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Processo n.º 766/2010 Data do acórdão: 2010-12-16
 Assuntos:
– art.o 114.o do Código de Processo Penal
– livre apreciação da prova
– regras da experiência da vida
– reclamação de direitos
– lei laboral
– princípio da liberdade contratual
– art.o 6.o do Decreto-Lei n.o 24/89/M



S U M Á R I O
1. Sendo livre a apreciação da prova nos termos do art.o 114.o do Código de Processo Penal de Macau, e não se mostrando desrazoável, aos olhos de qualquer homem médio colocado na situação concreta do julgador, o resultado de julgamento da matéria de facto a que chegou o juiz a quo, nem se mostrando esse resultado patentemente violador de alguma regra da experiência da vida humana na normalidade de situações ou de quaisquer legis artis em matéria de julgamento da matéria de facto, não é de sindicar a livre convicção desse julgador, formada através da análise global dos elementos probatórios então carreados aos autos.
2. Pelas máximas da experiência humana, a falta de reclamação do pagamento das retribuições junto da entidade patronal ou a não apresentação de queixa disso para a entidade administrativa com competência pública fiscalizadora da matéria, não representa necessariamente que o trabalhador tenha concordado com esse não pagamento das retribuições, mas sim, ao invés, ilustra bem a situação de existência de um certo constrangimento psicológico por parte do trabalhador em defender, de imediato, os seus direitos legalmente previstos na lei laboral, enquanto estava a durar anida a relação laboral da qual dependia a sua subsistência económica.
3. O princípio da liberdade contratual tem que ceder perante as regras cogentes plasmadas pelo legislador na lei laboral, quando do acordo celebrado entre o empregador e o trabalhador resultar para este situação menos favorável do que a prevista na lei laboral – veja-se, por exemplo, o art.o 6.o do Decreto-Lei n.o 24/89/M, de 3 de Abril.

O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 766/2010
  
  Recorrente: Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.
  Recorrido: Ministério Público
  Trabalhador ofendido: A
  Tribunal a quo: 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base
  Número do processo no Tribunal a quo: CR1-10-0019-LCT




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida pelo 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base a fls. 359 a 364 dos autos de contravenção laboral n.o CR1-10-0019-LCT (cujo teor se dá por aqui totalmente reproduzido para todos os efeitos legais), foi condenada a arguida Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A. (STDM), como autora de uma contravenção (concretamente, por diminuição ilícita da remuneração de base do seu trabalhador A) p. e p. conjugadamente pelos art.os 10.o, n.o 5, 59.o, n.o 5, 85.o, n.o 1, alínea 2), e 93.o da Lei das relações de trabalho (Lei n.o 7/2008, de 18 de Agosto), na multa de MOP30.000,00 (trinta mil patacas), e como autora de uma contravenção (concretamente, por falta de pagamento, nos termos devidos, da remuneração do trabalho prestado pelo referido trabalhador em feriados obrigatórios remunerados) p. e p. conjugadamente pelos art.os 19.o, n.o 3, 20.o, n.o 1, e 50.o, n.o 1, alínea c), do Decreto-Lei n.o 24/89/M, de 3 de Abril, na multa de MOP4.000,00 (quatro mil patacas), e, em cúmulo dessas duas multas, na multa global de MOP34.000,00 (trinta e quatro mil patacas), bem como no pagamento, para já, de MOP$45.198,20 (quarenta e cinco mil, cento e noventa e oito patacas e vinte avos) a favor do mesmo trabalhador ofendido (como soma da quantia indemnizatória da parte então ilicitamente diminuída da remuneração de base e já liquidada no valor de MOP43.827,60, com a quantia indemnizatória do trabalho prestado em feriados obrigatórios remunerados que também tinha ficado por pagar e calculada em MOP1.370,60), com juros legais desde a data do trânsito em julgado da decisão condenatória até efectivo e integral pagamento, para além do pagamento da indemnização da parte ilicitamente diminuída da remuneração de base ainda não liquidada e referente ao período de Janeiro a Julho de 2009, a apurar em concreto em sede de execução da sentença.
Inconformada, recorreu a arguida STDM para esta Segunda Instância, nos termos alegados na sua motivação apresentada a fls. 367 a 380 dos presentes autos correspondentes.
Ao recurso, respondeu a fls. 382 a 383v o Digno Procurador-Adjunto junto do Tribunal recorrido, no sentido de manutenção do julgado.
Subidos os autos, emitiu o Ministério Público parecer a fls. 417 a 418, pugnando pelo não provimento do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, realizou-se a audiência de julgamento neste Tribunal ad quem com observância do formalismo do art.o 414.o do Código de Processo Penal de Macau (CPP).
Cumpre, pois, decidir do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Na sua motivação do recurso, a arguida ora recorrente STDM começa por imputar ao Tribunal a quo o cometimento do erro na apreciação da prova como vício previsto no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, porquanto entende que o mesmo Tribunal desconsiderou o depoimento da testemunha B prestado na audiência então realizada, segundo o qual “o montante de retribuições que o trabalhador A tinha auferido durante o período desde 25 de Novembro de 1987 a 30 de Abril de 2003 já incluía o pagamento das férias anuais, descansos semanais e dos feriados obrigatórios”, o que, conjugado com a cirscunstância de que “Há mais de 20 anos a contar do inicío da relação laboral, o trabalhador A nunca tinha reclamado contra esta forma de pagamento (isto é incluindo no montante das retribuições o pagamento das férias anuais, descansos semanais e dos feriados obrigatórios) junto da entidade patronal, ora Recorrente, nem da Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais (DSAL)”, demonstra “na forma clara e sem qualquer margem de dúvida que o trabalhador A tinha consciência desde sempre da existência do acordo verbal estabelecido entre ele e a entidade patronal ora Recorrente desde o início da relação laboral”, “acordo esse que se traduz na inclusão do pagamento das férias anuais, descansos semanais e dos feriados obrigatórios no montante das retribuições”.
Entretanto, para este Tribunal de recurso, como não há nenhuma norma legal a ditar previamente que o Tribunal recorrido tenha que acreditar na versão fáctica dessa referida testemunha, a ora recorrente não pode pretender fazer impor o seu ponto de vista pessoal sobre a valoração da prova a pretexto de esse Tribunal ter cometido o erro notório na apreciação da prova.
E o mesmo se diz mutatis mutandis em relação aos cartões de ponto cujo valor probatório foi realçado nos art.os 27.o e 28.o da motivação do recurso (através do argumento de que “de acordo com os cartões de ponto que se encontram nos presentes autos, não há nenhum registo que prove que o trabalhador A prestou trabalho no dia 1 de Maio de 2004, nos dias 9, 10 e 11 de Fevereiro de 2005 (Novo Ano Lunar), no dia 1 de Maio de 2007, no dia 1 de Outubro de 2007, e em qualquer um dos dias de feriados obrigatórios remunerados do ano 2008 e do ano 2009”).
É que a falta de registo de ponto nesses dias em questão não prova necessariamente que o trabalhador A não tenha prestado trabalhado como motorista por conta da arguida nesses dias.
Na verdade, sendo neste caso livre a apreciação da prova nos termos do art.o 114.o do CPP, e não se mostrando desrazoável, aos olhos de qualquer homem médio colocado na situação concreta do julgador, o resultado de julgamento da matéria de facto a que chegou o Mm.o Juiz a quo, nem se mostrando esse resultado patentemente violador de alguma regra da experiência da vida humana na normalidade de situações ou de quaisquer legis artis em matéria de julgamento da matéria de facto, não é de sindicar a livre convicção daquele Mm.o Julgador, formada através da análise global (e não parcelar, como fez a recorrente na sua motivação do recurso) dos elementos probatórios então carreados aos autos.
Ademais, é de notar que pelas máximas da experiência humana, a falta de reclamação do pagamento das retribuições junto da entidade patronal ou a não apresentação de queixa disso para a entidade administrativa com competência pública fiscalizadora da matéria, não representa necessariamente que o trabalhador tenha concordado com esse não pagamento das retribuições, mas sim, ao invés, ilustra bem a situação de existência de um certo constrangimento psicológico por parte do trabalhador em defender, de imediato, os seus direitos legalmente previstos na lei laboral, enquanto estava a durar ainda a relação laboral da qual dependia a sua subsistência económica.
Improcede, sem mais considerações por ociosas, o recurso na matéria em causa, não tendo o Mm.o Juiz autor da sentença condenatória recorrida violado o princípio de in dubio pro reo, nem tão-pouco o princípio da descoberta da verdade material.
Por outra banda, quanto à questão de diminuição ilícita da remuneração de base do trabalhador, já vem a recorrente defender que a celebração de um novo contrato no dia 7 de Maio de 2003 não teve por escopo diminuir a remuneração de base do trabalhador A, já que o montante do salário diário aí fixado em MOP266,70 o foi tão-só sem inclusão do pagamento das férias anuais, descansos semanais e dos feriados obrigatórios, contrariamente ao que tinha sucedido anteriormente no passado, em que o montante do salário diário incluía também o pagamento das férias anuais, descansos semanais e dos feriados obrigatórios, tendo assim a celebração desse novo contrato por finalidade primordial “fazer com que o montante do salário diário propriamente dito do trabalhador A ficasse mais evidente, claro e precisos”, “sem misturar com o pagamento das férias anuais, descansos semanais e dos feriados obrigatórios”, e, “por conseguinte, tal como bem afirma a testemunha B que no seu entendimento, isto não é considerado como uma situação de diminuição da remuneração”, pois o que houve “foi apenas um ajustamento do montante da retribuição do trabalhador A, para não fazer incluir o pagamento das férias anuais, descansos semanais e dos feriados obrigatórios, sem qualquer redução ou diminuição quanto ao montante do salário diário em si”.
Contudo, esta tese, ora preconizada e defendida com veemência pela recorrente, está a contrariar frontalmente com a matéria de facto já julgada como assente pela Primeira Instância, em sintonia com a qual o montante do salário diário do trabalhador A no dia 30 de Abril de 2003 era de MOP$289,90, valor esse que ficou reduzido a MOP266,70 com a vigência do novo contrato assinado em 7 de Maio de 2003, sem submissão de autorização por parte da DSAL.
Ora, estando – por força da solução acabada de ser dada acima para a primeira parte da fundamentação do recurso vertente – já materialmente confirmada nesta sede recursória a decisão de facto emitida pelo Mm.o Juiz a quo, é de naufragar também esta segunda parte da fundamentação do recurso, não sendo de alterar nenhum facto já dado por provado no texto da sentença recorrida.
Em todo o caso, sempre se dirá que o princípio da liberdade contratual tem que ceder perante as regras cogentes plasmadas pelo legislador na lei laboral, quando do acordo celebrado entre o empregador e o trabalhador resultar para este situação menos favorável do que a prevista na lei laboral – veja-se, por exemplo, o art.o 6.o do Decreto-Lei n.o 24/89/M, vigente à data da celebração do acima referido novo contrato entre a arguida e o trabalhador dos autos.
Por fim, pretende, ainda que a título subsidiário, a recorrente que as duas multas possam passar a ser fixadas nos respectivos valores mínimos. Mas, também sem razão, porquanto atentas todas as circunstâncias fácticas já apuradas pelo Tribunal recorrido, e sobretudo a duração temporal da conduta contravencional da arguida, não se mostra exorbitante ou excessivo o quantum achado na decisão recorrida para as multas em questão, dentro das respectivas molduras legais.
É, pois, de manter, na íntegra, a decisão recorrida, ficando a arguida realmente bem condenada em pagar designadamente a devida indemnização pecuniária a favor do trabalhador ofendido.
III – DECISÃO
Em harmonia com o exposto, acordam em negar provimento ao recurso, mantendo, na íntegra, a decisão recorrida.
Custas do recurso pela arguida, com dez UC de taxa de justiça.
Notifique o presente acórdão ao trabalhador ofendido A.
Macau, 16 de Dezembro de 2010.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Tam Hio Wa
(Segunda Juíza-Adjunta)



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