Processo nº 325/2010
(Autos de recurso contencioso)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A, com os sinais dos autos, veio interpor o presente recurso contencioso de anulação do despacho proferido pelo EXM° SECRETÁRIO PARA OS TRANSPORTES E OBRAS PÚBLICAS de 10.08.2009, com o qual se indeferiu o recurso hierárquico que tinha interposto do acto administrativo praticado pelo Exm° Director da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes de 25.05.2009, que ordenou a demolição da obra executada no terreno situado no caminho junto ao “Tin Hau Miu”, em Coloane.
Na sua petição inicial alega para concluir que:
“1.ª Diz-nos o preambulo da Lei das Terras publicada através da Lei n.° 6/80/M de 5 de Julho. No seu ponto n.° 2 o seguinte: " A ocupação e concessão de terrenos vagos do território têm o seu assento legal no Diploma Legislativo n.° 1679, de 21 de Agosto de 1965, sendo as situações criadas anteriormente à sua vigência contempladas no Regulamento aprovado pelo Diploma Legislativo n.° 651. de 3 de Fevereiro de 1940" (sublinhado nosso).
2.ª Nestes termos, a Lei terá de ser aplicada com respeito pelos particularismos das situações acima mencionadas.
3.ª Ou seja, se de acordo com a prática comum, ao longo de décadas, o titular de um direito de arrendamento ou de uma licença, poderia por mero escrito particular proceder a substituição da sua parte no processo, desde que desse conhecimento à antiga recebedoria da Repartição de Finanças das Ilhas.
4.ª Não tendo havido no caso em apreço alteração de parte no processo, uma vez que a Recorrente é filha do legitimo titular da licença, não devia haver qualquer razão para se preocupar com a legalidade da ocupação, uso e fruição do referido edifício.
5.ª Por outro lado, a administração nunca lhe dirigiu qualquer intimação a um comportamento ou a adopção de quaisquer procedimentos legais, em termos de regularizar qualquer situação considerada marginal.
6.ª A Recorrente entende que possam existir pessoas a ocupar as respectivas casas, com "contratos" recentemente outorgados, depois da transferência da soberania.
7.ª Mas, com a devida vénia, a Recorrente não!
8.ª A Recorrente nasceu no edifício ora colocado em crise sito no caminho junto ao Tin Hau Miu, em Coloane, e lá viveu toda uma vida, se tiver de sair para onde irá viver? E com que recursos poderá começar tudo de novo?
9.ª Relativamente a esta resposta a administração criou algumas expectativas, ou seja, a preocupação dos habitantes na vila de Coloane foi levada ao conhecimento da DSSOPT.
10.ª E uma das soluções apresentadas foi a anunciada pelo Govemo da RAEM, vide, Jornal "Ou Mun Iat Pou" de 21 de Agosto de 2009, de acordo com o documento que ora se junta sob o número 53.
11.ª Ou seja, a solução dos problemas de habitação dos residentes das zonas antigas que inicialmente se encontravam a ocupar as respectivas áreas antes da transferência de soberania, passava pela introdução do regime de arrendamento, com prazo habitual de concessão não superior a 25 anos.
12.ª A Recorrente tem já quase 50 anos, quem lhe dará emprego, tendo investido todas as suas poupanças na melhoria daquele que considerou ser o seu lar, ver de um momento para o outro, tudo o que conseguiu na vida, desaparecer como se tivesse sido atingida por uma tempestade de areia do deserto, será o seu maior desafio!
13.ª A situação da Recorrente é comum a muitos particulares, e em causa está a negação de justiça, uma vez que de acordo com o que se recordam, não foram notificados pessoalmente que teriam de legalizar os documentos particulares de transferência das posições jurídicas de que eram e são portadores ou sequer renovar anualmente quaisquer licenças.
14.ª Por outro lado, a Recorrente faz prova da sua legitimidade para ocupar o edifício colocado em crise, com a apresentação da facturação de água e electricidade endereçada em nome dos seus pais.
15.ª Sendo assim, a Recorrente questiona-se: Como é que se pode simplesmente ignorar todos estes factos negando-se-lhe sequer direito a prazo de regularização do que a Administração considera marginal?
16.ª A ora Recorrente concede, que não submeteu o respectivo pedido de licença de obras, mas já não concede, no facto de não ter legitimidade para o fazer!
17.ª Até porque nos termos do disposto no artigo 5.° n.° 4 da Lei n.° 6/80/M de 5 de Julho com a nova redacção introduzida pela Lei n.° 2/94/M de 4 de Julho prevê a aquisição do domínio útil de prédio urbano é adquirível por usucapião desde que a posse por particular, seja exercida há mais de vinte anos.
18.ª Como já acima se invocou, e salvo douta e melhor opinião, da simples leitura do acto ora recorrido, resulta clara e inequívoca contradição na fundamentação.
19.ª Se a Administração reconhece a Recorrente como "interessada" está a admitir a possibilidade de existência de um direito ou legitima expectativa com algum substrato legal, o que contradiz a afirmação de não existência de "... qualquer outro direito real, nomeadamente de concessão, por aforamento ou arrendamento".
20.ª A falta de Legitimidade conduz à nulidade ou inexistência de quaisquer efeitos jurídicos praticados por quem careça desse pressuposto legal, ao passo que a falta de um requisito legal de procedimento conduz à intimação a um comportamento e rectificação do mesmo.
21.ª Aliás, esta hermenêutica é forçosamente consequência da aplicação dos Princípios Básicos De Direito que norteiam a actividade Administrativa e que encontram acolhimento no Código de Procedimento Administrativo nomeadamente nos seus artigos de 4.°, 5.°, 7.°, 8.°, 9.° 14.° e tendo como pilar desta Pirâmide de Direitos o Princípio da Legalidade previsto no artigo 3.° do mesmo Código.
22.ª Nos termos deste Princípio a Administração Pública deve actuar em obediência à Lei e ao Direito, ora na modesta opinião da Recorrente, representa uma negação de justiça, desproporcionalidade e clara manifestação da falta de protecção dos seus direitos já adquiridos no passado e actualmente cristalizados na sua esfera jurídica o cumprimento do acto recorrido.
23.ª Tendo a Recorrente legitimidade para requerer a legalização da ocupação do imóvel em apreço, não devia a Administração, simplesmente passar por cima desta situação fáctica, impondo actos que colidem com os seus direitos, e que ademais, podem ser corrigidos com a apresentação do respectivo pedido de Licenciamento de Obra, e consequente pagamento das taxas para legalização nos termos das disposições dos artigos 65.° e 70.° RGCU - Regulamento Geral da Construção Urbana.
24.ª Esta parece ser a solução de direito, mais justa, equitativa e respeitante dos direitos da Recorrente, que não ignorando a orientação que o Douto Tribunal de Segunda Instância vem defendendo, "que não pode haver igualdade na ilegalidade", o facto é que, impor este sacrifício à Recorrente significa que um número indiscriminado de residentes em Coloane, e em situação análoga à da ora Recorrente, ficarão sujeitos à demolição das suas casas sem direito a outra solução jurídica.
25.ª Ou sequer a uma indemnização ou prioridade para requerer uma habitação social atribuída pela Administração.
26.ª O Acto Administrativo de que se recorre, entra em contradição com as legítimas expectativas dos Recorrente, em face das medidas anunciadas pelo Governo da RAEM, vide, Jornal "Ou Mun lat Pou" de 21 de Agosto de 2009.
27.ª A Administração anunciou projectos de solução dos problemas de habitação dos residentes das zonas antigas de Coloane, que inicialmente se encontravam a ocupar as respectivas áreas antes da transferência de soberania com propostas de introdução de regime de arrendamento, com prazo habitual de concessão não superior a 25 anos,
28.ª Todo e qualquer acto administrativo visa a prossecução do interesse público, salvo respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares.
29.ª Na senda deste respeito, cujo pilar repousa no Principio da Legalidade da Actividade Administrativa, e não só, esclarece o Professor Vieira de Andrade, sobre o que sejam interesses legalmente protegidos: " Na sua opinião, esse interesse apenas pode ser visto no plano substantivo e não no plano processual. Isto é, não se identifica com o interesse que é pressuposto da legitimidade para recorrer contenciosamente. O que se tem em vista são "posições jurídicas substantivas, através das quais a lei delimita, em favor dos particulares, áreas de protecção, que podem ser afectadas, mas devem ser respeitadas pela actividade administrativa, sendo susceptíveis de reconhecimento judicial independentemente da anulação de acto administrativo que os ofenda" (sublinhado nosso). Ob. Cit. pág. 639 e 642 in "Comentários ao Código de Procedimento Administrativo" Anotado e Comentado, Lino José Baptista Rodrigues Ribeiro e José Cândido de Pinho.
30.ª Nestes termos deve ser reconhecido à Recorrente o direito de continuar a viver na casa em litígio e consequentemente ser reconhecida a aquisição a titulo de usucapião do domínio útil do edifício em crise, em virtude do decurso do tempo, anulando-se o acto recorrido e intimando-se a Recorrente para legalizar as obras num prazo a fixar por Vossas Excelências.”; (cfr., fls. 2 a 26).
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Contestando, e em sede de conclusões, afirma a entidade recorrida que:
“21.1 Porque, o artigo 194.° da Lei n.° 6/80/M de 5 de Julho (Lei de Terras) prevê : "As ocupações por licença autorizadas antes da entrada em vigor desta lei, por esta se passam a reger, sem necessidade, porém, de substituição do título ".
21.2 O artigo 69.° da Lei de Terras prevê: "A ocupação por licença é destinada a terrenos a utilizar temporariamente e àqueles em relação aos quais se revele inconveniente a criação de direitos duradouros ".
21.3 O n.° 1 do artigo 71.° da Lei de Terras prevê: "A licença de ocupação é outorgada pelo período de um ano e considera-se caducada, se a sua renovação não for requerida dentro do prazo de sessenta dias, antes do seu termo. ".
21.4 Por isso, a licença de ocupação mencionada pela recorrente no ponto 12.° da petição inicial não é título legal do direito de propriedade do terreno, ademais, a respectiva licença já caducou.
21.5 O n.° 2 do artigo 144.° da Lei de Terras prevê: "As situações resultantes da licença de ocupação são intransmissiveis ", daí se ver que, mesmo que a recorrente seja filha do titular da licença, não era possível passar a ser, segundo a lei, o titular da licença em causa, ademais, in casu, a respectiva licença já caducou, por isso, nos termos da lei, a recorrente não goza, pela licença em causa, de nenhum direito de propriedade ou direito real sobre o terreno onde a referida obra ilícita está implantada.
21.6 Além disso, o conteúdo da petição inicial referida pela recorrente e os documentos anexados não podem comprovar legalmente que, pela licença em causa, a recorrente goza do direito de propriedade ou direito real sobre o terreno onde a referida obra ilícita está implantada, porque os respectivos documentos não são títulos efectivos legais do direito de propriedade ou do direito real sobre o terreno em causa.
21.7 Ao abrigo do certificado emitido em 7 de Maio de 2009 pela Conservatória de Registo Predial, não se encontra nenhum registo real inscrito em nome particular do terreno onde a referida obra ilícita está implantada.
21.8 Nos termos do artigo 7.° da Lei Básica da RAEM, o terreno onde a referida obra ilícita está implantada pertence ao Estado.
21.9 A recorrente sustentou, no ponto 43.° da petição inicial e no ponto 17.° da sua conclusão, que nos termos do artigo 5.° n.° 4 da Lei de Terras aprovada pelo Decreto-Lei n.° 6/80/M, de 5 de Julho, ela pode adquirir o domínio útil do referido terreno pela sua posse há mais de 20 anos, alegações essas também são improcedentes, uma vez que após o estabelecimento da Região, não se pode obter o reconhecimento de domínio útil a favor de particulares dos terrenos pertencentes ao Estado através de decisão judicial.
21.10 A recorrente não tem nenhum direito real sobre o referido terreno nem apresentou nenhuma prova legal para comprovar o seu domínio útil do referido terreno, por isso, a recorrente não tem legitimidade para pedir a licença de obras de construção ou reconstrução do edifício no referido terreno.
21.11 Nos termos do auto de notícia de 1 de Abril de 2009 e dos dados constantes do sistema de gestão de licença de obras (até 8 de Maio de 2009) do LOB da DSSOPT, é comprovado que a recorrente construiu verdadeiramente o edifício sem a obtenção da respectiva licença de obras (cfr. fls. 5 e 74 dos autos), razão pela qual, violados os dispostos do n.° 1 do artigo 3.° do Decreto-Lei n.° 79/85/M de 21 de Agosto.
21.12 Ademais, a "falta de legitimidade para pedir a licença de obras" não pode servir de fundamento para realizar obras ilícitas, uma vez que nem o Regulamento Geral da Construção Urbana nem as demais leis em vigor prevêem que "a falta de legitimidade para pedir a licença de obras" pode servir de pressuposto de "realização de obra com dispensa de licença".
21.13 Também não existe a "esperança legítima" mencionada no requerimento da recorrente, uma vez que no início de 2009 o Governo já reiterou repetidamente que são proibidos "os actos de ocupação e de usurpação ilícitas dos terrenos e as obras ilícitas de restauro e de reparação de moradias para habitação".
21.14 Mais ainda, em 3 de Abril de 2009, o pessoal de inspectores da DSSOPT afixou uma ordem de proibição da execução da obra no local da obra ilícita posta em crise no presente processo, porém, a recorrente ignorou a referida ordem, continuou a realizar a obra sem licença e concluiu a construção do referido edifício.
21.15 Assim sendo, o Secretário para os Transportes e Obras Públicas proferiu em 10 de Agosto de 2009 um despacho na Informação/Proposta n.° 4037/DURDEP/2009, em que rejeitou o aludido recurso hierárquico e manteve a decisão de demolição da referida obra ilícita, o aludido acto administrativo recorrido não enferma dos vícios invocados pela recorrente na sua petição inicial."”; (cfr., fls. 93 a 101 e 112 a 123).
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Em sede de vista, juntou o Exm° Magistrado do Ministério Público o seguinte douto Parecer:
“Vem A impugnar o despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas que, em sede de recurso hierárquico, manteve decisão do director da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes que, na sequência de embargo, ordenou a demolição da obra ilegal sita no terreno situado no caminho junto ao Tin Hau Miu em Coloane, assacando-lhe, ao que ousamos discernir, vícios de contradição na fundamentação e violação de lei, pelo que apelida de “erro manifesto”, argumentando, em síntese que, por um lado, ao tê-la como “interessada” no procedimento, a Administração está, implìcitamente, a assumir a possibilidade da existência de direito ou legítima expectativa da mesma, o que contradiz a asserção de que ela não detém “...qualquer outro direito real, nomeadamente de concessão, por aforamento ou arrendamento”, e, por outro, desde a década e 60 que foi concedida ao seu falecido pai licença de ocupação do terreno onde se encontra implantada a obra em questão, a qual foi sendo sucessivamente renovada até, pelo menos, 1989, sendo que, desde o seu nascimento, em 21/8/60, sempre a recorrente viveu na casa de madeira existente no local, continuando a ser-lhe facturadas, pelos serviços competentes, as contas de água e electricidade, razão por que exercendo a posse e detendo o domínio útil do terreno há mais e 20 anos, se poria a questão de aquisição, por usucapião.
Cremos, porém, não lhe assistir razão.
Desde logo, o facto e a Administração a considerar como “ínteressada” no procedimento, mais não revela que isso mesmo : a constatação da situação de facto criada, com a “presença” e o arrogo da recorrente ao terreno e obra, em nada colidindo ou contrariando tal constatação com a conclusão de que a mesma assim agia sem direito ao que se arrogava, não se divisando, pois, onde a motivação em que se estribou o acto se mostre obscura ou contraditória.
Depois, como bem adianta a entidade recorrida, a licença de ocupação com que a recorrente esgrime não só se mostra, há muito, caducada, nos termos do nº 1 do artº 71º da Lei de Terras, como as situações resultantes dessa licença são intransmissíveis, de acordo com o disposto no nº 2 do artº 144º do mesmo diploma, não se podendo também equacionar, dados os específicos contornos da situação a almejada usucapião
Dispondo, além do mais, o artº 7º da LBRAEM que “Os solos e os recursos naturais na Região Administrativa Especial de Macau são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau”, e, tendo o acórdão do Venerando TUI, proferido no âmbito do proc. 32/2005, publicado no B.O., II Série, de 2/8/06, consignado que “Após o estabelecimento da Região, não se pode obter o reconhecimento de propriedade privada ou domínio útil a favor de particulares, dos referidos terrenos, através de decisão judicial, independentemente de acção a ser proposta antes ou depois da criação da Região”, todo o argumentado pela recorrente, sendo estimável, se revela, pois, inócuo, já que, quer antes, quer depois do estabelecimento da RAEM, não logrou estabelecer o registo, a seu favor, do direito de propriedade ou qualquer outro direito real, designadamente de concessão, por aforamento ou arrendamento, que lhe confira legitimidade para ocupação do terreno e, consequentemente, requerer o licenciamento da obra.
Por outra banda, cabendo ao Governo da Região, ainda nos termos do artº 7º da LBRAEM anunciado, a responsabilidade pela gestão, uso e desenvolvimento dos solos, bem como o seu arrendamento ou concessão a pessoas singulares ou colectivas para uso ou desenvolvimento, ficando os rendimentos daí resultantes exclusivamente à disposição do Governo da RAEM, apresenta-se a ordem de demolição, além de justa e adequada, como a mais consonante com a prossecução do interesse público, já que, tendo a Administração detectado a situação, não poderia pactuar com a mesma não se vendo que outra medida ou medidas, no quadro da prossecução daquele interesse público, pudessem ser tomadas, menos gravosas para a posição jurídica da interessada : revelando-se a obra detectada ilegal e não legalizável, por manifesta ilegitimidade da recorrente, outra medida consonante com o interesse público não restaria senão a ordem de demolição, não se vendo, pois, afrontada a proporcionalidade, tanto mais que a interessada se viu “avisada” atempadamente, pelos serviços competentes, da ilegalidade da obra e das consequências da sua prossecução
Tudo razões por que, não se descortinando a ocorrência de qualquer dos vícios assacados, ou de qualquer outro de que cumpra conhecer, somos a pugnar pelo não provimento do presente recurso.”; (cfr., fls. 128 a 131).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Mostram-se assentes os factos seguintes (com interesse para a decisão a proferir):
– em 17.04.2009, e por decisão do Exm° Director dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, tornou-se público o edital com o teor seguinte:
“Processo n.°: 397/OI/2009/F
Jaime Roberto Carion, Director dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, faz saber por este meio ao dono, cuja identidade e morada se desconhecem, da obra não autorizada, em construção no terreno, situado junto ao Largo Tin Hau Miu, em Coloane, e demais pessoas relacionadas com a execução da obra no local, todos adiante designados simplesmente por notificandos, o seguinte:
1. O agente de fiscalização destes Serviços, no desempenho das suas funções, constatou que no local supra-identificado se encontrava em construção um prédio com estrutura em betão armado sem a devida licença, conforme exigido pelo n.° 1 do artigo 3.° do Decreto-Lei n.° 79/85/M, de 21 de Agosto, pelo que a obra é considerada ilegal.
2. Nos termos do n.° 2 do artigo 52.° do Decreto-Lei acima mencionado, o agente de fiscalização ordenou a imediata suspensão da obra.
3. Nos termos dos n.°s 1 e 5 do artigo 52.° do mesmo Decreto-Lei e, por despacho do Director da DSSOPT de 02/04/2009, foi determinado o embargo da obra, emitindo o respectivo despacho de embargo. Os agentes de fiscalização, por não conseguir encontrar no local os notificandos acima indicados, afixaram em 03/04/2009 o despacho de embargo na obra, em locais bem visíveis.
4. De acordo com a informação cadastral anexada ao ofício 0644/CADIV/02.01.107/5897/2009 emitido em 17/04/2009 pela DSCC, o terreno onde se encontra a referida construção não autorizada considera-se do domínio do Estado, pelo que os notificandos não possuem legitimidade para requerer o licenciamento da obra, não se encontrando reunidos os pressupostos legais para a sua legalização.
5. Nestas circunstâncias, terá de ser determinada pela DSSOPT a demolição da obra em causa, pelo que nos termos dos artigos 93.° e 94.° do Código de Procedimento Administrativo (CPA), aprovado pelo Decreto-Lei n.° 57/99/M, de 11 de Outubro, ficam os interessados notificados para se pronunciar por escrito sobre as questões que constituem objecto do procedimento, bem como requerer diligências complementares ou consultar o respectivo processo na Divisão de Fiscalização do Departamento de Urbanização da DSSOPT, no prazo de 10 (dez) dias a contar da data de publicação do presente edital.
6. Todavia, podem os notificandos, por sua iniciativa, proceder à demolição da, obra ilegal acima mencionada, no prazo de 10 (dez) dias contado a partir da data de publicação do presente edital, apresentando para o efeito e com antecedência a declaração de responsabilidade do construtor responsável por essa demolição, bem como a apólice de seguro contra acidentes de trabalho e doenças profissionais.
7. Nos termos do artigo 149.° do CPA, os notificandos podem apresentar, no prazo de 15 (quinze) dias contado a partir da data de publicação do presente edital, reclamação da decisão de embargo, referida no ponto 3, para o autor do acto..
8. Nos termos do artigo 59.° do Decreto-Lei n.°79/85/M, de 21 de Agosto e das competências delegadas pelos artigos 1.° e 3.° da Ordem Executiva n.° 13/2007, publicada no Boletim Oficial da RAEM n.° 10 de 5 de Março de 2007, decisão de embargo cabe recurso hierárquico para o Secretário para os Transportes e Obras Públicas, a interpor no prazo de 15 (quinze) dias contados a partir da data de publicação do presente edital.
9. O recurso referido no ponto anterior não tem efeito suspensivo, devendo por isso a obra manter-se embargada.
10. A execução de obra sem a devida licença faz incorrer os infractores na aplicação das sanções previstas no Decreto-Lei n.° 79/85/M, de 21 de Agosto”; (cfr., fls. 271 a 272);
– em 25.05.2009, determinou o referido responsável da D.S.S.O.P.T. a demolição da obra referida no edital de 17.04.2008;
– e em 08.03.2010, publicou-se o edital com o seguinte teor:
“Processo n.°: 397/OI/2009/F
Considerando que não se revela possível notificar a interessada Sra. A, por qualquer das formas referidas no n.° 1 do artigo 72.° do Código do Procedimento Administrativo (CPA) , aprovado pelo Decreto-Lei n.° 57/99/M, de 11 de Outubro, nos termos do n.° 2 do mesmo artigo fica por este meio o sobredito interessado notificado do seguinte:
1. Por despacho do Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas, de 10 de Agosto de 2009, exarado sobre a informação n.° 4037/DURDEP/2009, de 7 de Julho de 2009, foi indeferido o recurso hierárquico, interposto por A, do acto do director da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (DSSOPT), de 25 de Maio de 2009, que ordenou, no seguimento do embargo a demolição da obra ilegal executada no terreno situado no caminho junto ao Tin Hau Miu, em Coloane, notificado através do edital publicado no jornal (Macao Daily News e Jornal Tribuna de Macau) em 26 de Maio de 2009, rectificado e republicado nos mesmos jornais em 27 de Maio de 2009, mantendo-se, por conseguinte, este acto que ordenou a demolição.
2. O indeferimento do recurso hierárquico tem como base os fundamentos seguintes:
1) A supracitada obra ilegal, não possui a necessária licença da DSSOPT, infringindo assim o disposto no n.° 1 do artigo 3.° do Decreto-Lei n.° 79/85/M, de 21 de Agosto, alterado pelo Lei n.° 6/99/M de 17 de Dezembro e pelo Regulamento Administrativo n.° 24/2009, pelo que, nos termos do n° 5 do artigo 52° do mesmo diploma legal, compete ao director da DSSOPT determinar o embargo da obra e a sua demolição caso assim seja considerado.
2) De acordo com a certidão da Conservatória do Registo Predial, de 7 de Maio de 2009, sobre o aludido terreno não se encontra registado a favor de particular, pessoa singular ou pessoa colectiva, direito de propriedade ou qualquer outro direito real, nomeadamente de concessão, por aforamento, ou por arrendamento, pelo que, nos termos do artigo 7.° da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) o terreno considera-se do domínio do Estado, e por conseguinte, A não possui legitimidade para requerer o licenciamento da obra, não se encontrando reunidos os pressupostos legais para a sua legalização.
3) O acto administrativo praticado pelo director da DSSOPT tem como suporte legal as normas de natureza administrativa estabelecidas pelo Decreto-Lei n.° 79/85/M, de 21 de Agosto, alterado pelo Lei n.° 6/99/M de 17 de Dezembro e pelo Regulamento Administrativo n.° 24/2009, que permitem à Administração promover, entre outras medidas, a demolição de obras executadas sem a licença que dela careçam, bem como aplicar as respectivas sanções (cfr. artigos 52.°, 55.°, 56.° e capítulo VII), a fim de repor a legalidade urbanística violada.
4) Como vem expressamente referido no preâmbulo do RGCU, a DSSOPT é a entidade a quem a lei conferiu competência própria para apreciação e aprovação de projectos, licenciamento e fiscalização de obras e para aplicação de sanções e em matéria que a estas se relacionam.
5) Revelando a conduta do recorrente (infractor) manifestamente violadora das supracitadas normas de natureza administrativa, tendo sido realizada a audiência escrita dos interessados prevista nos artigos 93.° e 94.° do CPA, não foram carreados para o procedimento elementos ou argumentos de facto e de direito que pudessem conduzir à alteração do sentido da decisão que visou repor a legalidade violada - demolição da obra ilegal executada.
3. Do despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, indicado em 1., cabe recurso contencioso a interpor no prazo de 30 dias, a contar da data de publicação do presente edital, para o Tribunal de Segunda Instância da RAEM nos termos da alínea a) do n.° 2 do artigo 25.° do Código de Processo Administrativo Contencioso, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 110/99/M, de 13 de Dezembro, e da subalínea (1) da alínea 8), do artigo 36.° da Lei n.° 9/1999, republicada no Boletim Oficial da RAEM, n.° 44, I Série, de 1 de Novembro de 2004.”
Do direito
3. Vem A recorrer do despacho proferido pelo EXM° SECRETÁRIO PARA OS TRANSPORTES E OBRAS PÚBLICAS de 10.08.2009, com o qual se indeferiu o recurso hierárquico que tinha interposto do acto administrativo praticado pelo Exm° Director da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes de 25.05.2009, que ordenou a demolição da obra executada no terreno situado no caminho junto ao “Tin Hau Miu”, em Coloane.
Cremos porém que nenhuma razão lhe assiste, afigurando-se-nos de se julgar improcedente o presente recurso, e sendo de notar também que para se chegar a tal conclusão, pouco há a acrescentar ao doutamente considerado pelo Exm° Magistrado do Ministério Público no seu Parecer que aqui se dá como reproduzido para todos os efeitos legais.
Seja como for, não se deixa de consignar o que segue:
Nos termos do art. 7° da Lei Básica da R.A.E.M.:
“Os solos e os recursos naturais na Região Administrativa Especial de Macau são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau (...).”
E, como já o entendeu o Vdo T.U.I.:
“Desta norma resulta que foi estabelecido pela Lei Básica o princípio de que a propriedade e a gestão dos solos e recursos naturais no âmbito da Região cabem respectivamente ao Estado e ao Governo da Região. No entanto, a fim de respeitar e proteger os poucos terrenos da propriedade privada já existentes em Macau, é admitida excepção a este princípio, isto é, continuar a reconhecer os direitos de propriedade privada de terrenos anteriormente existentes.
Há um requisito para a excepção, que consiste em que os terrenos de propriedade privada devem ser “reconhecidos, de acordo com a lei, antes do estabelecimento da RAEM.”
Uma vez que após o estabelecimento da Região, todos os terrenos situados no âmbito territorial da Região são de propriedade do Estado, excepto os que foram reconhecidos como propriedade privada nos termos da lei antes do estabelecimento da Região. Em consequência, não é possível constituir nova propriedade privada de terrenos depois da criação da Região, sob pena de violar a disposição do art.º 7.º da Lei Básica.
(...)
Na mesma linha de consideração acima exposta sobre a aquisição da propriedade de terrenos na Região, o domínio útil só constitui a excepção prevista no art.º 7.º da Lei Básica quando for reconhecido legalmente antes do estabelecimento da Região, e assim continua a integrar na esfera de particulares após a sua criação. Se antes desta não conseguisse o reconhecimento legal do domínio útil de terreno, mesmo que a acção destinada a confirmar a titularidade do mesmo domínio por parte de particulares fosse proposta antes do estabelecimento da Região, depois deste nunca pode ser reconhecido por decisão judicial o domínio útil de terrenos na Região a favor de particulares.”; (cfr., v.g., o Ac. de 05.07.2006, Proc. nº 32/2005).
Perante isto, e certo sendo que de acordo com a certidão da Conservatória do Registo Predial de 7 de Maio de 2009, sobre o terreno onde está localizada a “obra” em questão não se encontra registado a favor de particular, pessoa singular ou pessoa colectiva, direito de propriedade ou qualquer outro direito real, nomeadamente de concessão, por aforamento, ou por arrendamento, evidente é que não pode a mesma recorrente reclamar (como legítimo) qualquer “direito de uso”, “posse” ou “domínio útil” sobre o mesmo terreno, pois que, como bem se vê, não é a situação da recorrente enquadrável na “excepção” prevista no transcrito art. 7° da L.B.R.A.E.M..
Alega porém a recorrente que desde a década de 60 que ao seu pai foi concedida uma “licença de ocupação do terreno” onde está implantada a obra em causa e que sempre viveu numa casa de madeira existente no local.
Ora, como acertadamente salienta o Exm° Representante do Ministério Público, a dita licença, há muito que se mostra caducada, (cfr., art. 71°, n° 1 da Lei de Terras, onde se prescreve que “A licença de ocupação é outorgada pelo período de um ano e considera-se caducada, se a sua renovação não for requerida dentro do prazo de sessenta dias, antes do seu termo”), sendo também de notar que, de acordo com o n° 2 do art. 144° desta mesma Lei, (onde se preceitua que “as situações resultantes da licença de ocupação são intransmissíveis”), é tal licença “intransmissível”, não nos parecendo assim que possa a recorrente invocar tal licença concedida ao seu pai para obter a pretensão que deduz.
Por fim, e quanto à alegada “contradição” pelo facto de ser a mesma recorrente considerada “interessada” (no procedimento), e, não obstante tal, ter lhe sido negado qualquer direito, cremos que se incorre em equívoco.
De facto, “interessado” é, ou melhor, pode ser, (todo) “aquele que, no âmbito de um processo a correr termos, (como foi o Proc. n° 397/OI/2009/F que correu termos na D.S.S.O.P.T.), alega um direito” (perante a Administração). Todavia, tal qualidade não o transforma automaticamente em “titular” do direito que reivindica.
Uma coisa é reclamar-se um direito, com ou sem pedido do seu reconhecimento, e outra, é ser o mesmo efectivamente reconhecido, nos termos legais, e por entidade competente.
No caso, (e correctamente), foi a recorrente considerada “interessada” no âmbito do referido processo, porém, e como se viu, inexiste qualquer “contradição” pelo facto de, observada a tramitação processualmente adequada, se ter decidido da forma que se decidiu.
Assim, não nos parecendo estar o acto recorrido inquinado com qualquer dos “vícios” pela recorrente considerados, impõe-se, sem necessidade de mais alongadas considerações, a improcedência do presente recurso.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela recorrente com taxa de justiça que se fixa em 6 UCs.
Macau, aos 28 de Outubro de 2010
Jose Maria Dias Azedo (Relator) Presente
Chan Kuong Seng Victor Coelho
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
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