ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
1. Relatório
Por Acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base em 30 de Novembro de 2011, A, arguido nos presentes autos, foi condenado, pela prática de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes p.p. pelo artº 8º nº 1 da Lei nº 17/2009, na pena de sete anos de prisão.
Inconformando com a decisão, recorreu o arguido para o Tribunal de Segunda Instância, recurso este que foi julgado improcedente.
Vem agora o arguido recorrer para o Tribunal de Última Instância, formulando na sua motivação do recurso as seguintes conclusões:
1. A convicção do Juiz é formada com base no Direito, sendo meio para a descoberta da verdade e fundamento directo do acórdão, no entanto, o fundamento final para a formação do acórdão é precisamente os factos objectivos.
2. In casu, o recorrente considerou que o acórdão recorrido era formado fundamentalmente com base nos dois factos objectivos: A) Depois do arguido ser interceptado e averiguado pelos agentes alfandegários, encontrou-se nas calças do mesmo a “Ketamina”, com o peso de 11,834 gramas, calculado pela análise de métodos quantitativos; B) O registo de migração do arguido demonstrou-se que o mesmo passava frequentemente pelas fronteiras.
3. O facto objectivo A), sendo prova directa da presente causa, apurou única e directamente que o recorrente tinha comprado e adquirido 11,834 gramas de estupefacientes – “Ketamina”.
4. Todavia, o facto objectivo B) apurou que o recorrente tinha deslocado frequentemente a dois territórios, mas não conseguiu demonstrar única e directamente que o recorrente tivesse a finalidade de fornecer os estupefacientes a outrem, com a prática da compra e da aquisição dos referidos estupefacientes em peso de 11,834 gramas, ou negar expressamente que os estupefacientes fossem destinados ao consumo pessoal pelo recorrente.
5. O facto objectivo B) era simplesmente prova indirecta, por qual só se conseguisse provar que o recorrente tivesse a finalidade de fornecer os estupefacientes a outrem, quando este seria conjugado com os demais factos objectivos ou seria aplicado o raciocínio lógico.
6. O recorrente não se conformou com a decisão do Tribunal recorrido, no sentido de o condenar pela prática do crime de tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, apenas com base nos dois factos acima mencionados.
7. O recorrente considerou que, em relação às provas directas, o Tribunal devia ter mais prudência no uso das provas indirectas, presumiu-se que os factos provenientes das provas indirectas fossem precisos e indubitáveis, sendo impossível haver qualquer outra hipótese.
8. O raciocínio de provas indirectas é também feito em função das regras da experiência. As referidas regras são formadas pela conclusão dos testes, são conhecimentos comuns e quotidianos das pessoas, e são verificadas repetitivamente na vida das pessoas.
9. De facto, o Tribunal a quo não tinha conhecimento sobre a razão que levou o recorrente a passar pelas fronteiras, a par disso, não sabia se o mesmo tinha trazido ou não os estupefacientes nem sabia sobre a quantidade de estupefacientes que eventualmente estivessem em posse do mesmo.
10. Há várias hipóteses para justificar por que razão o recorrente tinha passado frequentemente pelas fronteiras.
11. Era possível que o recorrente só trouxesse, em cada vez, estupefacientes de quantidade diminuta, por isso, precisava de se deslocar frequentemente nos dois territórios para comprar estupefacientes de quantidade suficiente para aliviá-lo do vício em consumo de droga; mais, era possível que o recorrente não comprasse nem detivesse nenhum estupefaciente ao regressar a Macau, mas sim, transportava mercadorias, tais como cigarros, vinhos, medicamentos e leite em pó, no posto fronteiriço de Gongbei, entre Macau e Zhuhai, para ganhar o dinheiro resultante da diferença do preço das ditas mercadorias, ou, por motivo pessoal, o recorrente passava frequentemente pelas fronteiras.
12. Assim, à luz do raciocínio lógico daquela prova indirecta, não nos levou a chegar a seguinte conclusão precisa e única: o recorrente comprou e adquiriu 11,834 gramas de “Ketamina”, com a finalidade de fornecer os referidos estupefacientes a outrem.
13. Além disso, segundo as regras de experiência comum ou os conhecimentos adquiridos na vida, na maior parte das situações ou em regra geral, o acto de passar frequentemente pelas fronteiras nem sempre significa que o fornecimento de estupefacientes a outrem é a intenção da passagem das fronteiras, portanto, o facto subjectivo – o recorrente pretendia fornecer a outrem a “Ketamina” em peso de 11,834 gramas – não é provado pela referida prova indirecta.
14. O Tribunal a quo fez uma dedução excessivamente hiperbolizada perante os factos, sendo expressamente ilícito o resultado da apreciação.
15. Mais apontou o recorrente que não havia nos autos a prova que mostrasse que tivesse encontrado em posse do recorrente ou no domicílio do mesmo o dinheiro adquirido no tráfico de drogas, bem como os instrumentos destinados ao tráfico de drogas, tais como os da embalagem e os da medição do peso dos estupefacientes, nem havia registo de chamada telefónica irregular, a par disso, para uma pessoa que tem o hábito de consumo de droga há 2 anos, os estupefacientes em quantidade de 11,834 gramas podem ser totalmente consumidos em alguns dias.
16. Quando a livre convicção não dê resultado positivo e não sejam ainda descortinados os principais factos criminosos, a livre convicção deve ser suplementada pelo princípio de in dubio pro reo, seleccionando uma interpretação que depuser a favor do arguido, perante os factos que têm dúvida razoável.
17. Pelo exposto, não se provou que o recorrente tivesse fornecido a outrem 11,834 gramas de “Ketamina”.
18. Com a insuficiência e a falta de prova bastante, assim como, com o desrespeito à lógica e às regras da experiência, o acórdão recorrido violou o disposto na al. c) do nº 2 do artº 400º do Código de Processo Penal.
19. Se os Venerandos Juízes não se conformarem com a interpretação supramencionada, o recorrente ainda pretende apontar que, na determinação da pena, o Tribunal a quo aplicou-lhe uma pena demasiada pesada.
20. Consultados os acórdãos dos processos nºs 30/2010, 338/2010, 343/2010 e 941/2010 do T.S.I., o recorrente considerou que, in casu, a pena de 7 anos de prisão efectiva que lhe foi aplicada, pelo fornecimento de 11,834 gramas de “Ketamina” a outrem, excedeu as exigências de prevenção geral e especial do crime.
21. Assim, o acórdão recorrido violou o critério de determinação da pena previsto no artº 65º do Código Penal.
22. Solicita-se a esse Tribunal que proceda à nova determinação da pena e aplique ao recorrente uma pena mais ligeira; mais, o recorrente considerou que a pena de prisão efectiva de 4 anos a 4 anos e 6 meses era mais adequada.
Respondeu o Ministério público, terminou a sua resposta com as seguintes conclusões:
1. Como é sabido, o erro notório na apreciação da prova consiste na incompatibilidade entre os factos dados como provados, isto é, o facto que se dá como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro consiste também na violação das regras sobre o valor da prova vinculada ou de legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.
2. In casu, lido o acórdão a quo, não se averigua a existência de qualquer inconciliação entre os factos provados, os não provados e a conclusão; mais, na apreciação da prova e no reconhecimento de facto, não se verifica a existência de qualquer desrespeito ao raciocínio geral e à lógica nem violação das regras da experiência comum.
3. Segundo as informações constantes dos autos, o Tribunal Judicial de Base, tendo analisado sinteticamente as declarações prestadas pelo recorrente e pelas testemunhas na audiência, conjugado com a provas documentais, os objectos apreendidos e as demais provas apreciados na audiência, formou a sua convicção, dando como provados os factos assentes nestes autos.
4. Atendendo à quantidade de estupefacientes que estavam na posse do recorrente, bem como à frequência e ao modo do transporte de estupefacientes do Interior da China pelo recorrente num período de 3 meses, consideramos que não existia qualquer violação das regras de experiência comum no facto de que o Tribunal a quo não acreditou nas declarações prestadas pelo recorrente na audiência e concluiu que os estupefacientes comprados e adquiridos pelo mesmo não seriam destinados ao consumo pessoal, mas sim, ao oferecimento a outrem, consequentemente, condenou-o pela prática de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas.
5. Deste modo, o acórdão recorrido não padece do vício “erro notório na apreciação da prova” previsto no artº 400º, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal.
6. Na verdade, a versão referida pelo recorrente é simplesmente os factos que devem ser dados como provados em conformidade com a convicção do recorrente. Certamente, o recorrente tinha a intenção de duvidar a convicção do Tribunal, através da invocação de existência de vício, sendo notoriamente a violação do disposto no artº 114º do Código de Processo Penal.
7. Nos termos dos artºs 40º e 65º do Código Penal, a determinação da pena concreta, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal, mais, o tribunal atende também a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
8. Tendo em conta a natureza e a gravidade do crime de tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, a moldura penal aplicável, a espécie e a quantidade dos estupefacientes apreendidos, o grau de culpa do recorrente, as condições pessoais deste, as circunstâncias concretas do caso, incluindo, o recorrente não é delinquente primário, não admitiu os factos que lhe foram imputados nem mostrou arrependimento pelo crime cometido, e as grandes influências negativas causadas pelo tráfico de droga à saúde pública e à paz social, bem como atendendo sinteticamente às exigências de prevenção criminal, concluímos que a pena de prisão de 7 anos aplicada pelo Tribunal a quo ao recorrente não é manifestamente pesada nem violou os dispostos nos artºs 40º e 65º do Código Penal.
9. A par disso, face aos casos diferentes, deve proceder-se à análise e ao juízo das situações concretas, e não se pode nem se deve fazer simplesmente uma comparação quantitativa com as penas determinadas noutros casos. De facto, cada caso tem a sua circunstância distinta, e cada agente tem as suas condições e comportamentos distintos, pois, deve ponderar-se e avaliar-se os casos concretos.
Entendeu que o recurso deve ser rejeitado.
Nesta instância, o Ministério Público mantém a posição já assumida na resposta à motivação do recurso.
2.Os Factos
As instâncias consideraram provados, na sua essência, os seguintes facto:
– Pelo menos desde 1 de Dezembro de 2010, o arguido tem-se deslocado, com intensa frequência, entre Macau e Zhuhai, com meia hora de tempo em cada deslocação, com o objectivo de trazer droga do Interior da China para Macau e de a fornecer a outrem;
– Em 11 de Março de 2011, às 19:45, no posto alfandegário da Porta do Cerco, nas cuecas vestidas pelo arguido, que acabou de entrar em Macau, foi descoberto, pelo pessoal alfandegário, um saco de pó branco, com 11,834 gramas líquidos de Ketamina no seu interior;
– Tal droga foi adquirida pelo arguido cerca das 19:00 desse dia em Zhuhai a um indivíduo de identidade não apurada pelo preço de novecentas patacas, com o fim de a fornecer a indivíduos de identidade não apurada;
– O arguido agiu livre, consciente e voluntariamente, com o propósito de praticar a conduta acima referida;
– A compra e a aquisição da droga acima referida pelo arguido tinha por fim o fornecimento da mesma a outrem;
– O arguido sabia da natureza e características da droga referida;
– O arguido sabia que a sua conduta era proibida por lei e punível.
Mais se provou que o arguido tem antecedente criminal: no Processo nº CR1-08-0303-PCS, foi condenado em 17 de Dezembro de 2009, pela prática em 4 de Maio de 2005 de um crime de uso de documento alheio, na pena de 120 dias de multa, já paga pelo arguido.
Em relação aos Factos não provados, foi consignado que “sem factos importantes para o julgamento a provar”.
3. O direito
As questões suscitadas pelo recorrente prendem-se com o vício do erro notório na apreciação da prova e com a medida concreta da pena.
3.1. Erro notório na apreciação da prova
Alega o recorrente que nos autos não se provou que ele tinha intenção de fornecer a outrem a droga apreendida, imputando a falta de prova bastante e a violação das regras da experiência.
A questão ora suscitada pelo recorrente está mais ligada à insuficiência da prova, tal como expressamente indica o recorrente.
No entanto, alegar a insuficiência da prova é, no fundo, questionar a livre convicção do tribunal, que é insindicável em via de recurso.
Ora, este Tribunal de Última Instância tem considerado que existe erro notório na apreciação da prova “quando se retira de um facto uma conclusão inaceitável, quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou tarifada, ou quando se violam as regras da experiência ou as legis artis na apreciação da prova. E tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passe despercebido ao comum dos observadores”. 1
No caso sub judice, resulta dos autos que o Tribunal de primeira instância formou a sua convicção com base na análise conjunta das declarações prestadas pelo próprio recorrente, do depoimento das testemunhas - agentes da Alfândega e da Polícia Judiciária, das provas documentais, dos objectos apreendidos nos autos e as demais provas apreciadas na audiência de julgamento, destacando-se a frequência com que o recorrente se deslocava entre Zhuhai e Macau e a quantidade da droga apreendida na sua posse.
Analisados todos os elementos probatórios constantes dos autos, conjugando com as regras da experiência comum, afigura-se-nos não haver nenhum obstáculo para o tribunal formar a sua convicção no sentido de dar como provada a finalidade com que detinha a droga o recorrente – de fornecer a terceiros.
Não se vê como foram violadas regras de formação da convicção do tribunal ou regras sobre o valor da prova vinculada nem as regras da experiência ou as legis artis.
Não se verifica nenhuma das situações que consubstanciem o vício invocado pelo recorrente. O que se mostra é a sua discordância relativamente à valoração que o Tribunal Colectivo fez da prova produzida em audiência de julgamento, pondo em causa a convicção formada pelo Tribunal.
3.2. Medida concreta da pena
Pretende o recorrente a atenuação da pena, o que se mostra também inviável.
Nos termos do artº 65º do Código Penal de Macau, a determinação da medida da pena é feita “dentro dos limites definidos na lei” e “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal”, tanto de prevenção geral como de prevenção especial.
O crime em causa é punível com a pena de três a quinze anos de prisão.
No caso sub judice, não resultam dos autos quaisquer circunstâncias que militem a favor do recorrente.
Não se descortina a confissão dos factos ilícitos.
No que tange às finalidades da pena, são prementes as exigências de prevenção geral, impondo-se prevenir a prática do crime em causa, que põe em risco a saúde pública e a paz social.
Tudo ponderado, não parece excessiva a pena de sete anos de prisão concretamente aplicada ao recorrente.
Tal como tem entendido este Tribunal, “Ao Tribunal de Última Instância, como Tribunal especialmente vocacionado para controlar a boa aplicação do Direito, não cabe imiscuir-se na fixação da medida concreta da pena, desde que não tenham sido violadas vinculações legais – como por exemplo, a dos limites da penalidade – ou regras da experiência, nem a medida da pena encontrada se revele completamente desproporcionada”2, pelo que se não se estiver perante essas situações, como é no caso vertente, o Tribunal de Última Instância não deve intervir na fixação da dosimetria concreta da pena.
Daí que se mostra manifestamente improcedente a pretensão do recorrente.
4. Decisão
Face ao expendido, acordam em rejeitar o recurso.
Nos termos do artº 410º nº 4 do Código de Processo Penal de Macau, é o recorrente condenado a pagar 4 UC.
Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça fixada em 4 UC e os honorários de 1000 patacas ao seu defensor nomeado.
Macau, 16 de Maio de 2012
Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
1 Acórdãos do TUI, de 30 de Janeiro de 2003, 15 de Outubro de 2003 e 11 de Fevereiro de 2004, nos Processos nºs 18/2002, 16/2003 e 3/2004, respectivamente.
2 Acórdãos do TUI, de 23 de Janeiro de 2008, 19 de Setembro de 2008, 29 de Abril de 2009 e 28 de Setembro de 2011, nos Processos nºs 29/2008, 57/2007, 11/2009 e 35/2011, respectivamente.
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14
Processo n.º 21/2012