Recurso n.º 37/2009
Data : 16 de Dezembro de 2010
Assuntos: - Usucapião
- Artigo 7° da Lei Básica
- Propriedade privada
- Mera posse
SUMÁRIO
1. No novo quadro constitucional operado a partir da entrada em vigor da Lei Básica que prevê, no artigo 7º, que todos os terrenos passam a ser propriedade do Estado, com excepção dos que já anteriormente integravam o domínio privado pertencente aos particulares, deixa de ser possível a aquisição por usucapião da propriedade ou do domínio útil a que se refere o artigo 5º, n.º 4 da Lei de Terras ou a sua constituição por qualquer outra forma.
2. Sobre o prédio em causa está inscrito a mera posse a favor de um particular nunca poderia conduzir a entender que o mesmo prédio está legal e definitivamente reconhecido como propriedade privada, podendo, portanto, ser objecto da usucapião.
O Relator,
Choi Mou Pan
Recurso nº 37/2009
Recorrente: A
Objecto do recurso: Despacho que indeferiu liminarmente a p.i.
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.:
A, constituída por escritura pública de 24 Abril de 1989 lavrada no Livro de Notas n.º XXX, a fls. XX, do 1º Cartório Notarial de Macau, publicada no Boletim Oficial n.º 20, de 15 de Maio de 1989, inscrita na Direcção dos Serviços de Identificação sob o n.º XXX, com sede na Rua da Figueira n.º X, rés-do-chão, em Macau, propôs a Acção Declarativa com processo Ordinário contra o Ministério Público e os interessados incertos, pedindo que se declare ser a autora única e legítima proprietária do prédio n° X do Pátio da Águia em Macau.
Por despacho preliminar, a Mmª Juiz indeferiu liminarmente a petição inicial, nos seguintes termos:
”Na presente acção, a A. pede que seja declarada proprietária do prédio n.º X do Pátio da Águia.
Fundamenta o seu pedido no facto de ter estado na posse do referido imóvel desde 24 de Abril de 1989, posse esta declarada por sentença transitada em julgado e registada na Conservatória do Registo Predial.
Porém, tendo em conta a situação real do imóvel e a causa de pedir da presente acção, é manifesto que a pretensão da A. não pode proceder.
Senão, vejamos.
Nos termos do art° 1° da Lei n.º 6/80/M, de 5 de Julho (Lei de Terras), “Os terrenos de Macau podem distinguir-se em terrenos do domínio público do Território, terrenos do seu domínio privado e terrenos de propriedade provada.”
Além disso, dispõe o art° 8° da Lei de Terras, que “Sem prejuízo do disposto no artigo 5º, sobre os terrenos do domínio público e do domínio privado do Território não podem ser adquiridos direitos por meio de usucapião ou acessão imobiliária.”
Pelo que e em princípio, se o prédio, objecto dos presentes autos, for um terreno do domínio público ou do domínio privado de Macau,1 sobre o mesmo não se pode reconhecer qualquer direito real a favor da A.. Aliás, no que se refere aos bens do domínio público, do qual podem fazer parte terrenos (cfr. art° 193°, n° 3, e), do CC), essa proibição é absoluta (cfr. art° 193°, n° 2, do CC).
Contudo, há que analisar a ressalva feita na última norma transcrita.
Segundo o art° 5° da Lei de Terras, “1. Consideram-se sujeitos ao regime de propriedade privada os terrenos sobre os quais tenha sido constituído definitivamente um direito de propriedade por outrem que não as pessoas colectivas de direito público. 2. O Governo procederá à delimitação dos terrenos que, constituindo propriedade privada, confinem com o domínio público. 3. O domínio útil de prédio urbano objecto de concessão por aforamento pelo Território é adquirível por usucapião nos termos da lei civil. 4. Não havendo título de aquisição ou registo deste, ou prova do pagamento de foro, relativo a prédio urbano, a sua posse por particular, há mais de vinte anos, faz presumir o seu aforamento pelo Território e que o respectivo domínio útil é adquirível por usucapião nos termos da lei civil.”
Flui deste preceito que a Lei de Terras permite o desdobramento da propriedade plena dos terrenos do domínio privado de Macau2 em domínio directo e domínio útil bem como a aquisição deste segundo direito por meio de usucapião. Ou seja, à proibição de aquisição de direitos sobre terrenos do domínio privado de Macau3 (e não do domínio público por força da proibição absoluta prevista no CC) por meio de usucapião ou acessão imobiliária a Lei de Terras consagra uma excepção através dos seus art°s 5° e 8°, sendo possível a aquisição de propriedade do domínio útil (apenas este direito) por meio da usucapião.
Porém, com a criação da Região Administrativa Especial de Macau, essa excepção à regra da proibição de usucapião e acessão imobiliária deixou de existir por força do disposto no art° 3°, n.º 1, da Lei n° 1/1999, de 20 de Dezembro de 1999.
É que, nos termos do art° 7° da Lei Básica, “Os solos e os recursos naturais na Região Administrativa Especial de Macau são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Espacial de Macau. ...”
Assim, por a Lei Básica não permitir a criação de direitos de propriedade privada sobre terrenos situados na RAEM, terrenos esses não reconhecidos como propriedade privada antes de 20 de Dezembro de 1999, nada resta senão considerar que a ressalva prevista nos art°s 5° e 8° não pode subsistir depois do estabelecimento da RAEM. Isto é, depois da constituição da RAEM, sobre os terrenos nela situados à excepção dos reconhecidos como propriedade privada não podem ser adquiridos nenhum direito por meio de usucapião ou acessão imobiliária.
Trata-se de um “autêntico principio da imprescritibilidade terrenos “vagos” de Macau após 19 de Dezembro de 1999, salvo os terrenos que tenham já sido integrados no regime de propriedade privada antes de 20 de Dezembro de 1999” - cfr. Chan Kuong Seng, “As propriedade e as terras no contexto da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau”, in Boletim da Faculdade de Direito de Macau, ano III, n° 7, 1999, pg 159.
Aliás, tem sido este o entendimento defendido pelos nossos tribunais superiores (cfr. Acórdão do Tribunal de Última Instância, de 5 de Julho de 2006, Acórdãos do Tribunal de Segunda Instância, de 17 de Fevereiro de 2005, de 23 de Fevereiro de 2006 e de 13 de Julho de 2006).
Assim, para os efeitos pretendidos pela A., urge aquilatar da verdadeira natureza do prédio sub judice visto que a A. só pode adquirir a propriedade do mesmo se o prédio está integrado no regime da propriedade privada.
Conforme a certidão do registo predial junta a fls 17 a 19, o prédio acima referido encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXX, do Livro XXX, fls 462. Porém, não consta do registo qualquer inscrição de direitos reais constituídos sobre o mesmo. A única inscrição feita refere-se à posse acima referida.
O art° 5°, n° 1, da Lei de Terras, dispõe que os terrenos sobre os quais tenha sido constituído definitivamente um direito de propriedade por outrem que não as pessoas colectivas de direito público são considerados sujeitos aos regime de propriedade privada.
Por nada constar do registo predial acerca da inscrição de qualquer direito real sobre o prédio em análise a favor de quem quer que seja, não se pode considerar tal prédio como integrado no regime da propriedade privada.
Pelo que, por força do artº 7º da Lei Básica, o prédio é propriedade do Estado e sobre o mesmo não se pode adquirir nenhum direito real por meio de usucapião.
Nos termos, por ser evidente que a pretensão da A. não pode proceder, indefiro liminarmente a p.i. – artº 394º, n.º 1, d), do CPC.
Custas pela A..
Com esta decisão não conformou, recorreu a autora para esta instância alegando que:
1. A Recorrente não se conforma com o despacho de indeferimento liminar da Petição Inicial proferido pela Meritíssima Juiz a quo;
2. Entende a Mma. Juiz que a pretensão da Recorrente é manifestamente inviável, e em consequência considera a Petição Inicial inepta, e dai o presente recurso;
3. A Autora, ora Recorrente, veio aos autos pedir que fosse declarada única e legítima proprietária do prédio sito no Pátio das Águia número X, em Macau, pelo instituo da usucapião, na qualidade de titular inscrita junto da Conservatória do Registo Predial de Macau de um direito de mera posse.
4. Para tanto, juntou a Certidão Predial do referido prédio, onde se pode constatar que aquele prédio se encontra descrito sob o n.º XXX, fls. XXX do Livro XXX e que a mera posse do mesmo está inscrita a favor da Autora desde 1 de Agosto de 1986 através da inscrição n.º 3081, a qual teve por base a Sentença proferida nos autos que correram termos sob o n.º 29/95 junto da 4ª Secção do então Tribunal Judicial de Competência Genérica de Macau, onde ficou provado que a ora Recorrente é possuidora daquele prédio desde 24 de Abril de 1989;
5. Referiu, igualmente que, aquele prédio se encontra inscrito na matriz predial a favor da Autora, Recorrente, junto da Repartição de Finanças de Macau, sob o artigo número XXX, com o valor de MOP$300,00.00;
6. Para além disso, invocou a Recorrente, o exercício de todo os actos materiais concretos correspondentes ao exercício do direito de propriedade sobre aquele prédio, actos esses exercidos ininterruptamente de forma pública, pacífica e de boa-fé desde o dia 29 de Abril de 1989 até hoje;
7. Nos termos do disposto no artigo 394º, n.º 1 da al. d) do Código Processo Civil, haverá indeferimento liminar por ineptidão da petição inicial quando “... for evidente que a pretensão do autor não pode procede.”, logo o indeferimento liminar só se justificará se resultar, de forma inequívoca, que a acção nunca poderá proceder, qualquer que seja a interpretação dos preceitos jurídicos em causa e em face do caso concreto em apreço;
8. Para fundamentar o despacho ora em crise o Tribunal a quo qualificou o imóvel em questão como sendo de natureza de “terreno vago”, por nada constar do registo predial acerca da inscrição de qualquer direito real sobre o mesmo a favor de quem quer que seja, concluindo que nessa qualidade se trata de um prédio insusceptível de ser usucapião;
9. Porém, entende a Recorrente que qualificar o prédio dos autos enquanto tal (terreno vago) muito mais terá que ser dito, para além de, única e simplesmente, se afirmar que não existe nenhum direito real inscrito junto da Conservatória do Registo Predial;
10. Se é certo que, por um lado, está hoje assente nos Tribunais de Macau a interpretação que deve ser dada ao artigo 7º da Lei Básica, também é certo que por outro lado nada está assente quanto à qualificação de imóvel como tendo natureza de “terreno vago” quando exista um qualquer tipo de direito inscrito junto da Conservatória do Registo Predial a favor de um particular, designadamente a mera posse;
11. A qualificação de um prédio como “terreno vago”, para efeitos de sua aquisição por usucapião, implica um sério e justo debate sobre todas as interpretações que haja na aplicação do Direito vigente ao caso concreto;
12. Ora uma análise mais perfunctória dos factos invocados pela Recorrente na sua Petição Inicial conduziria naturalmente ao regular prosseguimento dos autos, devendo quanto muito a questão ser apreciada em sede da audiência de discussão e julgamento;
13. A recorrente é titular inscrito de um direito junto da Conservatória do Registo Predial, que teve como base o título – uma sentença judicial devidamente transitada em julgado, antes do estabelecimento da RAEM, declarativa da qualidade de possuidora do imóvel sub Júdice;
14. O próprio Território de Macau, em 1996, através de um dos órgãos da sua soberania, o Tribunal, reconheceu, por sentença devidamente transitada em julgado, que o prédio se encontrava na esfera jurídica privada de um particular, in casu, a Autora, ora Recorrente;
15. Ora, esse reconhecimento expresso e formal tornou-se patente a partir do momento que foi concedido à Autora a possibilidade de ver nascer na sua esfera jurídica, o direito de inscrever a sua posse no Registo Predial com todas as legais consequências inerentes que dali advêm para um qualquer possuidor;
16. Aliás, o referido registo é definitivo encontra-se plenamente em vigor representando uma afectação na esfera jurídica de um particular, a posse de um imóvel como um direito, autónomo e com caracteres próprios, susceptível de defesa pela via judicial;
17. Salvo o devido respeito pela opinião contrária, não deve proceder o entendimento imediato do Douto Tribunal a quo plasmado no despacho recorrido, no sentido de declarar, desde já, aquele prédio como “terreno vago”;
18. Ademais, o Território de Macau, já bem antes de 20 de Dezembro de 1999, ao admitir que a Autora é legítima possuidora do imóvel em questão – através da publicidade conferida pelo registo predial – acaba também por reconhecer que o prédio foi e está a ser utilizado por alguém que actua, não como mero detentor, mas sim como de verdadeiro proprietário se tratasse uma vez que ao exercício do “direito de mera posse” corresponde o mesmo tipo de actuação que cabe ao “exercício do direito de propriedade”;
19. O Tribunal a quo, ao julgar manifestamente improcedente a pretensão da Autora, ora Recorrente, caiu em erro de interpretação e aplicação da Lei, nomeadamente da própria Lei Básica;
20. O Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 1º, 5º e 8º da Lei n.º 6/80/M de 5 de Julho (doravante Lei das Terras) e no artigo 7º da Lei Básica, bem como o disposto na última parte da al. d) do n.º 1 do artigo 394º do Código de Processo Civil;
Termos em que deve revogar o despacho de indeferimento liminar da petição inicial apresentada pela autora, ora recorrente e, em consequência, ordenar assim o prosseguimento dos autos até final.
Citado e notificado o Ministério Público para a acção e para o recurso, não houve resposta.
Cumpre conhecer.
Foram colhidos os vistos legais.
Conhecendo.
A decisão recorrida considerou manifestamente improcedente o pedido, acabou por indeferir liminarmente o mesmo, fundamentalmente por entender que, por não se encontra definitivamente inscrito a favor da autora o prédio em causa, no domínio privado, o mesmo não pode ser objecto de aquisição por usucapião nos termos do artigo 7° da Lei Básica.
A autora alegou que sobre o mesmo prédio, com a decisão transitada em julgado a 2 de Maio de 1996, encontra-se inscrito a seu favor a titularidade da mera posse, sob a inscrição n° XXX, do Livro XXX, a fl. XXX, e que a qualificação de um prédio como “terreno vago”, para efeitos de sua aquisição por usucapião, implica um sério e justo debate sobre todas as interpretações que haja na aplicação do Direito vigente ao caso concreto, com uma análise mais perfunctória dos factos invocados pela Recorrente na sua Petição Inicial, o que conduziria naturalmente ao regular prosseguimento dos autos, quanto muito, devendo a questão ser apreciada em sede da audiência de discussão e julgamento.
Vejamos.
O artigo 7º da Lei Básica da RAEM dispõe que "os solos e os recursos naturais da Região Administrativa Especial de Macau são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau".
E é também verdade que constitui Jurisprudência uniforme deste Tribunal que no novo quadro constitucional operado a partir da entrada em vigor da Lei Básica que prevê, no artigo 7º, que todos os terrenos passam a ser propriedade do Estado, com excepção dos que já anteriormente integravam o domínio privado pertencente aos particulares, deixa de ser possível a aquisição por usucapião da propriedade ou do domínio útil a que se refere o artigo 5º, n.º 4 da Lei de Terras ou a sua constituição por qualquer outra forma.4
In casu, com a certidão da sentença e do registo apresentada, podia dar por assente já que sobre o prédio em causa está inscrito a mera posse a favor da recorrente.
Como decidiu aquela sentença do então Tribunal de Competência Genérica de Macau, a autora tinha adquirido a mera posse sobre o prédio, e poderia, com certeza, pedir em consequência o reconhecimento judicial da sua propriedade plena sobre o prédio, conforme o apuramento dos factos, para que o seu direito possa ser legal e definitivamente reconhecido.
Pois, como se tem entendido doutrinalmente, a posse é, em qualquer caso, uma relação de facto entre uma pessoa e uma coisa e, por isso, “a existência da posse não depende de um facto inicial que a domine para sempre, como sucede na propriedade”5.
Porém, até a 20 de Dezembro de 1999, o seu direito sobre o prédio, a título de propriedade plena, ainda não tinha sido legal e definitivamente reconhecido, encontra-se um obstáculo fatal e constitucional no seu reconhecimento, em virtude da alteração substancial das circunstâncias constitucionais – a entrada em vigor da Lei Básica, nomeadamente o seu artigo 7°.
Como não o tem feito antes de 20 de Dezembro de 1999, o prédio urbano em causa deve ser considerado como o do Estado – A RAEM nos termos do artigo 7° da Lei Básica, impedindo da aquisição por usucapião, quer da propriedade plena quer do domínio útil nos termos do artigo 5° da Lei de Terras.
Tal como decidiu o Tribunal de Última Instância no seu douto acórdão de 5 de Julho de 2006 no processo nº 32/2005:
“O sistema jurídico, incluindo o sistema judicial, anteriormente vigente em Macau, transitou para a RAEM de modo selectivo, em obediência ao princípio de transição condicional, tendo por critério a conformidade com a Lei Básica.
O que ocorre não é uma sucessão de leis em situação normal, mas antes uma mudança de princípios de todo o ordenamento jurídico. Assim, no novo ordenamento jurídico da Região, não se pode aplicar uma lei previamente vigente contrária aos seus princípios, segundo os critérios da sucessão comum de leis.
A transição do sistema judicial previamente existente em Macau observou igualmente o princípio de transição condicional (art.º 10.º da Lei de Reunificação). Para se manter o sistema judicial previamente existente, incluindo os diversos procedimentos judiciais e actos processuais, tem de estar em conformidade com a Lei Básica, a Lei de Reunificação e outros diplomas legais aplicáveis, em particular a Lei de Bases da Organização Judiciária (Lei n.º 9/1999).
Por causa da transição condicional dos sistemas jurídico e judicial pré-existentes em Macau, não se pode apreciar os processos judiciais pendentes aquando da criação da Região segundo os princípios que regem a sucessão normal das leis. Antes pelo contrário, tais processos devem ser julgados com o pressuposto de não contrariar a Lei Básica.
Está consagrado no art.º 7.º da Lei Básica o princípio de que a propriedade e a gestão dos solos e recursos naturais no âmbito da RAEM cabem, respectivamente, ao Estado e ao Governo da Região, e admite, ao mesmo tempo, os direitos de propriedade privada de terrenos reconhecidos legalmente antes do estabelecimento da Região.
Não é possível constituir nova propriedade privada de terrenos depois da criação da Região.
Se a acção de reconhecimento do direito de propriedade sobre terrenos fosse proposta por interessados apenas depois do estabelecimento da Região, os seus pedidos estariam manifestamente em desconformidade com o art.º 7.º da Lei Básica, por força do qual todos os terrenos não reconhecidos como de propriedade privada até ao estabelecimento da Região passam, a partir deste, a integrar na propriedade do Estado.
Primeiro de tudo, temos o facto de não estar a propriedade privada legalmente reconhecida a favor de ninguém, e o facto do reconhecimento jurídica da sua posse não se pode conduzir à conclusão de que a sua propriedade estivesse legalmente reconhecida.
A partir daí, a posse legal, enquanto carece do reconhecimento legal, por via judicial, fica à confirmação do Tribunal, no âmbito da lei vigente.
Tal como o que aconteceu nos casos que tem ocorrido neste Tribunal (o processo nº 245/2004 em que se tirou o acórdão de 14 de Julho de 2005; o processo n° 401/2006 em que se tirou o acórdão de 15 de Fevereiro de 2007, etc.), releva a alteração substancial do Regime constitucional através da entrada em vigor da Lei Básica e a Lei de Reunificação, em consequência do estabelecimento da Região Administrativo Especial de Macau da República Popular da China.
Poder-se-ia dizer que, embora a lei disponha para o futuro, como se consigna nos acórdãos acima citados, não se pode invocar, neste contexto da mudança constitucional, a aplicação do regime de sucessão da lei ou a regra de aplicação da lei no tempo para a devida adaptação das leis aplicáveis.
No fundo, não terá outra solução senão a aplicação imediata da Lei Básica. Se não, estamos perante uma situação de criar um regime jurídico que a Lei Básica não pretende criar ou deixou de prever.
Como tivemos pronunciado nos referidos acórdãos, “ ... a aplicação das leis para o caso deve adaptar-se com a respectiva disposição constitucional na Lei Básica”, assim como no acórdão de 26 de Setembro de 2001 do processo nº 7/2001 no acórdão de 26 de Setembro de 2001 do processo nº 7/2001 se consignou o seguinte:
“Não se trata de uma questão de mera sucessão de leis aplicáveis. Se não houvesse o retorno de Macau, o seu estatuto político e ordenamento jurídico não se alterariam ...
... ...
Não se pode deixar de reconhecer o facto de que a RAEM se fundou no dia 20 de Dezembro de 1999 e a Lei Básica da Região Administrativo Especial de Macau da Republica Popular da China e a Lei de Reunificação, que entraram em vigor no mesmo dia, procederam à alteração de princípios do sistema jurídico previamente vigente, adaptando-o ao novo estatuto político da RAEM. Sob o princípio de manter as leis basicamente inalteradas e tendo a Lei Básica como critério, o ordenamento jurídico previamente existente transita, de forma condicional e selectiva, para o ordenamento jurídico da RAEM. O que ocorre não é uma sucessão de leis em situação normal, mas sim, uma mudança de princípios de todo o ordenamento jurídico. As leis previamente vigentes que estão em desconformidade com os princípios do novo ordenamento não são adoptadas nem podem permanecer aplicáveis. Num ordenamento jurídico, não se por aceitar a verificação de um novo facto jurídico, não se pode aplicar uma lei previamente vigente contrária aos seus princípios sob o pretexto da sucessão comum de leis. Os problemas relativos à aplicação de lei decorrentes da transição do ordenamento jurídico previamente existente de Macau para o da RAEM, não podem ser solucionados segundo o princípio da sucessão comum de leis, mas sim, e antes de mais nada, sob o pressuposto de não contraria a Lei Básica da Região Administrativo Especial de Macau.
É possível que esta transição, raramente vista, de ordenamento jurídico prejudique a certeza e a segurança de certas situações jurídicas, mas isto é inevitável na mudança do estatuto político de Macau.
...
A Transição do sistema judicial previamente existente em Macau observa igualmente o princípio de transição condicional. Para se manter, o sistema judicial previamente existente, incluindo os diversos procedimentos judiciais e actos processuais, tem de estar em conformidade com a Lei Básica, a Lei de Reunificação e outros diplomas aplicáveis, em particular a Lei de Bases da Organização Judiciária, o que represente ao estatuto da Lei Básica de lei constitucional no ordenamento jurídico da RAEM e o princípio de que a Lei Básica constitui a base de todos os sistemas e políticas da RAEM.”
Ainda afirmamos, nos presentes autos, que a alteração constitucional é significativo para o sistema jurídico da RAEM, de modo que as leis previamente vigentes não podem ser aplicadas por contrariar à Lei Básica.
Segundo a Lei Básica, os terrenos na Região Administrativa Especial de Macau deixou de ter a figura previamente existente de Terreno vago, todos estes que integram na esfera jurídica do Estado, excepção dos terrenos cuja propriedade já se tenham reconhecido como privados antes do estabelecimento da RAEM.
Independentemente da abolição da enfiteuse no Código Civil de 1999, não pode, perante o disposto no artigo 7º da Lei Básica, adquirir por usucapião do domínio útil do terreno na parte do domínio privado do Estado (nem pensar em domínio público).
Torna-se irrelevante o facto de ter mera posse sobre o prédio, porque o mesmo não se prova que a propriedade privada já entrou legalmente na esfera jurídica do particular.
Podendo-se embora verificar frustrada a perspectiva dos interessados na certeza e na segurança de certas situações jurídicas, por ter adquirido posse boa para pedir a usucapião, tal será inevitável perante a alteração substancial das circunstâncias da aplicação da lei previamente vigente em Macau antes de estabelecimento da RAEM, mas o presente procedimento judicial não seria sede própria para a sua solução.
Não seria útil proceder os termos ulteriores para apurar e subsequente analisar quaisquer factos para a aquisição por via de usucapião, senão os comprovativos da existência propriedade privada legal e definitivamente reconhecida.
Nesta conformidade, afigura-se a decisão, o indeferimento liminar, ser correcta e adequada, nada merece reparo. É de assim improceder o recurso.
Ponderado resta decidir.
Pelo exposto, acordam neste Tribunal de Segunda Instância em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Macau, RAE, 16 de Dezembro de 2010
Choi Mou Pan (Relator)
José Maria Dias Azedo
Lai Kin Hong
1 Anote-se que, na actual situação jurídico-constitucional da RAEM, “terreno do domínio público ou do domínio privado de Macau” não é a forma correcta de exprimir a respectiva realidade visto que a mesma deve ser designada por “terreno, situado na RAEM, do domínio público ou do domínio privado do Estado. É que, por força do art° 7° da Lei Básica, todos os terrenos situados em Macau à excepção dos reconhecidos como propriedade privada antes do estabelecimento da RAEM são da propriedade do Estado. Apenas porque a análise até agora feita ainda não se iniciou a articulação do regime jurídico das terras com esta norma da Lei Básica é que se manteve Macau como o respectivo centro de imputação.
2 Vide nota supra.
2 Vide nota supra.
3 Vide nota 1.
4 - Acs do TSI, proc. 316/2004 e 323/05
5 Vide MANUEL RODRIGUES, A Posse, 2ª ed. P. 203.
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
P. 1
TSI-.37-2009 Página 1