Processo n.º 81/2011 Data do acórdão: 2011-03-31
(Autos de recurso penal)
Assuntos:
– Lei n.o 17/2009
– tráfico ilícito de estupefaciente
– consumo ilícito de estupefaciente
– detenção indevida de utensílio
– bem jurídico
– concurso efectivo
– punição do acto preparatório
– art.o 20.o do Código Penal
S U M Á R I O
1. Entre o crime de tráfico ilícito de estupefaciente e o crime de consumo ilícito de estupefaciente, respectivamente previstos nos art.os 8.o, n.o 1, e 14.o da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto, não há concurso aparente, mas sim concurso efectivo (real), porquanto são diferentes os bens jurídicos que se procura tutelar com a incriminação e punição das condutas de tráfico ilícito de estupefacientes, por um lado, e, por outro, de consumo ilícito de estupefaciente.
2. De facto, o bem jurídico primordialmente em causa no tipo legal de tráfico ilícito de estupefaciente é a saúde pública, enquanto o bem jurídico em questão no tipo legal de consumo ilícito de estupefaciente é a saúde individual do próprio consumidor de droga.
3. Pela mesma diferenciação do bem jurídico em causa, entre o referido crime de tráfico ilícito de estupefaciente e o crime de detenção indevida de utensílio, previsto no art.o 15.o da mesma Lei, também não há concurso aparente, mas sim concurso efectivo (real).
4. Por fim, entre os mencionados crimes de consumo ilícito de estupefaciente e de detenção indevida de utensílio, igualmente só há concurso efectivo (real), isto porque embora em ambos os tipos legais esteja em causa um mesmo bem jurídico, qual seja, a saúde individual do próprio agente detentor de utensílio ou consumidor de substância estupefaciente, é letra expressa dessa Lei n.o 17/2009 incriminar, de maneira autónoma ou independente, essas duas condutas – a conduta de detenção indevida de utensílio (para consumo de estupefaciente) como sendo acto preparatório do consumo, a final, de substância estupefaciente (veja-se o art.o 20.o do Código Penal de Macau), e a conduta do próprio consumo de estupefaciente.
5. É de notar que o acto de detenção ilícita de estupefaciente para consumo pessoal também é abrangido no tipo legal de consumo ilícito de estupefaciente do art.o 14.o da Lei n.o 17/2009, pelo que esse acto de detenção para consumo também é punível como sendo um acto preparatório de consumo de estupefaciente, se bem que em alternativa da punibilidade do acto final de consumo.
O relator por vencimento,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 81/2011
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
Arguidos recorridos: B (XXX) (2.o arguido)
D (XXX) (4.o arguido)
Arguidos não recorridos: A (XXX) (1.o arguido)
C (XXX) (3.o arguido)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I - RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão proferido no âmbito do Processo Comum Colectivo n.° CR2-10-0070-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, na parte em que se decidiu condenar o 2.o arguido B (XXX), aí já melhor identificado, apenas como autor material de um crime consumado de tráfico ilícito de estupefaciente do art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto (devido ao aí entendido concurso aparente entre este crime e os crimes, inicialmente também imputados pelo Ministério Público a esse arguido, de consumo ilícito de estupefaciente e de detenção indevida de utensílio, respectivamente previstos pelos art.os 14.o e 15.o da mesma Lei), bem como na parte em que se condenou o 4.o arguido D (XXX), também já aí melhor identificado, como autor material de um só crime de consumo ilícito de estupefaciente do referido art.o 14.o (por entendido concurso aparente entre este crime e o crime, inicialmente também imputado a esse arguido, de detenção indevida de utensílio do mencionado art.o 15.o) (cfr. o teor original desse acórdão, a fls. 584 a 603 dos presentes autos correspondentes), veio a Digna Delegada do Procurador junto desse Tribunal recorrer para esta Segunda Instância, para rogar (nos termos vertidos nas duas motivações apresentadas, respectivamente, a fls. 616v a 618 e 613v a 615 dos autos) a condenação desses dois arguidos também pela prática dos ditos crimes tal como originalmente acusados.
Responderam os dois arguidos ora recorridos no sentido de manutenção do julgado (cfr. as respectivas respostas de fls. 627 a 631 e 623 a 625 dos autos).
Subidos os autos, emitiu (a fls. 680 a 681) o Digno Procurador-Adjunto parecer, pugnando pela existência de concurso não efectivo apenas entre os crimes dos art.os 14.o e 15.o da referida Lei.
Feito subsequentemente o exame preliminar e corridos depois os vistos legais, procedeu-se à audiência em julgamento.
Cumpre, pois, decidir dos recursos interpostos pelo Ministério Público contra os 2.o e 4.o arguidos do processo, através do presente acórdão definitivo lavrado em obediência ao disposto na segunda parte do n.o 1 do art.o 417.o do Código de Processo Penal de Macau.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Como questão nuclear, de natureza jurídica, unicamente posta nos seus recursos, a Digna Delegada do Procurador recorrente critica que o Tribunal a quo errou na aplicação do Direito ao ter considerado haver concurso aparente entre o crime de tráfico ilícito de estupefaciente e os de consumo ilícito de estupefaciente e de detenção indevida de utensílio, e concurso aparente ainda entre estes dois últimos.
Nos autos, os factos provados respeitantes a esses três crimes ocorreram na vigência da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto, e não obstante a comprovação judicial de todos os elementos fácticos integradores desses três delitos, o Tribunal Colectivo a quo, por causa do seu entendimento sobre a questão de concurso aparente, acabou por não condenar os 2.o e 4.o arguidos ora recorridos pela prática de todos os crimes tal como inicialmente acusada pelo Ministério Público.
É de referir, de antemão, que sobre a questão de concurso aparente, ou não, entre o crime de tráfico de estupefaciente e o crime de detenção de estupefaciente para consumo, então previstos, respectivamente, nos art.os 8.o , n.o 1, e 23.o, alínea a), do Decreto-Lei n.o 5/91/M, de 28 de Janeiro, este Tribunal de Segunda Instância já se pronunciou especificadamente, no recente acórdão de 9 de Dezembro de 2010 do Processo n.o 861/2010, no sentido de haver concurso efectivo (real) entre estes dois tipos legais de crime, <>, uma vez que <>.
Entendimento jurídico das coisas esse que se aplica mutatis mutandis aos crimes de tráfico ilícito de estupefaciente e de consumo ilícito de estupefaciente, respectivamente previstos nos art.os 8.o, n.o 1, e 14.o da actual Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto, sendo, aliás, certo que a descrição destes dois tipos legais de crime é aí feita em termos semelhantes aos dos art.os 8.o, n.o 1, e 23.o, alínea a), do anterior Decreto-Lei n.o 5/91/M.
E agora para a questão de concurso aparente, ou não, entre o crime de tráfico ilícito de estupefaciente e o crime de detenção indevida de utensílio, respectivamente previstos nos art.os 8.o, n.o 1, e 15.o da Lei n.o 17/2009, a resposta que o presente Tribunal ad quem dá é também no sentido de não poder existir concurso aparente, mas sim concurso efectivo (real), já que os bens jurídicos que se procuram tutelar nestes dois tipos legais de crime são também diferentes, sendo, a este ponto, de aplicar mutatis mutandis a análise já feita no supra dito acórdão de 9 de Dezembro de 2010.
Por fim, no respeitante ao concurso aparente, ou não, entre o crime de detenção indevida de utensílio e o crime de consumo ilícito de estupefaciente, respectivamente previstos nos art.os 15.o e 14.o da mesma Lei n.o 17/2009, a solução também está no mesmo sentido de haver unicamente concurso efectivo (real) entre estes dois crimes, porquanto se afigura a este Tribunal ad quem que embora em ambos os tipos legais esteja em causa um mesmo bem jurídico, qual seja, a saúde individual do próprio agente detentor de utensílio ou consumidor de substância estupefaciente, é letra expressa dessa Lei incriminar, de maneira autónoma ou independente, essas duas condutas – a conduta de detenção indevida de utensílio (para consumo de estupefaciente) como sendo acto preparatório do consumo, a final, de substância estupefaciente (veja-se o art.o 20.o do Código Penal de Macau), e a conduta do próprio consumo de estupefaciente. (É de notar que o acto de detenção ilícita de estupefaciente para consumo pessoal também é abrangido no tipo legal de consumo ilícito de estupefaciente do art.o 14.o da Lei n.o 17/2009, pelo que esse acto de detenção para consumo também é punível como sendo um acto preparatório de consumo de estupefaciente, se bem que em alternativa da punibilidade do acto final de consumo). Assim sendo, dura lex sed lex.
Dest’arte, hão-de proceder os recursos do Ministério Público, com o que é de passar a condenar os dois arguidos ora recorridos pelo já judicialmente provado cometimento, em autoria material e na forma consumada, de todos os crimes inicialmente acusados.
Portanto, na medida da pena, e consideradas todas as circunstâncias já apuradas no texto do acórdão recorrido, com relevância para efeitos de aplicação mormente dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, 65.o e também 71.o do Código Penal de Macau, é de passar a:
– condenar o 2.o arguido B (XXX) também como autor material de um crime consumado de consumo ilícito de estupefaciente e de um crime consumado de detenção indevida de utensílio, previstos, respectivamente, pelos art.os 14.o e 15.o da Lei n.o 17/2009, igualmente (por cada um destes dois crimes) na pena de 1 (um) mês de prisão (em prejuízo da opção pela pena da multa, dada a necessidade de prevenir este arguido da prática de novos delitos deste tipo), e, em cúmulo jurídico com a pena de 3 (três) anos e 11 (onze) meses de prisão já aplicada pelo Tribunal recorrido para o crime consumado de tráfico ilícito de estupefaciente do art.o 8.o, n.o 1, da mesma Lei, na pena única de 4 (quatro) anos e 15 (quinze) dias de prisão;
– e condenar o 4.o arguido D (XXX) também como autor material de um crime consumado de detenção indevida de utensílio, p. e p. pelo art.o 15.o da Lei n.o 17/2009, na pena de 45 (quarenta e cinco) dias de prisão (em prejuízo da opção pela pena da multa, dada a necessidade de prevenir este arguido – que já não é delinquente primário – da prática de novo delito deste tipo), e, em cúmulo jurídico com a pena de 45 (quarenta e cinco) dias de prisão já imposta pelo Tribunal recorrido para o crime consumado de consumo ilícito de estupefaciente do art.o 14.o da mesma Lei, na pena única de 66 (sessenta e seis) dias de prisão, suspensa entretanto na sua execução por 18 (dezoito) meses nos termos do art.o 48.o, n.o 1, do Código Penal, com sujeição ao acompanhamento trimestral do Departamento de Reinserção Social da Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça de Macau.
É, entretanto, de notar que a decisão ora tomada nesta sede recursória não irá afectar a decisão condenatória já feita no acórdão recorrido em relação ao 1.o arguido A (XXX) e ao 3.o arguido C (XXX), uma vez que aquele 1.o arguido foi absolvido, por não provada a nível de factos, da inicialmente também acusada prática dos crimes de consumo ilícito de estupefaciente e de detenção ilícita de utensílio, e ficou condenado apenas como autor material de um crime de tráfico ilícito de estupefaciente do art.o 8.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009, e este 3.o arguido foi absolvido, por não provada no plano de factos, da então acusada prática dos crimes de tráfico ilícito de estupefaciente, de consumo ilícito de estupefaciente, e de detenção indevida de utensílio, respectivamente dos art.os 8.o, n.o 1, 14.o e 15.o da mesma Lei.
III – DECISÃO
Ante o exposto, acordam em:
– julgar procedentes os recursos do Ministério Público;
– passando a condenar o 2.o arguido B (XXX) também como autor material, na forma consumada, de um crime de consumo ilícito de estupefaciente e de um crime de detenção indevida de utensílio, previstos, respectivamente, pelos art.os 14.o e 15.o da Lei n.o 17/2009, na pena de 1 (um) mês de prisão por cada, e, em cúmulo jurídico destas duas penas com a pena de 3 (três) anos e 11 (onze) meses de prisão já aplicada pelo Tribunal recorrido para o crime consumado de tráfico ilícito de estupefaciente do art.o 8.o, n.o 1, da mesma Lei, na pena única de 4 (quatro) anos e 15 (quinze) dias de prisão;
– e passando a condenar o 4.o arguido D (XXX) também como autor material, na forma consumada, de um crime de detenção indevida de utensílio, p. e p. pelo art.o 15.o da Lei n.o 17/2009, na pena de 45 (quarenta e cinco) dias de prisão, e, em cúmulo jurídico com a pena de 45 (quarenta e cinco) dias de prisão já imposta pelo Tribunal recorrido para o crime consumado de consumo ilícito de estupefaciente do art.o 14.o da mesma Lei, na pena única de 66 (sessenta e seis) dias de prisão, suspensa entretanto na sua execução por 18 (dezoito) meses nos termos do art.o 48.o, n.o 1, do Código Penal de Macau, com sujeição ao acompanhamento trimestral do Departamento de Reinserção Social da Direcção dos Serviços de Justiça de Macau.
Custas dos recursos pelos 2.o e 4.o arguidos, respectivamente, com quatro UC de taxa de justiça para aquele e duas UC de taxa de justiça para este.
Fixam em mil e duzentas patacas os honorários devidos pelo 2.o arguido ao seu Ilustre Defensor Oficioso, e também em mil e duzentas patacas os honorários totais devidos pelo 4.o arguido à sua defesa oficiosa (cabendo oitocentas patacas à Ilustre Defensora que subscreveu a resposta ao recurso, e as restantes quatrocentas ao Ilustre Defensor que o defendeu na audiência deste Tribunal de Segunda Instância), montantes todos esses a serem adiantados pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 31 de Março de 2011.
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Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Tam Hio Wa
(Segunda Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Relator do processo)
Processo nº 81/2011
(Autos de recurso penal)
Declaração de voto
O presente recurso vem interposto pelo Exmo. Magistrado do Ministério Público, pugnando por uma diversa qualificação jurídico penal da conduta dada como provada em relação aos (2° e 4°) arguidos B e D.
É de opinião que o (2°) arguido B deve ser condenado como autor da prática em concurso real dos crimes de “tráfico de estupefacientes”, “detenção de estupefacientes para consumo” e “detenção de utensilagem”, e o (4°) arguido D, como autor da prática também em concurso real dos crimes de “detenção para consumo” e de “detenção de utensilagem”.
Como primitivo relator, elaborei projecto de acórdão onde propunha a parcial procedência do recurso.
Vencido que fiquei, passo a expor como me preparava para decidir, acompanhando, de perto, o referido projecto de acórdão.
Em sede de enquadramento jurídico-penal dos factos dados como provados, assim ponderou o Colectivo a quo:
“O n° 1 do art.° 8° da Lei n° 17/2009, de 09 de Setembro, estabelece o seguinte: «Quem, sem se encontrar autorizado, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, ceder, comprar ou por qualquer título receber, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 14.º, plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 3 a 15 anos.»
E o art° 14° da mesma Lei, prevê: «Quem consumir ilicitamente ou, para seu exclusivo consumo pessoal, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, adquirir ou detiver ilicitamente plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a IV, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias.»
Determina ainda o art° 15° da Lei n°17/2009, de 09 de Setembro: «Quem detiver indevidamente qualquer utensílio ou equipamento, com intenção de fumar, de inalar, de ingerir, de injectar ou por outra forma utilizar plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a IV, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias.»
Da factualidade apurada, (…) considera o colectivo que (…) o arguido B, de forma consciente, livre e com dolo, e em autoria material e na forma consumada, praticou um crime de tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas p. e p. pelo art. 8° n°1 da Lei n° 17/2009, um crime de consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas p. e p. pelo art° 14° da mesma Lei, e um crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento p. e p. pelo art° 15° da mesma Lei; e o arguido D, de forma consciente, livre e com dolo, e em autoria material e na forma consumada, praticou um crime de consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas p. e p. pelo art°14°da Lei n°17/2009 e um crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento p. e p. pelo art° 15° da mesma Lei.
Sendo que, atendendo às circunstâncias relatadas na douta acusação acima referida e dadas por provadas por este colectivo, o crime de aquisição ou detenção ilícita de estupefacientes para consumo pessoal e o crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento praticados pelo 2° arguido B devem estar numa relação de concurso aparente com o crime de tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas imputados a este arguido; o mesmo se diga em relação ao 4° arguido D, em que o crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento está em concurso aparente com o crime de aquisição ou detenção ilícita de estupefacientes para consumo pessoal, por estar em causa a violação de uma mesma pluralidade de bens jurídicos tais como a vida, a saúde física e mental da pessoa humana e a liberdade.
Integrado o tipo, (…); (cfr., fls. 599-v a 601).
Aqui chegados, vejamos, começando-se pela conduta do (2°) arguido B.
–– Foi este (2°) arguido acusado da prática em concurso real de 1 crime de “tráfico”, 1 crime de “detenção de estupefacientes para consumo” e 1 outro de “detenção de utensilagem”, p. e p. pelos art°s 8°, n.° 1, 14° e 11° da Lei n.° 17/2009, tendo, porém, o Colectivo a quo, acabado por condenar o mesmo arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de “tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, previsto e punido pelo artigo 8°, n° 1 da mesma Lei n°17/2009, em concurso aparente com um crime de “consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, e um outro crime de “detenção indevida de utensílio ou equipamento”, na pena única de três (3) anos e onze (11) meses de prisão.
E (re)ponderando a questão, cremos que não é o assim decidido de confirmar.
Vejamos.
Preceitua o art. 29°, n° 1 do C.P.M. que:
“O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.”
E, tanto quanto nos parece, e como já teve este T.S.I. oportunidade de afirmar, “ perfilha-se, pois, o chamado «critério teleológico» para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, atendendo-se assim ao número de tipos legais de crime efectivamente preenchidos pela conduta do agente, ou ao número de vezes que essa conduta preencheu o mesmo tipo de crime.”; (cfr., v.g., Ac. de 05.06.2003, Proc. n° 76/2003, e de 29.04.2010, Proc. n° 63/2010).
Com efeito, e como já ensinava Eduardo Correia, (“pluralidade de crimes significa … pluralidade de valores jurídicos negados” - vd. “Direito Criminal”, II vol., Livraria Almedina 1971, pág. 200), na indagação da unidade ou pluralidade de crimes perpetrados, há que atender não aos fins procurados pelo agente que os praticou, mas antes aos fins visados pela incriminação das normas violadas.
No caso, evidente nos parece que no que toca aos crimes de “tráfico” e de “consumo”, motivos não há para se considerar que estão os mesmos numa relação de “concurso aparente”, pois que, como sabido é, as respectivas normas jurídicas protegem bens jurídicos distintos: a “saúde pública”, no primeiro, e, essencialmente, a “saúde do consumidor”, no segundo.
Em relação ao crime de “detenção de utensilagem” vejamos.
Entende o Exmo. Magistrado recorrente que o mesmo entendimento se deve ter, (isto é, que devia o arguido ser condenado pela prática de tal crime em concurso real com os outros dois de “tráfico” e “consumo”), considerando-se no douto Parecer do Ilustre Procurador Adjunto que o mesmo crime de “detenção de utensilagem” está numa relação de concurso aparente com o de “consumo”.
Ora, nos termos do art. 14° da Lei n.° 17/2009:
“Quem consumir ilicitamente ou, para seu exclusivo consumo pessoal, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, adquirir ou detiver ilicitamente plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a IV, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias”.
Por sua vez, estatui o art. 15° da mesma Lei que:
“Quem detiver indevidamente qualquer utensílio ou equipamento, com intenção de fumar, de inalar, de ingerir, de injectar ou por outra forma utilizar plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a IV, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias”.
Atento o assim estatuído, cremos que adequado é o entendimento no sentido de que ambos os comandos legais visam tutelar (essencialmente) o mesmo bem jurídico: a saúde (individual) do consumidor.
O primeiro – art. 14° – visa prevenir e reprimir o “consumo de estupefacientes”, e o segundo – art. 15° – punindo a “detenção de utensílio ou equipamento” com intenção de ser utilizado no consumo de estupefacientes, visa também prevenir esta “actividade”.
Desta forma, e notando-se que foram tais ilícitos cometidos pelo mesmo (2°) arguido, afigura-se-nos pois que correcta não será uma decisão no sentido do seu cometimento em “concurso real”; (em sentido contrário, v.d. v.g., o Acórdão do então T.S.J. de 15.05.1996, Processo n.°475, in “Jurisprudência”, 1996, Tomo I, página 366).
De facto, aquando do debate na generalidade da então Proposta de Lei intitulada “Proibição da produção, do tráfico e do consumo ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas” ocorrida na Assembleia Legislativa, e em expressa resposta à questão ora em causa assim se pronunciou o Exmo. Assessor do Gabinete da Secretária para a Administração e Justiça:
“Ora bem, eu gostaria antes de mais de dizer que a detenção indevida de cachimbos e outros utensílios consta actualmente no artigo 12 do Dec-Lei 5/91/M e é punida com multa de até um ano, ou de 500 a 10.000 patacas. Porquê então agora 6 meses? É que não se entende porque é que eu tenho, porquê que de eu ter um cachimbo hei-de ter uma pena de um ano, um cachimbo para fumar, e fumando ter uma pena de seis… que antigamente era de 3 meses, ou seja, era pena maior ter um utensílio do que por consumir. Como os objectivos são os mesmos, optou-se por pôr a mesma pena dos 6 meses.
A questão colocada e bem pela Sra. Deputada aplicam-se cumulativamente os dois? A minha resposta é não. Se eu tenho o utensílio e não fumei, sou punido pela detenção. Se eu tenho o utensílio, por exemplo, o cachimbo, fumei, sou punido pelo consumo. Porque é aquilo que se diz em termos jurídicos, um crime consome o outro”; (cfr., Diário da Assembleia da R.A.E.M., I Série, n.° III – 100, pág. 17 e 18).
Nesta conformidade, decidia no sentido de se alterar a decisão recorrida em conformidade, ficando o (2°) arguido condenado pela prática em concurso real de 1 crime de “tráfico” e um outro de “consumo”, p. e p. pelos art°s 8°, n.°1 e 14° da Lei n.° 17/2009.
Razões não havendo para se alterar a pena que pelo Colectivo a quo foi fixada pela prática do crime de “tráfico” – 3 anos e 11 meses de prisão, pois que não obstante algo benevolente, impugnada não foi – afigurando-se-nos adequada a pena de 45 dias de prisão pela prática do crime de “consumo de estupefacientes”, (em causa não estando aqui o “princípio da proibição da reformatio in pejus” do art. 399° do C.P.P.M., pois que o arguido foi acusado por tal crime e o Ministério Público recorreu a pedir a sua condenação), e, atento também os critérios do art. 71°, n.° 1 e 2 do C.P.M., considerava adequado fixar-se ao arguido a pena única de 4 anos de prisão.
–– Quanto ao do 4° arguido D.
Estava este arguido acusado pela prática em concurso real dos crimes de “consumo de estupefacientes” e “detenção de utensilagem” e decidiu o Colectivo condená-lo como autor do primeiro “em concurso aparente” com o segundo.
Seria assim de se adoptar aqui a mesma solução atrás encontrada para o (2°) arguido B.
Porém, cremos que importa aqui atentar que da factualidade dada como provada não resulta sequer que os “utensílios e equipamento” encontrados no quarto do 2° arguido B foram pelo ora recorrido efectivamente utilizados para o consumo de estupefacientes, nem tão pouco que lhe pertenciam.
Nesta conformidade, há pois que afirmar que cometeu tão só o ora recorrido o crime de “consumo”, e dado que motivos não se vislumbram, mantinha a pena ao mesmo aplicada.
Macau, aos 31 de Março de 2011
José Maria Dias Azedo
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