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Processo nº 206/2007
(Autos de Recurso Contencioso)

Data: 31 de Março de 2011


ASSUNTO
- Processo disciplinar
- Nulidade do acto
- O dever de zelo


SUMÁRIO
- Só são nulos os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade (cfr. nº 1 do artº 122º do CPA).
   - O dever de zelo consiste em exercer as suas funções com eficiência e empenhamento e, designadamente, conhecer as normas legais e regulamentares e as instruções dos seus superiores hierárquicos, bem como possuir e aperfeiçoar os seus conhecimentos técnicos e métodos de trabalho.

O Relator,

__________________________
Ho Wai Neng
Processo nº 206/2007
(Autos de Recurso Contencioso)

Data: 31 de Março de 2011
Recorrente: A
Recorrido: Secretário para a Segurança (保安司司長)

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I – Relatório
A, melhor identificado nos autos, vem interpor o presente Recurso Contencioso contra o despacho nº 09/SS/2007, de 25/01/2007, do Secretário para a Segurança, que indeferiu o recurso hierárquico necessário por si interposto, relativamente à decisão do Director do EPM, proferido no âmbito do processo disciplinar nº 0005-PDD/EPM/2006, que o puniu com a pena de multa no valor de MOP$12.000,00 (doze mil patacas), concluíndo que:
1. O Despacho nº 09/SS/2007, de 25 Janeiro do Secretário para a Segurança, do Governo de Macau que indeferiu o Recurso Hierárquico Necessário interposo pelo Recorrente, relativamente ao Despacho de Decisão proferido pelo Director do EPM, (notificado ao Recorrente a 30 de Novembro de 2006), que o puniu com a pena de multa no processo disciplinar nº 0005-PDD/EPM/2006, deve ser declaro nulo por declarar conforme quer materialmente quer formalamente, com as exigências legais uma acto inexistente juridicamente como é o despacho da decisão punitiva.
2. O acto recorrido está ferido de nulidade por contrariar a hierarquia das normas, os Princípios da Legalidade, Justiça, Igualdade, Protecção da Confiança e Segurança Jurídica relativamente à actividade administrativa na prossecução do interesse público, com o que contraria o disposto nos arts. 3º; 4º; 7º; 5º; todos do Código do Procedimento Administrativo.
3. Deve o acto recorrido ser nulo por manifesto erro na apreciação dos pressupostos de facto e de direito, relativamente a toda a prova documentada nos autos de processo disciplinar nº 0005-PDD/EPM/2006.
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Regularmente citada, a entidade recorrida contestou nos termos constantes a fls. 46 a 50 dos autos, cujo teor aqui se dá integralmente reproduzido, pugnando pelo não provimento do recurso.
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Só a entidade recorrida é que apresentou alegações facultativas, mantendo, no essencial, a posição já tomada na contestação.
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O Ministério Público é de parecer da improcedência do recurso.
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Foram colhidos os vistos legais dos Mmºs Juizes-Adjuntos.

II – Factos
É assente a seguinte factualidade:
1. Em 30 de Novembro de 2006, o recorrente foi notificado de que em virtude do processo disciplinar n.º 0005-PDD/EPM/2006, lhe é aplicada uma multa no valor MOP$12.000,00 (doze mil patacas).
2. A decisão da aplicação da pena multa do Director do E.P.M. de 24/11/2006, teve por base o relatório elaborado pelo Ilustre Instrutor do Processo Disciplinar.
3. No aludido processo disciplinar, foram considerados provados os seguintes factos:
i. O arguido A exercia funções na Secção Financeira deste Estabelecimento Prisional desde Abril de 2000, na altura designada de Secção de Contabilidade.
ii. No âmbito destas funções, e entre outras tarefas, ao arguido cabia a responsabilidade do processamento de reposições à Administração de quantias indevidamente pagas ou descontadas a funcionários ou ex-funcionários. Esta responsabilidade foi, aliás, comprovada em autos de verificação das pastas de arquivo das guias de reposição (a folhas 27 e 42 a 43 do processo disciplinar), onde se constatou que, na grande maioria dos casos, coube ao arguido o processamento das guias de reposição referentes a pagamentos ou descontos indevidos efectuados quer em anos anteriores (modelo B) quer no ano corrente (Modelo R).
iii. De acordo com as normas de procedimento praticadas ao longo dos vários anos, os funcionários da Secção Financeira, após terem conhecimento da obrigatoriedade de reposição, processam as guias (cujos modelos constam destes autos a folhas 16 a 25), avisam os funcionários a quem cabe a reposição, os quais após notificação, entregam directamente as respectivas quantias na Recebedoria dos Serviços de Finanças de Macau no prazo máximo de quinze dias.
iv. Por outro lado, e de acordo com o Decreto-Lei 59/94/M de 5 de Dezembro, em vigor à data dos factos, decreto esse que regula as reposições de quantias indevidamente pagas por entidades públicas, os funcionários da Secção Financeira têm um prazo de dez dias para emitirem as guias a partir do momento em que é ordenada a reposição (art°8°).
v. No dia 2 de Fevereiro de 2006, o arguido A, antes de se ausentar do Serviço por motivo do cumprimento de uma pena de suspensão aplicada em anterior processo disciplinar, foi instado pela Chefe da Secção substituta, B, a apresentar os assuntos que tinha pendentes no âmbito das suas tarefas, a fim de os mesmos serem redistribuídos por outros funcionários da Secção.
vi. Face a esta solicitação, o arguido entregou à B a quantia de oito mil duzentas e sessenta e nove patacas($8.269,00) juntamente com uma nota manuscrita onde constava uma lista com os nomes de seis ex-funcionários (C, D, E, F, G e H) a quem tinha sido ordenada a reposição de quantias indevidamente recebidas, com a indicação dos respectivos montantes e dos motivos da reposição (conforme declarações do arguido a folhas 29 a 32 e conforme relatórios elaborados pela B a folhas 1 e 39 a 40 destes autos).
vii. Aquele montante, entregue à Chefe de Secção B na data acima referida, foi recebido pelo arguido A no seu local de trabalho das mãos dos ex-funcionários constantes na lista, o que foi confirmado por quatro deles em autos de declarações (a folhas 52 a 53, 68 a 69, 73 a74 e 75 a 76), entregas essas ocorridas em várias datas não precisadas, mas situadas entre os meses de Julho e Setembro de 2005 ( conforme declarações do próprio arguido a folhas 32).
viii. Para além de receber as quantias em dívida daqueles ex-funcionários sem que estes tivessem assinado qualquer documento comprovativo dessa entrega, o arguido A não processou as guias no prazo estipulado por lei, tendo somente dado conhecimento da situação à Chefe substituta B em 02 de Fevereiro de 2006, tendo por isso mantido em seu poder essas quantias durante pelo menos quatro meses.
ix. O arguido justificou ter agido desse modo, ao declarar que, à semelhança de casos anteriores autorizados pela Chefe de Secção, e uma vez que se tratavam de ex- funcionários, apenas pretendia facilitar-lhes a vida, evitando o inconveniente de os mesmos terem que se deslocar várias vezes ao Estabelecimento Prisional e aos Serviços de Finanças.
x. Por outro lado, o arguido afirmou ter dado conhecimento do facto à Chefe de Secção I, a qual exercia na altura aquelas funções em regime de Substituição, e que a mesma teria concordado com esse procedimento excepcional.
xi. No entanto, a I não corroborou as declarações do arguido, tendo por sua vez declarado não ter sido por ele contactada sobre o assunto, desconhecer que o A tivesse recebido dinheiro de reposições e que só viria a ter conhecimento desse facto já em Fevereiro de 2006, quando o arguido entregou as quantias à B (conforme autos de declarações a folhas 45 a 46, 63 e 72 destes autos).
xii. Ficou, com efeito, provada a existência de cinco casos ocorridos em 2005: J, K, L, M e N; a que correspondem as guias do modelo R de reposições n°s 16/05, 30/05, 31/05, 32/05 e 33/05 respectivamente (conforme auto de verificação a folhas 70 destes autos), em que a Chefe de Secção I autorizou que os funcionários em dívida entregassem os respectivos montantes na Secção Financeira para que fôsse por sua vez o Estabelecimento Prisional, através de um estafeta, a proceder à entrega dessas quantias na Repartição dos Serviços de Finanças (conforme as declarações da própria I a folhas 45 e da testemunha Vong Lai Fan a folhas 65 a 67).
xiii. Este procedimento excepcional foi autorizado pela Chefe de Secção I para facilitar a vida àqueles funcionários, e na medida em que os erros de processamento tinham sido da responsabilidade da Secção e não dos próprios funcionários. Em todos estes casos foram preenchidas as guias respectivas de reposição e entregues os montantes nos Serviços de Finanças de Macau.
xiv. O arguido sabia que o modo como actuou não correspondia ao procedimento que por norma ele próprio vinha praticando ao longo dos anos.
xv. O arguido desconhecia a existência de um prazo legal para a emissão das guias de reposição.
xvi. Assim, ao receber o dinheiro das reposições sem autorização prévia da Chefe de Secção substituta, I, e sobretudo ao não processar as guias de reposição respectivas dentro dos prazos legais, o arguido A actuou de forma negligente ignorando as normas legais e violando os seus deveres profissionais.
xvii. O arguido A confessou expontaneamente os factos e entregou voluntariamente o dinheiro recolhido à Chefe de Secção, substituta, B.
4. O recorrente impugnou a decisão sancionatória, interpondo recurso hierárquico necessário para o Senhor Secretário para a Segurança.
5. Em 1 de Março de 2007, o recorrente é notificado do indeferimento do recurso hierárquico necessário por si interposto, com a seguinte argumentação:
“Após análise das informações constantes no Proc. Disciplinar n.º 0005-PDD/EPM/2006, dos fundamentos do despacho de punição disciplinar contra o recorrente, e mais, considerados os seguintes factos provados: o recorrente desempenhava no EPM Trabalhos relativos às remunerações dos funcionários; numa situnção. sem conhecimento e autorização superior, guardou as quantias indevidas. repostas pelos ex-funcionários do EPM, posteriormente, não se cumprindo o procedimento legal estabelecido no artigo 8º do Decreto-Lei n.º 59/94/M. no sentido de preencher as respectivas guias e de proceder as adequadas formalidades da reposição
da quantia recebida.
Na base dos referidos factos confirma-se que o recorrente não tinha entendido correctamente os relativos procedimentos de trabalho. e falta de iniciativa no trabalho que desempenhava. causando prejuizo ao normal funcionamento do serviço. designadamente. aumentou desnecessariamente os trabalhos dos outros funcionários; desde modo. o recorrente violou o dever de zelo prescrito no n.º 2 alinea b) do artigo 279º do ETAPM, por isso, deve ser penalizado.
O procedimento disciplinar, da instrução ao despacho de decisão punitiva. está conforme, quer materialmente, quer formalmente, com as exigências legais, tendo fundamentos legais e factuais suficientes o comportamento impugnado.”

III – Fundamentos
No caso em apreço, o recorrente foi punido por não ter cumprido o disposto do artº 8º do DL nº 59/94M, isto é, não ter processado as reposições das quantias dentro do prazo legal, mantendo-as indevidamente na sua posse, violando assim o dever de zelo previsto no nº 2 do artº 279º do ETAPM.
Na óptica do recorrente e sem pôr em questão o facto da não reposição das quantias recebidas nos termos legais, não lhe é exigível o conhecimento do procedimento legal relativo à reposição de quantias previsto no artº 8º do DL nº 59/94/M, uma vez que os seus colegas da mesma secção também o desconhecem e não havia instruções escritas para o efeito.
Por outro lado, entende que à data da prolação da decisão sancionatória, o DL nº 59/94/M já se encontra revogado, pelo que não pode servir como base legal da punição.
Concluindo que “o acto recorrido está ferido de nulidade por contrariar a hierarquia das normas, os Princípios da Legalidade, Justiça, Igualdade, Protecção da Confiança e Segurança Jurídica relativamente à actividade administrativa na prossecução do interesse público, com o que contraria o disposto nos arts. 3º; 4º; 7º; 5º; todos do Código do Procedimento Administrativo”.
Pelo que “o acto recorrido é nulo por manifesto erro na apreciação dos pressupostos de facto e de direito”.
Cumpre dizer desde logo que mesmos os argumentos do recorrente procederem, isto é, o acto recorrido violou efectivamente hierarquias das normas e os princípios em causa, ou errou manifestamente nos pressupostos de facto e de direito, apenas implicaria a sua anulabilidade e não nulidade, pois, só são nulos os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade (cfr. nº 1 do artº 122º do CPA), que não é o caso.
Vamos agora analisar se ao recorrente assistir razão.
A resposta é negativa.
Vejamos.
Em primeiro lugar, não é o artº 8º do DL nº 59/94/M que prevê a punição do recorrente, mas sim os artºs 279º, nº 2, al. b) e 281º do ETAPM. A sua referência no acto sancionatório visa apenas para demonstrar a violação do dever de zelo por parte do recorrente.
Nos termos do nº 3 do artº 279º do ETAPM, o dever de zelo consiste em exercer as suas funções com eficiência e empenhamento e, designadamente, conhecer as normas legais e regulamentares e as instruções dos seus superiores hierárquicos, bem como possuir e aperfeiçoar os seus conhecimentos técnicos e métodos de trabalho.
Ora, o recorrente é imputado pelo não conhecimento da tramitação legal da reposição das quantias, daí que é necessário, para o efeito, invocar a norma legal que prevê tal tramitação.
À data da ocorrência dos factos (entre Julho e Setembro de 2005), o DL nº 59/94/M ainda vigorava, pelo que o recorrente, como funcionário da secção financeira do EPM com mais de 5 anos de serviço, tem toda a obrigação de o conhecer.
É certo que à data da prolação do acto sancionatório o DL nº 59/94/M já se encontra revogado pelo Regulamento Administrativo nº 6/2006, só que este não veio eliminar o procedimento legal previsto no artº 8º do DL nº 59/94/M, pelo contrário, continua a prever o mesmo procedimento legal no seu artigo 36º.
Assim sendo, o recorrente continua a ter o dever de conhecer o regime legal em causa para o bom desempenho das suas funções, uma vez que o Regulamento Administrativo nº 6/2006 não o desonera esta obrigação.
Quanto à questão do conhecimento não exigível, cumpre dizer que o recorrente não pode servir o desconhecimento do procedimento legal de outros colegas e a falta de instruções escritas na matéria, para afastar a sua própria responsabilidade disciplinar pela violação do dever de zelo, pois, como já referimos anteriormente, sendo funcionário com mais de 5 anos de serviço na secção financeira do EPM, tem o dever de conhecer as normas legais cujo conhecimento é indispensável para o bom desempenho das suas funções.
Repara-se, o recorrente detinha na sua posse as quantias recebidas cerca de quatro meses, sem dado o destino próprio, apenas as entregou à Chefe da Secção aquando do cumprimento da pena disciplinar de suspensão.
Nesta conformidade, se conclui que o acto recorrido não está ferido de qualquer anulabilidade, muito menos de nulidade, tal como querida pelo recorrente.

IV – Decisão
Nos termos e fundamentos aciam expostos, acordam os Juízes que compõem o Colectivo deste Tribunal, em conferência, em negar provimento ao recurso interposto, confirmando o acto recorrido.


Custas pelo recorrente, com 6UC de taxa de justiça.
Notifique e registe.

RAEM, aos 31 de Março de 2011.

O Relator,

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Ho Wai Neng
Os Juízes Adjuntos,

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Cândido de Pinho

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Lai Kin Hong

Presente
Magistrado do M.oP.o

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Vitor Manuel Carvalho Coelho


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206/2007 p.1/12