Processo nº 335/2010
(Autos de recurso jurisdicional em matéria administrativa, fiscal e aduaneira)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A, com os demais sinais dos autos, propôs, no Tribunal Administrativo, acção declarativa contra a Direcção dos Serviços de Saúde da R.A.E.M., pedindo a condenação da requerida no pagamento a seu favor de MOP$2.592.466,70, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais alegadamente sofridos; (cfr., fls. 11 a 23).
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Oportunamente, por sentença, foi a acção julgada improcedente; (cfr., fls. 338 a 341).
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Do assim decidido, recorreu o A. para este T.S.I. alegando para concluir nos termos seguintes:
“1. Após um acidente de viação, o médico de Urgência do Centro Hospitalar Conde S. Januário, Dr. B confirmou que o autor sofreu fractura do húmero esquerdo e fractura da parte superior do osso público esquerdo. Dado que o recorrente tinha medo de que a intervenção cirúrgica lhe causaria consequências imprevisíveis, ele recusou ser submetido a intervenção cirúrgica.
2. Depois de o recorrente recusar ser submetido a intervenção cirúrgica, o Dr. B só usou uma tipóia para fixar o braço do recorrente, marcou para ele uma consulta externa de ortopedia para o dia 5 de Março de 2001, e depois, deixou-o sair do hospital sem lhe efectuar outro tratamento mais positivo e eficaz.
3. Mesmo um homem médio pode saber que é impossível ter apenas supracitados dois métodos de tratamento bem diferentes e simples para curar o doente que sofre fractura.
4. O recorrido é uma pessoa colectiva da RAEM que têm por missão executar as acções necessárias à prevenção da doença e à promoção da saúde, através da coordenação das actividades dos agentes públicos e privados do sector e da prestação de cuidados de saúde primários e diferenciados necessários ao bem-estar da população de Macau (artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 81/99/M, de 15 de Novembro), o seu pessoal médico e de enfermagem deve procurar, com atitude positiva, mais métodos de tratamento favoráveis aos interesses do doente, de forma a “promover, a reabilitação e a reinserção social do doente” (artigo 3.º do mesmo Decreto-Lei).
5. O recorrente pediu o internamento no hospital para receber tratamento médico e esperar a sua recuperação, mas, o seu pedido foi recusado. Dado que o recorrente se recusou a sair, o hospital chamou os guardas policias que estavam de serviço no referido hospital, e em seguida, os referidos guardas policiais levaram o autor para o Departamento de Trânsito.
6. Posteriormente, o recorrente voltou ao hospital, pedindo outra vez o internamento no hospital para receber tratamento, porém, o seu pedido ainda foi recusado pelo hospital, uma vez que após uma avaliação, dois ortopedistas entenderam que o autor não precisou ser internado no hospital para receber tratamento médico, contudo, tudo isso aconteceu apenas sete horas depois de o Dr. B confirmar que o recorrente precisou ser submetido a intervenção cirúrgica devido às fracturas do húmero esquerdo e da parte superior do osso público esquerdo.
7. Dado que o recorrente não conseguiu tolerar as dores devido às fracturas, ele foi várias vezes à Urgência para pedir consultas (entre 23 de Fevereiro de 2010 e 26 de Março de 2010), porém, durante este período de um mês, o recorrente foi submetido a 4 exames de raios X.
8. Com excepção de fazer exames de raios X, o Centro Hospitalar Conde S. Januário não efectuou outro tratamento ou cuidados de saúde mais eficaz ao recorrente.
9. O recorrente é titular do cartão de utente, com o n.º 00172109.7, emitido pelo recorrido. Nos termos do Decreto-Lei n.º 24/86/M, o recorrente tem direito de pedir aos serviços e estabelecimentos dependentes da DSS, ou indirectamente por outras entidades SSM a prestação de cuidados de saúde mediante inscrição e pagamento da importância correspondente aos encargos.
10. Porém, o médico do Centro Hospitalar Conde S. Januário, Dr. B, só usou uma tipóia para fixar o braço do recorrente sem lhe efectuar outro tratamento médico, tal tratamento nunca se pode considerar que o mesmo prestou ao recorrente cuidados de saúde ao recorrente, e quando o recorrente foi à Urgência para pedir consultas por não conseguir tolerar as dores devido às fracturas, o recorrente só foi submetido a 4 exames de raios X.
11. No seu acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 23/2005, o Tribunal de Última Instância tem o douto entendimento sobre a culpa do agente administrativo e culpa funcional ou do serviço do hospital: “A culpa dos titulares do órgão ou dos agentes é apreciada nos termos do artigo 480.º do Código Civil”, “a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”.
12. No referido Acórdão, o Tribunal de Última Instância também concorda com a “teoria da culpa funcional ou culpa do serviço”, com origem em França e acolhida pela jurisprudência.
13. Assim, quer o pessoal médico em causa quer o funcionamento do hospital tem culpa notória, em vez do referido na sentença recorrida: “quanto à culpa, nos termos do artigo 480.º do Código Civil ex vi do artigo 4.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 28/91/M, é ao autor incumbe provar a culpa do réu, porém, nos presentes autos, não há nenhuma prova que comprove que o réu ou o seu pessoal médico tem dolo ou culpa (incluindo culpa funcional ou culpa pessoal) nas actividades de tratamento médico realizadas pelo pessoal médico do réu ao autor”.
14. Dado que o recorrente não conseguiu tolerar as dores devido às fracturas, ele foi à Urgência para pedir consultas (entre 23 de Fevereiro de 2010 e 26 de Março de 2010), porém, durante este período de um mês, o recorrente foi submetido a 4 exames de raios X, e em 11 de Maio de 2001, quando o recorrente foi outra vez à Urgência do Centro Hospitalar Conde S. Januário para pedir consulta, o recorrente foi submetido mais uma vez a exame de raios X.
15. Depois de o recorrente ser submetido aos referidos exames de raios X, o Centro Hospitalar Conde S. Januário não lhe prestou outro tratamento mais eficaz nem cuidados de saúde de reabilitação.
16. Qualquer cidadão comum pode facilmente obter os conhecimentos sobre os prejuízos causados à saúde humana pelos raios X através da internet, contudo, os Serviços de Saúde de Macau são um órgão que presta cuidados de saúde especiais, é impossível que o seu órgão subordinado, Centro Hospitalar Conde S. Januário, não sabe os prejuízos causados pelos raios X.
17. Isto viola manifestamente o disposto no artigo 7.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 28/91/M, em vez do referido na sentença recorrida: “este Tribunal entende que durante as actividades de tratamento médico realizadas ao autor, o pessoal médico do réu não violam as normas legais ou princípios da ordem jurídica ou as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração, pelo que, tais actividades não são ilícitas”.
18. No presente processo de erro culposo de tratamento, o Centro Hospitalar Conde S. Januário causou danos irreparáveis para o recorrente pela culpa do médico assistente e culpa funcional ou culpa do serviço do hospital, existindo nexo de causalidade entre tais culpas e os danos causados ao recorrente.
19. No presente processo, dado que estão reunidos todos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual da Serviços de Saúde, deve o tribunal revogar a sentença recorrida pela violação do artigo 4.º n.º 7 do Decreto-Lei n.º 28/91/M, substituindo a mesma por outra decisão justa que condene os Serviços de Saúde da RAEM a pagar ao recorrente uma indemnização.”;(cfr., fls. 346 a 359 e 388 a 412).
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Respondendo, afirma a entidade recorrida que:
“1. Não se verificam os pressupostos de que depende a responsabilidade civil extracontratual da Administração, pelo que, salvo melhor entendimento, deve o presente recurso improceder em conformidade.
2. O Recorrente só pode queixar-se de si próprio, pois foi por decisão própria, livre e esclarecida, que não foi submetido a uma intervenção cirúrgica no dia 23 de Fevereiro de 2001.
3. Em face de tal recusa, a fixação do braço com recurso a uma ligadura (ou "slings"), seguida dos demais actos médicos realizados, afigurou-se como a opção mais adequada, atendendo ao estado clínico do Recorrente.
4. Aliás, apesar de insinuar que tal foi insuficiente face às lesões que apresentava, o Recorrente não alega (tampouco prova) que outros actos médicos mais adequados poderiam ter sido praticados naquele dia e não foram.
5. A realização da inicialmente recusada intervenção cirúrgica, duas semanas após a ocorrência do acidente, conforme pretendia o Recorrente, foi rejeitada pelo médico do serviço de urgência do CHCSJ porquanto, face ao tempo decorrido, os benefícios dessa intervenção seriam muito inferiores àqueles que poderiam advir das sessões de fisioterapia que lhe foram marcadas e a que o A., ora Recorrente, faltou.
6. Na verdade, conforme ficou provado nos autos, o A., ora Recorrente, faltou às consultas de fisioterapia de 17 de Abril de 2002, 5 de Junho de 2002 e 26 de Julho de 2002, o que em nada contribuiu para a sua recuperação e mais justifica que se questione a justiça e razoabilidade da pretensão do impetrante veiculada na presente acção judicial.
7. E ao Recorrente também é de apontar o facto de ter rejeitado a realização de um exame de raio-x em 25 de Fevereiro de 2001, apesar de haver indicação médica para o efeito.
8. Aliás, diga-se que todos os exames de raio-x realizados foram adequados e necessários ao diagnóstico do estado clínico do Recorrente, pelo que é absolutamente desprovida de sentido a afirmação de que consubstanciam uma violação do número 2 do artigo 7° do Decreto-Lei n.° 28/91/M, como pretende o Recorrente.
9. A culpa "exprime o juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente: o lesante, em face das circunstâncias especificas do caso, devia e podia ter agido de outro modo (...). Pode revestir duas formas distintas: o dolo e a negligência ou mera culpa (...)" (João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I Tomo, pg. 587, Almedina Coimbra).
10. O dolo e a negligência deverão ser aferidas em função da diligência de um bonus pater familias (cfr. art. 480° do CC ex vi art. 4° DL supra referido).
11. É falso que por parte dos médicos intervenientes tenha existido qualquer comportamento que se subtraia à diligência que teria, em face de tal situação, um bom pai de família.
12. Donde, será forçoso concluir que tal actuação não poderá consubstanciar uma das situações que impõe à Administração, neste caso aos Serviços de Saúde de Macau, responsabilidade extracontratual, nos termos da interpretação conjugada do disposto nos arts. 2° e 4° do Decreto-Lei n° 28/91/M e do art. 480° do Código Civil. .
13. O nexo de causalidade necessário é também ele inexistente, dado que os danos sofridos pelo Recorrente ficaram a dever-se exclusivamente ao acidente de viação que o levou a dar entrada no CHCSJ, a que o comportamento da ora Recorrida e dos seus agentes é absolutamente alheio.”
Pugna assim pela confirmação da decisão recorrida; (cfr., fls. 362 a 367).
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Nestes T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exm° Magistrado do Ministério Público o seguinte Parecer:
“Não se nos afigura que a douta sentença sob escrutínio se encontre eivada de qualquer vício, designadamente de violação dos art°s 4°, n° 7 e 7°, n° 2, ambos do Dec Lei 28/91/M, conforme assacado pelo recorrente.
De resto, atentando na argumentação respectiva, constatar-se-à assentar aquele o seu inconformismo em 2 pontos essenciais: o facto de o médico do Centro Hospitalar Conde S. Januário, Dr B só ter usado uma tipóia para fixar o seu braço aquando da primeira intervenção médica e a repetição, posterior, de vários exames através de "raios x", com os nefastos efeitos daí advenientes.
Não gostaríamos de menorizar a argumentação, mas, de facto, a mesma apresenta-se como absolutamente inconsistente.
É que, por uma banda, nada do dado como comprovado através da prova produzida permite alcançar, com um mínimo de rigor e segurança, que, após o recorrente ter recusado ser submetido a intervenção cirúrgica, assinando a respectiva "declaração de responsabilidade", logo aquando da 1ª intervenção hospitalar, no próprio dia do acidente, o tratamento aplicado pelo referido médico com a fixação de uma tipóia para fixar o seu braço esquerdo, não tenha sido o mais adequado e recomendado, que se impusesse qualquer outro tipo de tratamento, ou que de tal intervenção tenha decorrido qualquer consequência nefasta para a sua saúde.
Por outra banda, embora não se ignorando eventuais consequências perniciosas da exposição do corpo humano aos "raios x", revela-se algo ridículo esgrimir com tal matéria relativamente a vários exames desse tipo efectuados ao recorrente: para além de se não conhecer meio de diagnóstico mais adequado e acessível em tais tipos de casos, mais uma vez absolutamente nada ficou comprovado que esses exames não fossem, no caso, adequados ou recomendados ou que, efectivamente, dos mesmos tenha, adequadamente, resultado qualquer das "maleitas" de que o recorrente se queixa.
Nestes termos, sem necessidade de maiores considerações ou alongamentos, somos a concordar, na íntegra com o concluído na douta sentença em crise, no sentido da não verificação de ilicitude ou culpa na actividade do tratamento médico prestado ao recorrente, inexistindo qualquer nexo de causalidade entre esse tratamento e as queixas por aquele apresentadas, não se encontrando, assim, reunidos os essenciais requisitos da responsabilidade civil extracontratual por actos de gestão pública, razão por que não merece provimento o presente recurso, havendo que manter o decidido.
Este, o nosso entendimento.”; (cfr., fls. 414 a 415).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados os factos seguintes:
“O autor é titular do cartão de utente, com o n.º 00172109.7, emitido pelo réu.
Em 23 de Fevereiro de 2001 (sexta-feira), pelas 20H00, o autor, conduzindo um motociclo, embateu num automóvel privado, e depois, foi transportado para o Centro Hospitalar Conde S. Januário para receber tratamento médico.
Conforme as fotos de raios X, o médico de Urgência, Dr. B, confirmou que o autor sofreu fractura do húmero esquerdo e fractura da parte superior do osso público esquerdo.
O autor recusou ser submetido a intervenção cirúrgica e assinou a “declaração de responsabilidade”.
Depois de o autor recusar ser submetido a intervenção cirúrgica, o médico Dr. B usou uma tipóia para fixar o braço do autor, marcou para ele uma consulta seguinte de ortopedia para o dia 5 de Março de 2001, e depois, deixou-o sair do hospital.
Porém, o autor pediu internamento no hospital para receber tratamento e esperar a sua recuperação por motivos de ter dores, viver sozinho, ter dificuldade em movimento e estar frio o tempo, contudo, o referido pedido foi recusado pelo referido médico Dr. B.
Dado que o autor se recusou a sair do hospital, o Centro Hospitalar Conde S. Januário chamou os guardas policias que estavam de serviço no referido hospital, e em seguida, os referidos guardas policiais levaram o autor para o Departamento de Trânsito.
Em 24 de Fevereiro de 2001, pelas 03h00, o autor apanhou um taxi para voltar ao Centro Hospitalar Conde S. Januário, pedindo outra vez o internamento no hospital para receber tratamento médico, porém, o seu pedido ainda foi recusado pelo hospital, uma vez que após uma avaliação, dois ortopedistas (Dr. C e Dr. D) entenderam que o autor não precisou ser internado no hospital para receber tratamento médico.
Dado que o autor se recusou a sair, o hospital chegou a autorizar o internamento do autor até 26 de Fevereiro de 2001 (segunda-feira).
Em 25 de Fevereiro de 2001 (domingo), pelas 11h00 de manhã, após o diagnóstico, o Chefe do Departamento de Ortopedia, Dr. C confirmou que o autor não precisou ser internado no hospital para receber tratamento médico, por isso, solicitou-lhe ter alta.
Pelas 14h56 do mesmo dia, o autor dirigiu-se à Urgência do Centro Hospitalar Conde S. Januário para pedir consulta, queixando-se de sofrer uma queda e ter dores no fémur. Na altura, o médico de Urgência, Dr. E, examinou a perna esquerda do autor e recomendou-lhe fazer um exame de raios X no fémur, porém, o autor recusou tal exame e assinou a declaração de responsabilidade.
Em 6 de Março de 2001, o autor dirigiu-se outra vez à Urgência do Centro Hospitalar Conde S. Januário, pedindo que o médico de Urgência marcasse para ele uma intervenção cirúrgica.
O autor foi submetido a um exame de raios X.
O médico de Urgência do Centro Hospitalar Conde S. Januário entendeu que o autor não necessitou de intervenção cirúrgica uma vez que o autor já ficava ferido há mais de duas semanas, por isso, recomendou-lhe que continuasse a fazer consultas seguintes na ortopedia e receber tratamentos de medicina física.
Em 26 de Março de 2001, o autor dirigiu-se mais uma vez à Urgência do Centro Hospitalar Conde S. Januário onde foi submetido a um exame de raios X.
Em 11 de Maio de 2001, o autor dirigiu-se outra vez à Urgência do Centro Hospitalar Conde S. Januário onde foi submetido a um exame de raios X.
Destas vezes, os médicos de Urgência do Centro Hospitalar Conde S. Januário ainda só lhe recomendaram que continuasse a fazer consulta seguinte na ortopedia marcada para de 2001 e receber tratamentos de medicina física.
O Centro Hospitalar Conde S. Januário marcou para o autor as seguintes consultas externas na ortopedia:
- 12/03/2001, 06/04/2001, 18/04/2001, 20/04/2001, 01/06/2001, 23/07/2003 e 12/04/2004.
O Centro Hospitalar Conde S. Januário marcou para o autor os seguintes tratamentos de medicina física:
- 11/05/2001, 08/06/2001, 17/07/2001, 03/08/2001, 31/08/2001, 28/09/2001, 19/10/2001, 07/12/2001, 28/12/2001, 17/04/2002, 05/06/2002, 19/06/2002, 26/07/2002, 13/09/2002, 24/01/2003 e 14/07/2006.
O autor faltou aos tratamentos de medicina física nos dias 17/04/2002, 05/06/2002 e 26/07/2002.
Em 30 de Maio de 2006, o autor foi ao Hospital Kiang Wu para pedir consulta médica, onde lhe foi diagnosticada periartrite do ombro esquerdo.
Em 28 de Julho de 2006, foi-lhe diagnosticada pelo médico da Medicina Física e Reabilitação do Centro Hospitalar Conde S. Januário, Dr. F, osteoartrite traumática por fracturas, sendo o grau de incapacidade de 15 %.
O autor possui licenças de condução de táxis e de automóveis pesados de passageiros, tendo trabalhado na Companhia de XXXX Hong Kong e Macau, Lda..
Na ocorrência do acidente de viação, o autor tinha 53 anos de idade, trabalhando como assalariado na Oficina de Máquinas Veng Va sita na Avenida de Demétrio Cinatti n.º 17, H2, Macau, com o salário diário de MOP$300,00.
O autor pagou as despesas médica-medicamentosa, no montante total de MOP$466,70.
Em 25 de Maio de 2007, o autor pediu apoio judiciário junto a este Tribunal.
Em 12 de Novembro de 2007, o mandatário judicial nomeado do autor intentou a este Tribunal a presente acção”; (cfr., fls. 338 a 341 e 376 a 387).
Do direito
3. O “regime da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas, dos seus titulares e agentes por actos de gestão pública” é regulado pelo D.L n° 28/91/M de 22.04.
Como no preâmbulo do referido D.L. n° 28/91/M consta, “O objectivo do presente diploma é o de definir o tipo de responsabilidade por actos ilícitos no domínio da gestão pública, de molde a proteger os legítimos interesses e direitos dos particulares e clarificar o âmbito do dever de indemnizar por parte dos sujeitos lesantes”, prescrevendo-se, depois, no seu art. 1°, sob a epígrafe “âmbito de aplicação”, que:
“A responsabilidade civil extracontratual da Administração do Território e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de gestão pública rege-se pelo disposto no diploma, em tudo que não esteja previsto em leis especiais.”
Seguidamente, no art. 2° preceitua-se que:
“A Administração do Território e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante os lesados, pelos actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício.”
E, no art. 3° que:
“Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, os titulares dos órgãos e agentes administrativos da Administração do Território e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente pela prática de actos ilícitos, se tiverem excedido os limites das suas funções ou se, no desempenho destas e por sua causa, tiverem procedido dolosamente.”
Quanto à “apreciação da culpa”, estatui o art. 4° que:
“1. A culpa dos titulares dos órgãos ou dos agentes é apreciada nos termos do artigo 480.º do Código Civil.
2. Se houver pluralidade de responsáveis, é aplicável o disposto no artigo 490.º do Código Civil.”
E, sob a epígrafe “ilicitude”, prescreve o art. 7° que:
“1. Para os efeitos deste diploma, a ilicitude consiste na violação do direito de outrem ou de uma disposição legal destinada a proteger os seus interesses.
2. Serão também considerados ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração.”
Afigurando-se-nos serem estes os preceitos do mencionado diploma legal que se mostram relevantes à resolução do presente litígio, vejamos.
Pois bem, ponderando-se no regulamentado nos transcritos preceitos, (em especial, no seu art. 1°), mostra-se de considerar que os requisitos da responsabilidade civil extracontratual da Administração pela prática de acto ilícito são idênticos aos do regime da responsabilidade civil extracontratual prevista na lei civil: a saber, o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o prejuízo ou dano, e o nexo de causalidade entre este e o facto.
Nesta conformidade, impõe-se aqui ter em conta que a procedência do pedido deduzido pelo ora recorrente apresentado no Tribunal Administrativo dependia da verificação (cumulativa) dos seguintes pressupostos:
– “facto”, que se traduz num acto de conteúdo positivo ou negativo traduzido numa conduta voluntária de um órgão ou agente, no exercício das suas funções e por causa delas.
– “ilicitude”, que advém da violação por esse facto, de direitos de terceiros ou de disposições legais que se destinam a proteger interesses alheios.
– “culpa”, como nexo de imputação ético-jurídica que liga o facto à vontade do agente, a título de dolo ou negligência.
– “dano”, lesão ou prejuízo, de valor patrimonial ou não patrimonial, produzido na esfera jurídica de terceiros, e,
– “nexo de causalidade” entre o facto e o dano a apurar segundo a teoria da causalidade adequada.
Com efeito, o “facto (ilícito)”, pode consistir tanto num acto jurídico, como, num acto material, podendo, também, consistir numa omissão, só que, neste caso, apenas quando existia obrigação de praticar o acto omitido.
Por sua vez, para que se verifique o elemento “ilicitude” é necessário que o interessado demonstre que o acto ilegal o atingiu num direito ou posição juridicamente tutelada de natureza substantiva.
Na verdade, a verificação do pressuposto “ilicitude” não se basta com a existência de ilegalidade, sendo necessário que esta se traduza na violação de normas que incluem, entre os fins que visam tutelar, a protecção – não meramente reflexa ou ocasional, mas directa e intencional – do interesse particular.
Quanto à “culpa”, como é sabido, e como ensina A. Varela. significa actuar em termos de a conduta do lesante ser reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo”; (cfr., “Das Obrigações em Geral”, 6.ª ed., pág. 531).
Quanto ao “dano” há que ter em conta que dano, enquanto pressuposto da responsabilidade civil, é toda a perda ou prejuízo patrimonial ou não patrimonial produzido na esfera jurídica do lesado, podendo traduzir-se num prejuízo sofrido in natura, como seja a perda ou destruição de um objecto (dano real), ou num valor pecuniário indicativo de uma diminuição abstracta do património (dano de cálculo).
E, no que toca ao “nexo de causalidade”, consiste na interacção causa/efeito, de ligação positiva entre a lesão e o dano, através da previsibilidade deste em face daquele, a ponto de poder afirmar-se que o lesado não teria sofrido tal dano se não fosse a lesão. Existirá o nexo de causalidade quando a acção ou a omissão em causa seja susceptível de se mostrar, à face da experiência comum, como adequada à produção do dano, havendo fortes probabilidades de o originar; (sobre a matéria e a adopção da “teoria da causalidade adequada”, cfr., v.g., Vaz Serra in B.M.J. n° 84°-284 e n° 100-127; I. Galvão Teles in “Direito das Obrigações”, 3.ª ed., pág. 369; R. Alarcão in “Direito das Obrigações”, 1983, pág. 281 e J. R. Faria in “Direito das Obrigações”, Vol. I, pág. 505).
Nesta formulação, a condição deixará de ser causa do dano, sempre que “segundo a sua natureza geral, era de todo indiferente para a produção do dano e só se tornou condição dele, em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, sendo portanto inadequada para este dano”; (cfr., A. Varela in ob. cit, pág. 861).
Dito isto, cremos que motivos não existem para se revogar a sentença recorrida, sendo pois de se subscrever o entendimento assumido pelo Exm° Magistrado do Ministério Público no Parecer transcrito no presente veredicto.
Com efeito, e independentemente do demais, não se pode olvidar que foi o próprio recorrente que, em 23.02.2001, recusou ser submetido a uma intervenção cirúrgica, e que só após tal recusa é que lhe foi fixado o braço com uma tipóia, sendo ainda de considerar que provado não está que as maleitas que apresenta – “periartrite do ombro esquerdo” – sejam consequência dos cuidados de saúde que lhe foram prestados, nomeadamente, da alegada falta de internamento
Aliás, mostra-se também de ter em conta que provado não está nenhum “erro ou lapso médico”, sendo também de referir que o acidente de viação que o recorrente sofreu em 23.02.2001 causou-lhe “fractura do húmero esquerdo e fractura da parte superior do osso púbico esquerdo”, não nos parecendo que daí, dada até a localização desses osssos, possa advir a referida “periartrite do ombro esquerdo”.
Por sua vez, o mesmo sucede quanto à queda que posteriormente sofreu e que causou dores no “fémur”.
Com efeito, também esta “lesão” ocorreu nos seus “membros inferiores”, (fémur), não se vendo assim como possa ser causa de “periartrite do ombro esquerdo”.
Evidente é assim a falta do referido “acto ilícito” e “nexo de causalidade”, impondo-se desta forma a improcedência do presente recurso.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos que se deixaram expostos, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente com taxa de justiça que se fixa em 6 UCs.
Honorários ao Ilustre Patrono no montante de MOP$1,000.00.
Macau, aos 20 de Setembro de 2010
Jose Maria Dias Azedo (Relator)
João A. G. Gil de Oliveira
Chan Kuong Seng (subscrevo a decisão, porque não se provando o erro na decisão médica de não admissão de internamento hospitalar, a acção do ora Recorrente fica votada ao insucesso).
Presente
Victor Coelho
Proc. 335/2010 Pág. 26
Proc. 335/2010 Pág. 1