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Processo nº 884/2010(/) Data: 24.02.2011
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “favorecimento pessoal praticado por funcionário”.
Crime de “falsidade de testemunho”.
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Erro notório na apreciação da prova.
Princípio in dúbio pro reo.
Concurso real.
Autoria e cumplicidade.


SUMÁRIO

1. O vício da “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” apenas ocorre quando o Tribunal omite pronúncia sobre matéria objecto do processo.
Não ocorre tal vício se de uma leitura à decisão recorrida se constatar que o Colectivo a quo não deixou de emitir pronúncia sobre toda a dita “matéria objecto do processo”, enunciando a factualidade que do julgamento resultou provada e não provada, assim como fundamentando, adequadamente, a sua decisão.

2. O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.
É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.

3. O princípio “in dúbio pro reo” identifica-se com o da “presunção da inocência do arguido” e impõe que o julgador valore sempre, em favor dele, um “non liquet”.
Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dúbio pro reo”, decidir pela sua absolvição.
Porém, importa atentar que o referido o princípio (“in dubio pro reo”), só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”.
Daí também que, para fundamentar essa dúvida e impor a absolvição, não baste que tenha havido versões dispares ou mesmo contraditórias, sendo antes necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador - e não no do recorrente - alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que, como se referiu, há-de ser “razoável” e “insanável”

4. Comete o crime de “favorecimento pessoal praticado por funcionário”, o agente da P.S.P. que tendo presenciado a prática do crime de “tráfico de estupefacientes”, nada faz e oculta os seus autores, impedindo actividade probatória da autoridade competente com intenção de evitar o procedimento criminal.

5. Incorre o mesmo agente em outros 2 crimes de “falsidade de testemunho” se, em momento posterior, e em sede de depoimento que prestou na Polícia Judiciária e no Ministério Público, tiver declarado, de forma consciente e deliberada, factos que não correspondem à verdade, cometendo tais 3 crimes em concurso real, pois que aquando do cometimento dos dois últimos, consumado estava o primeiro.

6. Autor do delito é aquele que o executa, realizando os elementos que integram o respectivo tipo legal de crime.

7. Para haver co-autoria (ou comparticipação), necessário é que tenha havido por parte dos agentes do crime uma decisão conjunta com vista à obtenção de um determinado resultado, e uma execução igualmente conjunta, ainda que cada um dos co-autores não participe na execução de todos os actos integradores da infracção.
O acordo pode ser tácito, bastando-se com a consciência/vontade de colaboração dos vários agentes na realização de determinado crime.

8. É cúmplice aquele que tem uma actuação à margem do crime concretamente cometido, quedando-se em actos anteriores ou posteriores à sua efectivação.
Na cumplicidade, há um mero auxílio ou facilitação da realização do acto assumido pelo autor e sem o qual o acto ter-se-ia realizado, mas em tempo, lugar ou circunstâncias diversas.

O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo










Processo nº 884/2010(()
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Em audiência colectiva responderam, no T.J.B., os arguidos (1°) A e (2) B, com os sinais dos autos.

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Findo o julgamento decidiu o Colectivo condenar os (1°) e (2°) arguidos A e B como autores da prática em concurso real de:
– 1 crime de “favorecimento pessoal praticado por funcionário”, p. e p. pelo art. 331°, conjugado com o art. 332° e art. 68-A° do C.P.M., na pena (individual) de 2 anos e 1 ano e 9 meses de prisão, respectivamente;
– 1 crime de “falsidade de testemunho”, p. e p. pelo art. 324°, n° 1 e 3 do C.P.M., na pena (individual) de 1 ano e 6 meses e 1 ano e 3 meses de prisão, respectivamente; e,
– 1 crime de “falsidade de testemunho”, p. e p. pelo art. 324°, n°1, conjugado com o art° 68-A ambos do C.P.M., na pena (individual) de 1 ano e 4 meses e 1 ano e 1 mês de prisão, respectivamente.

Em cúmulo, foi o (1°) arguido A condenado na pena única de 3 anos e 9 meses de prisão, fixando-se, ao (2°) arguido B, a pena única de 3 anos de prisão; (cfr., fls. 1218 a 1218-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformados os arguidos recorreram.

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Na sua motivação e em síntese, considera o (1°) arguido A que devia apenas ser condenado como autor de 1 crime, pois que considera que o crime de “favorecimento pessoal praticado por funcionário” absorve os de “falsidade de testemunho” pelos quais também foi condenado; (cfr., fls. 1252 a 1257).

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Por sua vez, produz o (2°) arguido B as conclusões seguintes:
“1.ª A decisão recorrida mostra-se marcada pelo vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; do vício de erro notório na apreciação da prova; do vício da falta de fundamentação - implicando a sua nulidade - quanto à factualidade delimitadora dos tipos legais incriminadores e quanto aos motivos da opção pela pena privativa da liberdade ao invés da pena suspensa na sua execução; de erro de julgamento; e de violação do princípio in dubio pro reo.
2.ª A factualidade provada pelo Ilustre Colectivo permite as mais profundas dúvidas quanto aos factos efectivamente considerados provados relativamente ao recorrente, pois as referências que lhe são feitas na factualidade apurada são exíguas, esparsas e desarticuladas, não oferecendo uma visão de conjunto do que poderá ter sido a sua comparticipação nos factos julgados provados relativamente ao 1.° arguido.
3.ª A referência a uma deslocação, em 26/8/2007, dos dois arguidos e de um tal C a um bar, num dia de folga dos arguidos, para se divertirem, não é suficiente à demonstração de que o recorrente tenha tomado qualquer conhecimento do telefonema que, ali, terá sido feito pelo 1.° arguido para o referido D a solicitar droga para si próprio.
4.ª A afirmação de que os dois arguidos e o C se deslocaram para a zona do NAPE e que, ali chegados, o 1.° arguido ordenou referido indivíduo para fingir que era um comprador da droga e proceder à transacção com o E, ficando os dois arguidos ali perto a vigiar, não permite uma conclusão segura quanto a saber se o recorrente se apercebera do que se estava a passar nem um qualquer seu conhecimento relativamente à teia de contactos e encontros entre um diverso conjunto de pessoas relativamente às quais o aresto recorrido não estabeleceu qualquer conexão com o recorrente.
5.ª A factualidade apurada não permite entender se o recorrente percebera a razão da ordem para entrega de documentos de identificação a alguns dos indivíduos, se estava a par de qualquer combinação do 1.° arguido com os outros indivíduos referidos, se ali estava supondo que o 1.° arguido tinha em curso uma actividade investigatória relacionada com um caso de droga ( ... ) nem se percebe se o recorrente foi dado como tendo ouvido os diálogos travados pelos diferentes personagens.
6.ª No ponto 19 da factualidade provada (na nossa numeração) descreve-se uma sucessão de factos ocorridos em diferentes locais, concluindo-se que o 1.° arguido e o recorrente ficaram a vigiar perto daquele sítio enquanto quatro outros indivíduos terão ido a outro local, sem que toda a articulação de factos anteriores descritos permita oferecer uma ideia vaga que seja, sequer, sobre o papel que o recorrente ali terá desenvolvido.
7.ª No ponto 20 dá-se conta de que os dois arguidos, ao ouviram o sinal dado pelo F, avançaram para interceptar os G, H e F, ignorando-se, de todo, se o recorrente estava a par de alguma anomalia, irregularidade de procedimento ou ilegalidade no que tange à intercepção dos referidos indivíduos.
8.ª No ponto 21 afirma-se que os dois arguidos encontraram na posse do G os cinco sacos de "Ketamina" ( ... ), sem que, até aí, na narração e articulação dos factos se identifique um acto que faça supôr uma qualquer actuação ilícita do recorrente, o qual poderia não estar a par dos contornos da situação ali descrita.
9.ª No ponto 22 afirma-se que os dois arguidos detiveram o G por suspeita de detenção e de venda dos 13 sacos de "Ketamina", e pediram ao comissariado n. ° 3 para mandar uma viatura ao local, sem que, até aí, se tenha qualquer percepção de que o recorrente tinha conhecimento das voltas e reviravoltas em que se afirma ter estado envolvido o 1.° arguido com várias personagens em relação às quais se não estabelece uma qualquer ligação ao recorrente, em termos que permitam concluir que ele estava a par de algo de anómalo por detrás dos actos profissionais descritos e por si praticados.
10.ª No ponto 23 dá-se como assente que o recorrente ficou no silo a vigiar o G, o H e o F, enquanto o 1.° arguido se afastava dali, para outro local e sem, até aí, se imputar ao recorrente um qualquer conhecimento de anomalias, irregularidades ou ilegalidades na actuação do 1.° arguido; ademais, verifica-se erro notório na apreciação da prova porque no ponto 23 se dá o F como estando em dois distintos locais simultâneamente.
11.ª Nada na factualidade apurada permite supôr que o recorrente mais não relatou, no(s) seu(s) depoimento(s), do que a verdade sobre a realidade de que teve percepção.
12.ª Nada permite concluir que o recorrente soubesse que por detrás da percepção que teve da realidade, houvesse uma transacção de droga organizada ( ... ) pois, em toda a descrição fáctica nada aponta no sentido de que o recorrente soubesse o que se passara por detrás da realidade de que teve percepção.
13.ª A afirmação inscrita no ponto 31, pela desarticulação com toda a factualidade antes apurada, não permite uma conclusão sobre o efectivo conhecimento do recorrente em relação a tudo o que antes se passara de que, como se constata, ele não teve conhecimento senão pontual e esparso, como resulta claramente da matéria facto inscrita nos pontos numerados entre o 13 e o 17.
14.ª No ponto 41, a afirmação de que, em 27/8/2007, os dois arguidos, na qualidade de testemunhas, prestaram juramento e foram advertidos de que poderiam enfrentar a consequência de procedimento penal, havendo eles mantido a versão falsa dos acontecimentos por eles engendrada ( ... ) surge absolutamente do nada porque nada permite, em toda a factualidade descrita anteriormente supôr que o recorrente mais não declarou do que a sua percepção da realidade.
15.ª A conclusão extraída nos pontos 43 e 44 surge desarticulada de qualquer concatenação de factos apurados que tenham envolvido o recorrente no facto ilícito ali descrito que, a ter acontecido, passou ao lado do recorrente.
16.ª A factualidade provada não demonstra uma comparticipação do recorrente nos factos dados por provados em relação ao 1.° arguido.
17.ª A prova produzida noutro processo não poderia ser valorada neste outro.
18.ª Existe uma dúvida inultrapassável quanto a saber se as declarações do recorrente estavam em desacordo com a realidade por ele captada, o que importaria, ainda que se dessem por verificados os elementos objectivos do tipo, a ausência do elemento subjectivo: o dolo.
19.ª Deveria, em consequência, ter sido o recorrente absolvido de todos os crimes imputados.
20.ª É duvidoso que o recorrente possa ser considerado co-autor do crime qualificado de favorecimento pessoal dado por provado relativamente ao 1.° arguido pois não se identifica, na decisão recorrida, qual terá sido o móbil desse como dos restantes crimes imputados.
21.ª É duvidoso que o ora recorrente tenha sido co-autor do crime qualificado de favorecimento pessoal, porque toda a (esparsa e desarticulada) factualidade contra si apurada apenas permite, no mínimo, que o recorrente seja dado como cúmplice do 1.° arguido na execução do aludido crime e não como co-autor.
22.ª A ser concluído o recorrente deveria ser condenado como cúmplice do aludido crime de favorecimento pessoal e condenado globalmente numa pena não deveria ser superior a 2 anos 3 meses de prisão, tendo-se particularmente em consideração que ambos os crimes de falsidade de testemunho são abstractamente puníveis, alternativamente, com pena de prisão ou multa.
23.ª É duvidosa a a aplicação de pena de prisão pelo crime de falsidade de testemunho, só devendo o tribunal negar a aplicação de uma pena alternativa ou de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária.
24.ª Na alternativa, e na ponderação da falta de fundamentação da opção pela pena de prisão relativamente a esses dois crimes, pede-se a condenação do recorrente numa pena alternativa de multa, até pelo papel reconhecidamente secundário que, ainda que a admitir o seu envolvimento nos factos, terá tido em relação ao 1.° arguido.
25.ª No quadro, mesmo tomando em consideração a alternativa que se deixou aberta, admite-se ser totalmente injustificada a pena de prisão efectiva aplicada ao recorrente, até pela insuficiência de fundamentação que a caracterizou.
26.ª Ainda quando assim não seja entendido e seja, antes, decidido manter as penas parcelares aplicadas e a pena global única (de 3 anos de prisão) encontrada - na improcedência do pedido principal e do primeiro pedido subsidiário formulados - , a infundamentação observada no aresto quanto à opção pela pena de prisão efectiva impunha a sua alteração sendo a pena suspensa na sua execução, mostrando-se, pois, infundamentada a razão pela qual o Colectivo optou pela não suspensão da execução da pena.
27.ª Não se diz qual foi a conduta anterior ao crime que foi ponderada, sendo certo que o recorrente é delinquente primário e não foi junta aos autos ou produzida qualquer prova e muito menos invocada na decisão recorrida para justificar um qualquer mau comportamento anterior ou posterior aos factos.
28.ª O recorrente permaneceu à disposição da justiça, havendo cumprido rigorosamente a única medida de coacção que lhe foi aplicada e sendo certo que se a não confissão de crime não constitui uma circunstância atenuante, não pode, porém, ser valorada como circunstância agravativa da responsabilidade do agente.
29.ª As circunstâncias do crime já ponderadas nas operações da dosimetria da pena, não poderiam ser duplamente valoradas na decisão de suspender, ou não, essa execução, por ser essa dupla valoração proibida por lei.
30.ª A PSP, a nível do procedimento disciplinar, decidiu não proceder autonomamente, ficando a aguardar a decisão do processo crime.
31.ª A determinação da pena a aplicar, em concreto, ao arguido terá sempre que ser feita em função da sua culpa e a comparticipação do recorrente nos factos imputados ao 1.° arguido, a ter-se por provada, dada a fraca intensidade do dolo, justificariam sempre a suspensão da pena de prisão aplicada.
32.ª O aresto recorrido violou as normas dos art.°s 331.° e 324.° do C. Penal ao proceder à sua aplicação ao recorrente num quadro que impunha a sua desaplicação.
33.ª Incorreu em erro nas regras da dosimetria da pena porque o recorrente não foi co-autor mas apenas cúmplice, se houvesser de decidir pelo seu envolvimento nos factos.
34.ª Violou a norma do art.° 48.° do C.P.Penal ao desaplicá-la na situação do recorrente e a norma do art.° 360.°, n.° 2 ao não respeitar as exigências de fundamentação da sentença penal e as regras de avaliação dos pressupostos do instituto de suspensão da execução da pena, incorrendo na sua nulidade.
35.ª Violou o princípio da proibição da dupla valoração ao considerar elementos integradores do tipo na apreciação da opção entre a aplicação de prisão efectiva ou de pena suspensa na sua execução; violou, ainda, o princípio in dubio pro reo.”; (cfr., fls. 1303 a 1347).

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Respondendo, pugna o Exm° Magistrado do Ministério Público pela improcedência dos recursos; (cfr., fls. 1352 a 1358 e 1359 a 1371).

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Remetidos os autos a este T.S.I., e em sede de vista, considera a Ilustre Procuradora-Adjunta que se deve rejeitar o recurso do (1°) arguido A, por inobservância ao estatuído no art. 402°, n° 2 do C.P.P.M., julgando-se improcedente o recurso do (2°) arguido B; (cfr., fls. 1385 a 1389)

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Passa-se a apreciar e decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Dão-se aqui como integralmente reproduzidos os factos dados como provados no Acórdão recorrido e que constam a fls. 1213 a 1216-v.

Do direito

3. Dois sendo os recursos trazidos à apreciação deste T.S.I., comecemos pelo do (1°) arguido A.

3.1. Do recurso do (1°) arguido A.

Como resulta do que até aqui se deixou relatado, coloca tão só este arguido uma “questão de direito” que tem a ver com a qualificação da sua conduta, afirmando que devia ser apenas condenado como autor de 1 crime, pois que considera que o crime de “favorecimento pessoal praticado por funcionário” absorve os de “falsidade de testemunho”.

No seu douto Parecer, considera a Ilustre Procuradora-Adjunta que se deve rejeitar o recurso dado que, suscitando uma “questão de direito”, não observou o recorrente a norma do art. 402°, n° 2 do C.P.P.M..

Correcto é o assim entendido.

De facto, nos termos do mencionado art. 402°, n° 2:
“2. Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e
c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.”

Nesta conformidade, e constatando-se que observado não foi o transcrito comando legal, impõe-se a rejeição do recurso em apreciação.

3.2. Do recurso do (2°) arguido B.

Colhe-se da motivação e conclusões pelo ora recorrente oferecidas a final daquela que é o mesmo de opinião que o Acórdão recorrido padece dos vícios de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “erro notório na apreciação da prova”, violação do princípio “in dúbio pro reo”, “falta de fundamentação”, “errada qualificação jurídico-penal da sua conduta” e “excesso da pena”.

— Comecemos pelos vícios da matéria de facto.

Pois bem é sabido que o vício da “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” apenas ocorre quando o Tribunal omite pronúncia sobre matéria objecto do processo.

E, constatando-se que o Colectivo a quo não deixou de se pronunciar sobre toda a dita “matéria objecto do processo”, enunciando a factualidade que do julgamento resultou provada e não provada, assim como fundamentando, adequadamente, a sua decisão, há que dizer que não se vislumbra o assacado vício.

Quanto ao também imputado “erro notório na apreciação da prova”, vejamos.

Repetidamente tem este T.S.I. afirmado que:
“O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”

De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.”; (cfr., v.g., Ac. de 27.01.2011, Proc. n° 470/2010, do ora relator).

Na situação dos presentes autos, e se bem ajuizamos, diz o recorrente que incorreu o Colectivo a quo no vício em questão porque “se dá o F como estando em dois distintos locais simultaneamente”; (cfr., concl. 10ª).

Fundamentando tal entendimento, invoca o ponto 23° da sua tradução da matéria de facto, onde consta o que segue:
“Enquanto aguardava a chegada do veículo, o 2.° arguido ficou no silo a vigiar o G, o H e o F, enquanto o 1.° arguido voltou ao aludido terreno vago do Centro UNESCO de Macau, entretanto, sem imputar a responsabilidade do tráfico de droga ao E e mandou este, o I, o F e o C sairem do local.”; (sub. nosso).

Ora, há equívoco resultante de um lapso na tradução pelo recorrente efectuada.

De facto, o que consta da matéria de facto como provada no Acórdão recorrido é – aproveitando-se a tradução do recorrente – que:
“Enquanto aguardava a chegada do veículo, o 2.° arguido ficou no silo a vigiar o G, o H e o F, enquanto o 1.° arguido voltou ao aludido terreno vago do Centro UNESCO de Macau, entretanto, sem imputar a responsabilidade do tráfico de droga ao E e mandou este, o I, o J e o C sairem do local.”; (sub. nosso; cfr., pág. 10 do Acórdão recorrido, penúltimo parágrafo).

Nesta conformidade, e não nos parecendo assim de concluir existir o assacado “erro notório”, também na parte em questão, improcede o recurso.

— Vejamos agora da alegada “falta de fundamentação”.

Pouco há a dizer sobre o vício em questão.

Na verdade, no Acórdão ora recorrido, e como se disse, não deixou o Colectivo a quo de se pronunciar sobre toda a matéria objecto do processo, elencando os factos provados e não provados, fundamentando, adequadamente, esta sua decisão.

Por sua vez, o mesmo sucedeu em relação à qualificação jurídico-penal da sua conduta, e em relação às penas parcelares e única.

Pode-se, óbviamente discordar da fundamentação exposta, porém, e como temos entendido em situações análogas, tal não significa que fundamentado não esteja o Acórdão em questão.

— Quanto à violação do princípio “in dúbio pro reo”.

Com já tivemos oportunidade de afirmar:
“O princípio “in dúbio pro reo” identifica-se com o da “presunção da inocência do arguido” e impõe que o julgador valore sempre, em favor dele, um “non liquet”.
Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dúbio pro reo”, decidir pela sua absolvição.
Porém, importa atentar que o referido o princípio (“in dubio pro reo”), só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”.
Daí também que, para fundamentar essa dúvida e impor a absolvição, não baste que tenha havido versões dispares ou mesmo contraditórias, sendo antes necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador - e não no do recorrente - alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que, como se referiu, há-de ser “razoável” e “insanável”.”;(cfr., Ac. de 20.01.2011, Proc. n° 991/2010, do ora relator).

“In casu”, e face ao que até aqui se deixou consignado, e atenta a fundamentação exposta na decisão recorrida, motivos não temos para considerar que desrespeitou o Colectivo a quo o aludido princípio, pois que em lado algum do Acórdão se extrai que, não obstante dúvida quanto à prova dos factos imputados ao ora recorrente se veio a decidir a seu desfavor.

— Da qualificação jurídico-penal da conduta do recorrente,

Também aqui não vemos motivos para censurar o Acórdão recorrido.

No que tange aos crimes pelos quais foi condenado, acertada se nos mostra a decisão.

Com efeito, resulta da matéria de facto dada como provada que o ora recorrente ocultou intencionalmente o envolvimento de E na prática do crime de “tráfico de estupefacientes”, incorrendo assim claramente no crime de “favorecimento pessoal” tipificado no art. 331° e 332° do C.P.M., (dada a sua qualidade de agente da P.S.P.).

Visto também que prestou, consciente e deliberadamente, depoimento que não correspondia à verdade, em sede do depoimento que prestou na Polícia Judiciária e nos Serviços do Ministério Público, não nos parece que se possa igualmente por em causa a sua autoria nos crimes de “falsidade de testemunho” p. e p. pelo art. 324° do mesmo código.

Diz o recorrente que devia apenas ser considerado cúmplice e não co-autor no crime de “favorecimento pessoal”.

Por nós, cremos que sem razão.

Tem sido entendimento firme deste T.S.I. que:
“São requisitos essenciais para que ocorra “comparticipação criminosa” sob a forma de “co-autoria”, a existência de decisão e de execução conjuntas.
O acordo pode ser tácito, bastando-se com a consciência/vontade de colaboração dos vários agentes na realização de determinado crime.
No que respeita à execução, não é indispensável que cada um dos agentes intervenha em todos os actos ou tarefas tendentes a atingir o resultado final, importando apenas que a actuação de cada um, embora parcial, se integre no todo e conduza à produção do objectivo em vista.
No fundo, o que importa é que haja uma actuação concertada entre os agentes e que um deles fira o bem tutelado”, (cfr., v.g., o Ac. de 30.09.2004, Proc. n° 161/2004), e que,
“Autor do delito é aquele que o executa, realizando os elementos que integram o respectivo tipo legal de crime. Para haver co-autoria (ou comparticipação), necessário é que tenha havido por parte dos agentes do crime uma decisão conjunta com vista à obtenção de um determinado resultado, e uma execução igualmente conjunta, ainda que cada um dos co-autores não participe na execução de todos os actos integradores da infracção.
Por sua vez, é cúmplice aquele que tem uma actuação à margem do crime concretamente cometido, quedando-se em actos anteriores ou posteriores à sua efectivação. Na cumplicidade, há um mero auxílio ou facilitação da realização do acto assumido pelo autor e sem o qual o acto ter-se-ia realizado, mas em tempo, lugar ou circunstâncias diversas. Portanto, aqui, o cúmplice, fica fora do acto típico e só deixa de o ser, assumindo então o papel de co-autor, quando participa na execução, ainda que parcial, do projecto criminoso.”; (cfr., v.g., o Ac. de 12.02.2004, Proc. n° 21/2004).

E de uma leitura aos factos dados como provados afigura-se que inegável é que o ora recorrente é co-autor em tal crime, pois que teve intervenção directa e “essencial” no seu cometimento, não se limitando a auxiliar o (1°) arguido A na sua prática, mostrando-se também de concluir que houve uma “actuação concertada” entre ambos.

Atente-se pois, na matéria de facto explicitada no Acórdão recorrido, e, nomeadamente, nos pontos 9°, 11°, 12°, 19°, 20°, 22°, 23°, 24°, 31° e 43° da tradução pelo próprio recorrente efectuada, de onde, em nossa opinião, e de forma clara, se retira que (ambos) os arguidos acordaram, tacitamente, agir em conjugação de esforços, o que desde logo, afasta a participação do ora recorrente no crime em questão na qualidade de (mero) “cúmplice”.

Por fim, e atenta a conduta pelo recorrente desenvolvida, não se deixa de dizer que cometeu o ora recorrente, em concurso real, 1 crime de “favorecimento pessoal” e outros 2 de “falsidade de testemunho”, pois que quando cometeu estes últimos dois, (também em concurso real, dado que verificados não estão os pressupostos para se considerar como a prática de 1 crime na forma continuada; cfr., art. 29° do C.P.M.), consumado já estava aquele crime de “favorecimento pessoal”, inviável nos parecendo assim a eventual consideração no sentido de que este, (o primeiro), consome (ou absorve) os restante dois de “falsidade de testemunho”.

— Quanto à pena.

Como se deixou relatado, pelo crime de “favorecimento pessoal” foi o recorrente condenado na pena de 1 ano e 9 meses de prisão e pelos 2 crimes de “falsidade de testemunho” nas penas de 1 ano e 3 meses de prisão e 1 ano e 1 mês de prisão”.

Pois bem, atenta a sua qualidade de “funcionário” – agente da P.S.P. – ao crime de “favorecimento pessoal” cabe a pena de prisão até 5 anos; (cfr., art. 331°, n° 1 e 332° do C.P.M.).

Por sua vez, aos crimes de “falsidade de testemunho” cabe a pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou multa não inferior a 60 dias, e a pena de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias; (cfr., art. 324°, n° 1 e 3 do mesmo código).

No caso, importa ainda ponderar que a conduta do ora recorrente quanto ao crime de “favorecimento pessoal” e em relação a 1 dos crimes de “falsidade de testemunho”, preenche, também, o preceituado no art. 68°-A (introduzido pela Lei n°6/2001 de 08.05), dando assim lugar a uma agravação da pena, ficando assim os respectivos limites mínimo e máximo das respectivas penas elevados de um terço.

Ora, atentas as molduras penais assim em causa, e sem prejuízo do muito respeito por opinião em sentido diverso, cremos até que algo benevolente são as penas (parcelares) que ao recorrente foram impostas.

Não se olvida que nos termos do art. 64° do C.P.M.:
   “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”

Porém, atenta a conduta em causa e o preceituado no art. 40° quanto aos “fins das penas”, não se vê como é que em relação aos crimes de “falsidade de testemunho”, (únicos aqui em causa), se pudesse optar por uma pena não privativa da liberdade.

Com efeito, na factualidade dada como provada nenhuma matéria ou circunstância favorável ao recorrente se encontra, (nem nos parece que o recorrente a explicite), sendo também fortes as razões de prevenção especial e geral.

E, atento o preceituado no art. 65° do C.P.M., (onde se fixam os critérios para a “determinação da medida da pena”), ponderando no grau de culpa do ora recorrente (dolo intenso), na forma de cometimento e natureza dos crimes, (não sendo de esquecer que estamos perante “crimes contra a realização da Justiça”), no acentuado grau de ilicitude dos factos, (notando-se também que a imagem global dos factos é de extrema gravidade, a suscitar justificada repulsa social e punição adequada), mais não é preciso dizer para se concluir como atrás se deixou consignado.

No que tange à pena única, atento o estatuído no art. 71°, n° 2, onde se estatui o critério para se encontrar a moldura para a pena em causa, e “considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente” (cfr., n° 1), também não se mostra de concluir que excessiva ou inflacionada é a pena (única) de 3 anos de prisão.

Por fim, e ainda que esteja tal pena em medida (não superior a 3 anos de prisão, e daí) que permitisse uma decisão no sentido da suspensão da sua execução, (art. 48° do C.P.M.), adequada se nos mostra a decisão recorrida que assim não entendeu.

Como é sabido, e como já teve este T.S.I. oportunidade de afirmar:
“1. O artigo 48º do Código Penal de Macau faculta ao juiz julgador a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido quando :
– a pena de prisão aplicada o tenha sido em medida não superior a três (3) anos; e,
– conclua que a simples censura do facto e ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (cfr. art.º 40.º), isto, tendo em conta a personalidade do agente, as condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
E, mesmo sendo favorável o prognóstico relativamente ao delinquente, apreciado à luz de considerações exclusivas da execução da prisão não deverá ser decretada a suspensão se a ela se opuseram as necessidades de prevenção do crime.”; (cfr., v.g., Ac. recente de 27.01.2011, Proc. n° 781/2009, do ora relator).

E, como se nos mostra evidente, ponderando na factualidade dada como provada, na personalidade do ora recorrente, e nas necessidades de prevenção especial e geral, impõe-se concluir que inviável é um “juízo prognose favorável” ao recorrente, o mesmo sucedendo com as necessidades de prevenção criminal, e, assim, que uma simples censura do(s) facto(s) e ameaça de prisão não realizam, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.

Tudo visto, resta decidir.

Decisão

4. Em face de tudo quanto se tentou deixar esclarecido, acordam rejeitar o recurso do (1°) arguido A, julgando-se improcedente o do (2°) arguido B.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça de 4 UCs para o recorrente A e 10 Ucs para o recorrente B.

Pela rejeição do seu recurso, pagará o recorrente A o equivalente a 3 UCs; (art. 410°, n°4 do C.P.M.).

Macau, aos 24 de Fevereiro de 2011
José Maria Dias Azedo (Relator)
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa



Processo redistribuído ao ora relator em 10.01.2011.
. Processo redistribuído ao ora relator em 10.01.2011.
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Proc. 884/2010 Pág. 36

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