da efectiva relação subjacente à outorga da procuração, Vaz Serra, RLJ, ano 109º, 124
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