Processo nº 753/2010(/) Data: 27.01.2011
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “desobediência qualificada”.
Erro notório na apreciação da prova.
SUMÁRIO
1. O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.
2. É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.
O relator,
José Maria Dias Azedo
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Processo nº 753/2010(()
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Sob acusação pública respondeu, no T.J.B., A, vindo, a final, a ser condenado pela prática de um crime de “desobediência qualificada”, p. p. pelo artigo 312°, n° 2 do C.P.M., conjugado com o art. 92°, n° 1 da Lei do Trânsito Rodoviário, na pena de multa de 150 dias à taxa diária de MOP$210.00, perfazendo um total de MOP$31,500.00 ou 100 dias de prisão subsidiária, aplicando-se, também, ao arguido, a sanção de cassação da sua licença de condução; (cfr., fls. 29-v a 30 e 69 a 70 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado com o assim decidido, traz o arguido o presente recurso para na sua motivação produzir as conclusões seguintes:
“1 - O ora recorrente foi acusado da pela prática, em autoria, sob a forma consumada, de um crime de desobediência qualificada previsto e punido no n° 2 do artigo 92° conjugado com o n° 2 do artigo 312°, ambos do Código Penal.
2 - Não ficou provado, em sede de audiência de discussão e julgamento, que o recorrente tivesse conduzido um motociclo sem que para tal possuísse habilitação legal.
3 - As testemunhas de acusação, os Senhores Agentes Autuantes, não puderam afirmar com toda a certeza e convicção de que o Recorrente estava a conduzir um veículo motorizado.
4 - Ficou provado que o Recorrente e B usavam roupa de cor escura, o que levou à confusão na identificação do condutor do motociclo.
5 - Ficou provado que o local da ocorrência dos factos (denso arvoredo), a hora (01:20 horas) e a localização dos agentes autuantes, não permitia a correcta identificação do Recorrente como condutor de qualquer veículo motorizado”; (cfr., fls. 33 a 44).
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Na sua resposta, assim conclui o Exm° Magistrado do Ministério Público:
“1. É evidente que o Recorrente quer impugnar a convicção do Tribunal a quo sobre a matéria de facto, entendendo que não estaria provado que o Recorrente estava a conduzir um motociclo durante o período de inibição de condução.
2. Como é sabido, o Tribunal deve seguir o princípio de livre apreciação de prova e de livre convicção de facto, a não ser que haja prova vinculada ou viole regras de experiência comum.
3. O Recorrente não pode atacar a convicção do Tribunal sobre a matéria de facto meramente com base em alegar que não ficam provados alguns factos, enquanto nos autos constam claramente provados os mesmos factos, vice-versa.
4. É manifestamente improcedente o recurso que vem, controvertendo os factos provados, apenas pôr em causa a livre convicção dos julgadores. (TSI n.° 34/2001).
5. Da mesma lógica deduzida do douto acórdão do TSI n.° 34/2001, de 10/05/2001, pode resultar que considera-se também litigante de má fé o recorrente que alega que ficam provados ou não provados alguns factos, enquanto nos autos constam claramente não provados ou provados os mesmos factos.
6. O Recorrente alegou na motivação de recurso alguns factos considerados por ele como provados ou não provados, mas é manifesto que estes "factos provados ou não provados" não correspondem ao teor da douta sentença recorrida.
7. Mais a mais, não tendo o Recorrente requerido nenhum meio processual legal dedicado a contradizer a convicção do Tribunal sobre a matéria de facto, é de concluir que o Recorrente tinha reconhecido implicitamente a realidade dos factos provados enunciados na sentença recorrida.
8. A litigância de má fé material ou substancial da parte processual consiste na negação consciente dos factos incontestáveis ou ... (TSI, proc. n°. 148/2002, de 23/01/2003)
9. O Recorrente, porém, limita-se a alegar alguns factos por ele considerados como provados ou não provados, mas realmente nenhum deles consta da sentença ou os mesmos factos devem ter-se por incontestáveis.
10. Não se tratando duma negação de factos incontestáveis de mera negligência, é de rejeitar o recurso por ser manifestamente improcedente nos termos do art. 410°, n.° 1 do CPP, e considerar-se o Recorrente litigante de má fé”; (cfr., fls. 46 a 49).
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Nesta Instância, e em sede de vista, pugna também o Exm° Procurador-Adjunto no sentido de rejeição do recurso; (cfr., fls. 75 a 75-v).
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Colhidos os vistos dos Mm°s Juízes-Adjuntos, cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Vem dados como provados os factos seguintes:
“No dia 26 de Julho de 2010, pelas 01H20, na operação de "STOP" efectuada pelo CPSP na Estrada de Seac Pai Van em Coloane, junto à bomba de gasolina Mobil, o guarda principal do CPSP (n° XXXXXX), C, viu o arguido A a conduzir uma mota de matrícula MI-XX-XX, levando como passageiro D e vindo da Estrada do Alto de Coloane (Estatua da Deusa A-Ma). O arguido parou a mota a 10 metros de distância à frente dele e do guarda E (n° XXXXXX) e foi-se embora a pé em direcção contrária da mota, deixando D na mota.
Os guardas policiais aproximaram-se do arguido e pediram-lhe os documentos do veículo e a sua carta de condução, mas este pediu aos guardas que o deixassem ir embora, alegando estar no período de inibição de condução.
O arguido tem apenas carta de condução de automóveis ligeiros, tendo-lhe sido aplicada, no dia 14 de Maio de 2010 pelo Tribunal Judicial de Base, a sanção de proibição de conduzir qualquer veículo a motor pelo período de 6 meses, contando a partir do dia 25 do mesmo mês.
O arguido sabia bem que estava a cumprir a sanção de inibição de condução mas ainda conduziu, desobedecendo à ordem de inibição de condução que lhe foi imposta.
O arguido agiu consciente, livre e voluntariamente, sabendo bem que a sua conduta era proibida e punida pela lei.
Dados pessoais:
O arguido A alegou ser gerente de um restaurante, auferindo mensalmente MOP25.000,00, tendo a seu cargo duas filhas menores.
Tem curso universitário.
É primário conforme o registo criminal.
Factos não provados: Não há factos a serem provados .
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O Tribunal formou a sua convicção quanto aos factos com base nas declarações prestadas pelo arguido sobre os factos ilícitos descritos na acusação, nos depoimentos das testemunhas da acusação e da defesa, bem como nos documentos constantes dos autos.”; (cfr., fls. 28-v a 29 e 66 a 67).
Do direito
3. Busca o recorrente a revogação da decisão recorrida e a sua consequente absolvição.
Alega, (em síntese), que “Não ficou provado, em sede de audiência de discussão e julgamento, que o recorrente tivesse conduzido um motociclo sem que para tal possuísse habilitação legal.”, imputando, à decisão recorrida, e ainda que de forma não explicita, o vício de “erro notório na apreciação da prova”.
É porém patente que nenhuma razão lhe assiste, sendo antes de concluir que mais não faz o recorrente que manifestar a sua discordância em relação ao julgamento da matéria de facto, pretendendo impor a sua versão dos factos, e afrontando, desta forma, o princípio da “livre apreciação da prova” estatuído no art. 114° do C.P.P.M..
De facto, importa ter em conta que, como repetidamente tem este T.S.I. afirmado:
“O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”; (cfr., v.g., Ac. de 14.06.2001, Proc. n° 32/2001, do ora relator).
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.”; (cfr., v.g., Ac. de 20.09.2001, Proc. n° 141/2001, do ora relator).
Sendo este o caso dos autos –basta aliás ver que provado ficou também que o arguido, quando interceptado pelos agentes da P.S.P. “pediu aos guardas que o deixassem ir embora, alegando estar no período de inibição de condução”– manifestamente improcedente é o recurso, impondo-se assim a sua rejeição.
— Aqui chegados, vejamos da alegada “má-fé processual”.
Atento o afirmado pelo recorrente, e em sede de resposta, pugna o Exm° Magistrado do Ministério Público pela sua condenação como “litigante de má-fé”.
Cremos haver equívoco.
Como efeito, importa ter em conta que o que diz o recorrente é que os factos dados como provados não deveriam te-lo sido, (e não que “não estão provados”); (cfr., v.g., a conl. 2.ª).
Aliás, é neste sentido que assaca o atrás referido “erro notório”.
Nesta conformidade, motivos não há para a dita condenação; (cfr., v.g., neste sentido, o Ac. deste T.S.I. de 10.05.2001, Proc. n° 34/2001).
Decisão
4. Nos termos que se deixam expostos, e em conferência, acordam rejeitar o recurso; (cfr., art°s 409°, n° 2, al. a) e 410°, n° 1 do C.P.P.M.).
Pagará o recorrente a taxa de justiça de 5 UCs, e, pela rejeição, o equivalente a 3 UCs; (cfr., art. 410°, n° 4 do C.P.P.M.).
Macau, aos 27 de Janeiro de 2011
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José Maria Dias Azedo
(Relator)
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Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Tam Hio Wa
(Segundo Juiz-Adjunto)
Processo redistribuído ao ora relator em 10.01.2011.
. Processo redistribuído ao ora relator em 10.01.2011.
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