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Recurso Jurisdicional n. 226/2008
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 17 de Março de 2011
Descritores: Marcas
Elementos gráficos

SUMÁRIO:
I- A marca exerce uma função de garantia de qualidade não enganosa, visando associar um produto ou serviço a determinado produtor ou prestador e evitar no consumidor o erro e a confundibilidade de origem e proveniência.
II- Nesse sentido, uma marca que exclusivamente inclua termos genéricos ou descritivos, que apenas sirvam para designar a qualidade do produto ou do serviço, em princípio não pode ser objecto de registo.
III- Todavia, por vezes, marcas com sinais e termos em língua estrangeira, relativamente ao país onde se faz o registo, podem ser devidamente identificáveis, individualizáveis, distinguíveis, mesmo que cada um dos termos, singularmente, não passe de mero qualificativo.






Processo n. 226/2008
(Recurso jurisdicional)

Acordam no Tribunal de 2ª Instância da R.A.E.M.

I- Relatório:
“A”, sociedade norte-americana com os demais sinais do autos, interpôs recurso contencioso dos despachos proferidos pela Senhora Chefe do Departamento da Propriedade Intelectual da Direcção dos Serviços de Economia, datados de 18/04/2007, que recusaram o registo da marca solicitada com os n./s 22.331 e 22332, com os dizeres “XXX”.
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Foi na oportunidade proferida sentença no TJB, datada de 12/12/2007, que julgou improcedente o recurso.
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É dessa sentença que agora vem interposto o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações “A” apresentou as seguintes conclusões:
“a) A Recorrente requereu o registo das marcas N/XX e N/XX “XXX”, nas classes 3.a e 5.ª;
b) A DSE recusou o registo por considerar as marcas descritivas, à luz do disposto no artigo 199.º, al. b) do RJPI;
c) A expressão XXX é, no seu conjunto, uma expressão de fantasia e sugestiva de determinadas características dos produtos assinalados;
d) Não se trata de uma expressão descritiva de tais qualidades e características;
e) A sentença recorrida violou, pois, o disposto nos artigos 197.º e 199.º do RJPI “.
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Alegou também a entidade recorrida, a qual formulou as seguintes conclusões:
“1.º
Nada a comentar aos factos processuais enunciados nas alíneas a) e b);
2.º
No que concerne às alíneas c) e d), não consideramos a marca registanda uma marca de fantasia porque a marca em crise é constituída por duas palavras que indicam a qualidade do produto “X” - “X” e “X” - “X”; a marca não é meramente sugestiva, como nos quer fazer crer a Recorrente, mas meramente descritiva:
<< um eventual efeito terapêutico ou cosmético assinalado com esta marca(...) >> n.º 19 das alegações.
3.º
Quanto à violação dos art.ºs 197 e 1991 do RJPI, remetemos para a douta sentença Recorrida.
Conclusão
Deverá pois, ser negado provimento ao recurso e manter-se a decisão do Tribunal a quo”.
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Cumpre decidir, colhidos os vistos legais.
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II- Os Factos
A sentença impugnada deu por assente a seguinte factualidade:
1. Em 18 de Maio de 2006 a Recorrente requereu o registo de marca para produtos na classe 3ª, que tomou o nº N/XX.
2. Em 18 de Maio de 2006 a Recorrente requereu o registo de marca para produtos na classe 5ª, que tomou o nº N/XX.
3. A marca registanda é composta por dois elementos - “XXX”.
4. O DIP recusou os registos da marca em ambos os aludidos processo nos termos constantes dos despachos junto aos autos a fls. 7/8 e 10/11 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
5. Tais despachos foram publicados no Boletim Oficial do dia 6 de Junho de 2007.
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III- O Direito
O que está em causa no presente recurso consiste em saber, muito simplesmente, se “XXX” pode constituir uma marca, como o pretendia a recorrente, ou se as palavras que compõem o conjunto não são mais do que meras qualidades ou atributos de um produto, logo, sem as propriedades identificadoras e distintivas que devem caracterizar uma marca, tal como o defenderam os despachos recorridos e o sufragou a sentença ora em crise.
Vejamos.
Decorre do art. 197º do RJPI, aprovado pelo DL n. 97/99/M, de 13 de Dezembro, que só pode ser objecto de protecção, mediante um título de marca, …”o sinal ou conjunto de sinais de representação gráfica, nomeadamente palavras, incluindo nomes de pessoas, desenhos, letras, números, sons, a forma do produto ou da respectiva embalagem, que sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas”.
A forma ampla com que a noção é vertida na norma tem sido objecto de estudo diverso, mas para o caso que aqui nos interessa, importa apenas que nos fixemos nos seus aspectos jurídicos mais essenciais.
Assim, genericamente, a marca visa, entre outras funções aqui menos prestáveis, distinguir um produto ou serviço de outro, de modo a que ele se impute a uma empresa e não a outra e, portanto, evitando-se um uso enganoso perante o público. A marca indica uma origem de base pessoal e desempenha uma função de garantia de qualidade não enganosa2.
O consumidor, em defesa de quem a marca em última instância é registada, através dela associa, rápida, fácil e comodamente o produto e as suas qualidades a uma determinada origem ou proveniência3. Isto é, sabe que está perante um produto que procede de uma empresa determinada. Embora a marca não tenha por missão garantir a qualidade do produto (embora o empresário procure mantê-la de forma a defender, conservar ou ampliar a sua clientela), ao menos permite que o produto ou serviço seja imediatamente associado ao produtor ou ao prestador4. A última palavra na escolha pertence ao consumidor, é certo, mas para tanto ele deve ter a certeza de que está a fazer a opção consciente e livre. Ou seja, ele tem que saber o que compra e a quem5 compra.
O que acaba de dizer-se entronca numa questão nem sempre presente na discussão em torno da marca. Tem que ver com evicção do erro, com a confundibilidade no espírito do destinatário da marca, o homem médio, o cidadão comum eventualmente interessado no bem ou no serviço. Claro está que há cidadãos que são minuciosos, que por natureza perscrutam em detalhe, mais do que é regra geral, o sentido e a função das coisas e que, por isso, dificilmente se deixam enganar. Não é bem para esse tipo de pessoas que a marca exerce o seu papel primordial, mas sim para o conjunto de pessoas que se inscrevem no universo da regra6.
É para este somatório alargado de consumidores que o princípio da singularidade ganha relevância quando a norma fala em sinais adequados a distinguir os produtos7.
Mas, o próprio diploma desce mais fundo de forma a reduzir o leque de eventuais dificuldades resultantes da amplitude da norma do art. 197º. E assim é que, a alínea b), do número 1, do art. 199º dispõe, que “Não são susceptíveis de protecção os sinais constituídos exclusivamente por indicações que possam servir no comércio para designar a espécie, a qualidade, a quantidade, o destino, o valor, a proveniência geográfica ou a época de produção do produto ou da prestação do serviço, ou outras características dos mesmos” (negrito nosso).
Ora, em primeiro lugar, ficam fora de protecção os sinais que somente sirvam para realçar alguma qualidade do produto em marcas que apenas (exclusivamente) usem esses sinais. Percebe-se bem a razão: sendo essa qualidade igual à de outros produtos da mesma espécie ou classe, os sinais utilizados não serviriam como referência distintiva, não seriam capazes de levar o consumidor a identificá-los e, então, não exerceriam a função da marca.
Por exemplo, nomes com os dizeres “Pura lã” (tecidos) ou “fresco leve” (classe de vinhos) não servem como marcas, porque são designações que não chegam a individualizar e distinguir os produtos em causa. São meros traços descritivos que se podem aplicar a todos os produtos da mesma classe. E às vezes até servem para aplicação simultânea a classes diferentes de produtos ou serviços. Por exemplo, “Serviço: 24 horas”, tanto serve para caracterizar os serviços de uma clínica, de um posto de abastecimento de combustível ou de reboque de viaturas acidentadas8. Não podem servir de marca.
Certo é, porém, que nem tudo o que é genérico e descritivo, mesmo que utilizado em sinais de exclusividade, isto é, desacompanhado de outros sinais mais identificadores, fica arredado da integração numa marca. Para ilustrar o que queremos dizer, ainda que não chegue a ser marca no sentido estrito do termo, recordamo-nos da designação “XX”. Em princípio qualquer serviço ou produto pode caber no âmbito desta expressão. Todavia, quando se fala no “XX” todo o mundo associa este conjunto de palavras ao nome de um treinador de futebol conhecido internacionalmente9. Serve esta ilustração apenas para dizer que, por vezes, os sinais, mesmo se descritivos e genéricos e, portanto, aplicáveis a uma infinidade de produtos e serviços, também podem servir como marcas quando aqueles produtos e serviços, antes do registo e após o uso e publicidade que deles foi feito, tenham assentado no grande público com carácter ou capacidade distintiva10.
Levada ao extremo a limitação prevista na referida norma, nunca seria possível a marca “XX”, porque referente a um produto (frango) e a uma proveniência genérica (quinta, por contraste com aviário) aplicável a todos os produtores de frango que não fossem de produção extensiva em aviário. No entanto, essa marca existe (v.g. em Portugal).
Levada a um tal limite interpretativo, a marca constituída pelo único vocábulo “façonnable”, que quer dizer “à moda” ou “na moda”, não seria permitida. Trata-se de uma mera qualidade, que em princípio faria parte da previsão do preceito. E no entanto a marca existe. Por vezes, marcas com sinais e termos em língua estrangeira, relativamente ao país onde se faz o registo, podem ser devidamente identificáveis, individualizáveis, distinguíveis. Este exemplo, aliás, explica que os termos, quando saltam as fronteiras do território da língua original, para se espalharem por países de outras línguas, adquirem uma significação própria e diferente da sinonímia nativa e do significado genético e semântico original. Hoje, quando alguém fora de França pensa nessa marca não representa aquilo que o termo quer dizer na língua de Voltaire. Simplesmente pensa numa marca internacional de roupa e em mais nada.
Terá sucedido, pensamos nós, algo parecido com uma marca conhecida de cosméticos/shampoos. Se só o termo “orgânico” é qualificativo e podia servir para muitos produtos diferentes, a verdade é que se aceita em toda a parte do mundo, segundo cremos, que a marca exista no plural “organics”, porque aí algo mais foi levado à marca, induzindo a ideia de produto/s. Esta simples alteração na palavra tornou-a graficamente diferente da palavra-base e passou a constituir uma nova e diferente entidade gráfica, individualizável e com um sentido próprio.
Somos, pois, levados a pensar que as palavras XXX, embora tenham cada uma, de per si, um significado próprio, adjectivante ou qualificativo, quando formadas em conjunto criam uma entidade nova com uma significação não necessariamente coincidente com a dos seus elementos. De resto, se X é suave e X representa a ideia de algo que provém da natureza – portanto, ambos qualificativos – a verdade é que a adição do “s” na palavra natural reserva ao conjunto uma ideia de produto (o s terá ali a função de apóstrofo). Deixam de ser apenas duas palavras que exprimem outras tantas qualidades, para passarem a ser um conjunto que contém implícita a ideia de produtos+naturais+suaves.
E assim, aquilo que à primeira vista podia não passar de dois adjectivos juntos, pode, em nossa opinião, passar a ser uma marca composta de duas palavras que adquiriram um sentido substantivo que o empresário quer que seja identificador de um produto ou uma classe de produtos e com uma certa qualidade intrínseca, sem que, no entanto, isso obste a que outro empresário crie uma marca nova que leve apendiculadas as mesmas palavras. Porque o dizemos? Porque em “XXX” a marca é, em si mesma, uma unicidade distintiva, forma um conjunto único de palavras que mais ninguém pode usar dessa mesma exacta forma, ao passo que em diferente conjunto elas podem ser usadas, na mesma ou diferente ordem, desde que o traço distintivo essencial vá buscar-se a outro sinal gráfico, nomeadamente a outra ou outras palavras (por exemplo, “New Face - X and X”. Que fique então claro: o conjunto único “XXX” é uma marca identitária e ninguém mais a pode usar. Porém, as palavras “X”e “X” podem vir a fazer parte de outra marca, em certos casos, se não forem usadas em conjunto igual, mas em diferente grupo de sinais gráficos. Saber se essa nova marca é atentatória de leal concorrência ou se é indutora de erro, é já questão diferente e posterior, discutível noutra sede e noutro tempo.
Parece-nos, pois, que a disposição citada não gera obstáculo ao registo da pretendida marca. De resto, até mesmo a circunstância de a marca ser constituída pelos sinais incluídos na previsão do art. 199º, al. b), do RJPI não é causa forçada de recusa de registo, pois ele não será recusado se, antes ou depois, tiver adquirido carácter ou capacidade distintiva, naquilo a que se chama secondary meaning, de origem ango-saxónica.11
Ora, que esta marca adquiriu, ou terá adquirido, essa capacidade distintiva, reside no facto de a própria recorrente, com base em normas praticamente iguais, existentes nos arts. 2º e 3º, n.1, al. c), da Directiva n. 89/104/CEE, de 21/12/198812, ter conseguido, para um universo vastíssimo de povos e consumidores, obter o registo comunitário da mesma marca (número 004986014), publicado no Boletim de Registo Comunitário de Marcas n. 2007/005, de 05/02/2007, conforme documento de fls. 14 a 17 dos autos.
Estas, em suma, as razões para não acompanharmos a sentença recorrida.
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IV- Decidindo
Face ao exposto, acordam os juízes que compõem este colectivo em conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e anulando os despachos administrativos em causa, que deverão ser substituídos por outros que concedam as marcas requeridas, salvo se a tanto outra causa obstar.
Sem custas em ambas as instâncias.

Macau, 17 de Março de 2011.

_________________________
José Cândido de Pinho
(Relator)

_________________________
Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)

_________________________
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)


Processo nº 226/2008
Declaração de voto de vencido

Vencido por entender que as marcas registandas, consistentes nas expressões inglesas XXX, para os produtos nas classes 3ª e 5ª, quando desacompanhadas de outros elementos, carecem de capacidade distintiva, uma vez que são expressões descritivas da qualidade dos produtos integráveis nas classes 3ª e 5ª e que em face do disposto no artº 199º/1-b) e no artº 214º/3, a contrario, ambos do RJPI, é de recusar o pedido de registo.

RAEM, 17MAR2011


O juiz adjunto,


Lai Kin Hong



1 [A fim de assegurar uma concorrência saudável da vida comercial, e no interesse da protecção dos consumidores, relativamente ao uso das marcas, o RJPI define o objecto de protecção no artº 197º. Atento o nuclear principio da liberdade na composição da marca, a lei estabelece limites e excepções à protecção da marca, os quais elenca no art.º 199. Estes limites e excepções visam assegurar as finalidades da protecção das marcas a que acima referimos.
Um sinal, para poder ser considerado como marca, como já se disse, deve possuir a necessária eficácia ou capacidade distintiva, não sendo admissíveis o que a doutrina designa normalmente como sinais descritivos, tais como denominações genéricas que identificam os produtos ou os serviços, expressões necessárias para indicação das suas qualidades ou funções e que em virtude do seu uso generalizado, como elementos da linguagem comum não podem ser monopolizados. E se não fosse este o entendimento unânime na doutrina e na jurisprudência, o disposto no n.º 1 al. a) e b) do art.º 199 supra citado não deixa de ser claro: “(...)”.] In Ac proferido no TSI, proc n.º 116/2002 de 17/10/2002.
2 Luis M. Couto Gonçalves, in “Função da Marca”, na obra colectiva Direito Industrial, Vol. II, Almedina, pag. 99 e sgs.
3 Não nos referimos, neste passo, à proveniência geográfica, que também tem as suas especificidades, mas que no nosso caso não merecem análise por não estar no centro da controvérsia jurisdicional.
4 Neste sentido, Alberto Francisco Ribeiro de Almeida, in “Denominações Geográficas e marca”, na citada obra, a pag.371 e sgs.
5 Não nos referimos, obviamente, à relação directa entre comprador e imediato revendedor, mas sim, à indirecta estabelecida entre o adquirente final e o produtor ou fabricante.
6 Sobre o assunto, Adelaide Menezes Leitão, in “Imitação servil, concorrência parasitária e concorrência desleal”, na obra colectiva citada, Vol. I, pag. 122/128.
7 José Mota Maia, Propriedade Industrial, Vol. II, Código da Propriedade Industrial Anotado, Almedina, 2005, pag.393
8 Sobre o assunto e outros exemplos, ver Jorge Manuel Coutinho de Abreu, in Curso de Direito Comercial, Almedina, 4a ed., pag. 365. Também José Mota Maia, in ob. cit., apg.397.
9 Falamos de José Mourinho, famoso treinador de futebol português.
10 Neste sentido, Jorge M. Coutinho de Abreu, in ob. cit. pag. 366.
11 J. Manuel Coutinha de Abreu, ob. cit. pag. 366.
12 Art. 2º: “Podem constituir marcas todos os sinais susceptíveis de representação gráfica, nomeadamente palavras, incluindo os nomes de pessoas, desenhos, letras, números, a forma do pedido ou da respectiva embalagem, na condição de que tais sinais sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outra empresa”.
Art. 3º, n. 1, al. c): “Será recusado o registo ou ficarão sujeitos a declaração de nulidade, uma vez efectuados, os registos relativos …as marcas constituídas exclusivamente por sinais ou indicações que possam servir, no comércio, para designar a espécie, a qualidade, a quantidade, o destino, o valor, a proveniência geográfica ou a época de produção do produto ou da prestação do serviço” (negrito nosso).
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