Processo n.º 910/2009
(Revisão de Sentença do Exterior)
Data: 9/Dezembro/2010
Recorrente: A (A)
Recorrido: B (B)
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
A (A), melhor identificado nos autos,
vem propor ACÇÃO ESPECIAL DE REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA contra
B (B), também melhor identificada nos autos,
nos seguintes termos e fundamentos:
1º
O Autor casou com a Ré em Macau no dia 8 de Julho de 2008 (Doc. n.º 1).
2º
Na pendência do casamento, nasceu uma filha que se chama C (C), menor (Doc. n.º 2).
3º
O casamento entre A. e R. foi dissolvido por divórcio em 26 de Maio de 2009, de acordo com a Ordem de Mediação Civil (民事調解書) proferida pelo Tribunal do Distrito Xiangzhou da Cidade Zhuhai da Província Guangdong (廣東省珠海市香州區人民法院). (Doc. n.º 3).
4º
A Ordem de Mediação Civil supra já referida entrou em vigor no dia 26 de Maio de 2009, pelo que a mesma transitou em julgado (cfr. Doc. 3 que ora se junta).
5º
Dado que o casamento entre o Autor e a Ré se realizou em Macau, a decisão em causa carece necessariamente de ter eficácia na RAEM a fim de que seja possível comprovar junto dos Serviços de Identidade de Macau.
6º
O que só poderá acontecer após a revisão e confirmação da decisão que decretou o divórcio entre os Requerentes.
7º
A Ordem da Mediação Civil proferida pelo Tribunal do Distrito Xiangzhou da Cidade Zhuhai da Província Guangdong foi certificada notarialmente, pelo que não há dúvidas sobre a autenticidade do documento do qual consta a decisão, nem sobre a inteligibilidade da mesma.
8º
A decisão nele contida não versa sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau.
9º
Decisão que não conduz, também, a um resultado incompatível com a ordem pública.
10º
Sendo que são preenchidos os requisitos previstos no artigo 1200º do Código de Processo Civil de Macau.
Nestes termos requer se confirme a Ordem de Mediação Civil proferida pelo Tribunal do Distrito Xiangzhou da Cidade Zhuhai da Província Guangdong, que decretou o divórcio entre o Autor e a Ré.
Foi oportunamente citada o requerido que não deduziu qualquer oposição.
O Digno Magistrado do Ministério Público pronuncia-se no sentido de não vislumbrar obstáculo à revisão em causa.
Foram colhidos os vistos legais.
II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente internacionalmente, em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária, dispondo de legitimidade ad causam.
Inexistem quaisquer outras excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer.
III - FACTOS
Com pertinência, têm-se por assentes os factos seguintes:
1. Relativamente ao processo de divórcio que correu seus termos no Tribunal Popular do Distrito de Xingzhou da cidade de Zhuhai da Província de Gangdong, certifica-se nos autos o teor da sentença aí proferida em 26 de Maio de 2009:
广东省珠海市香洲区人民法院
民事调解书
(2009)香民一初字第XXXX号
原告B,女,汉族,19XX年XX月XX日出生,现住珠海市拱北….名园….栋….房。身份证号码: 210XXXXXXXXXXXXXX。
委托代理人XX,广东XX律师事务所律师。
被告A,男,19XX年XX月XX日出生,澳门特别行政区居民,住澳门黑沙环斜路X号….花园….座….楼….室。澳门身份证号码: XXXXXXX (0)。
案由: 离婚纠纷
原告B诉称,原、被告于2008年7月8日在澳门登记结婚
原告在2008年10月生下女儿后,被告以原告未能生育儿子为由,对原告母女不闻不问,拒绝给付抚养费。因双方婚前认识时间不长,相互了解不够,感情基础不牢。现双方感情彻底破裂,已无挽回可能。故起诉请求判令: 1、解除原、被告婚姻关系; 2、女儿C由原告抚养; 3、 被告按月支付女儿C抚养费5000 元至十八周岁。
本案在审理过程中,经本院主持调解,双方当事人自愿达如下调解协议:
一、 原告B与被告A自愿离婚,自本调解协议书发生法律效力之日起,双方脱离夫妻关系;
二、 女儿C由原告B抚养。
本案案件受理费人民币400元,减半收取200元,由原告B自愿负担。
上述协议,符合有关法律规定,本院予以确认。
本调解书经双方当事人签收后,即具有法律效力。
审判长 XXX
审判员 XXX
人民陪审员 XXX
本件与原本核对无异
二00九年五月二十六日
书记员 XXX
XXX1
2. Mais se certifica relativamente ao trânsito da mesma:
广东省珠海市香洲区人民法院
离婚生效证明书
( 2009 ) 香民一初字第XXXX号
关于原告B诉被告A离婚纠纷一案,本院作出 ( 2009) 香民一初字第XXXX号民事调解书已于二00九年五月二十六日发生法律效力 (与民事调解书同时使用)。
特此证明
二00九年五月二十六日2
IV - FUNDAMENTOS
O objecto da presente acção - revisão de sentença proferida em processo de divórcio pelo Tribunal do Distrito Xianjzhou da cidade de Zhuhai da província de Gangdong da República Popular da China, de forma a produzir aqui eficácia, passa pela análise das seguintes questões:
1. Requisitos formais necessários para a confirmação;
2. Colisão ou não com matéria da exclusiva competência dos Tribunais de Macau;
3. Compatibilidade com a ordem pública;
*
1. Prevê o artigo 1200º do C. Processo Civil:
“1. Para que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do local em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau, excepto se foi o tribunal do exterior de Macau que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local do tribunal de origem, e que no processo tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública.
2. O disposto no número anterior é aplicável à decisão arbitral, na parte em que o puder ser.”
Com o Código de Processo Civil (CPC) de 1999, o designado privilégio da nacionalidade ou da residência - aplicação das disposições de direito privado local, quando este tivesse competência segundo o sistema das regras de conflitos do ordenamento interno - constante da anterior al. g) do artigo 1096º do CPC, deixou de ser considerado um requisito necessário, passando a ser configurado como mero obstáculo ao reconhecimento, sendo a sua invocação reservada à iniciativa da parte interessada, se residente em Macau, nos termos do artigo 1202º, nº2 do CPC.
A diferença, neste particular, reside, pois, no facto de que agora é a parte interessada que deve suscitar a questão do tratamento desigual no foro exterior à R.A.E.M., facilitando-se assim a revisão e a confirmação das decisões proferidas pelas autoridades estrangeiras, respeitando a soberania das outras jurisdições, salvaguardando apenas um núcleo formado pelas matérias da competência exclusiva dos tribunais de Macau e de conformidade com a ordem pública.
Não se conhecendo do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, o Tribunal limita-se a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade3, pelo que não há que proceder a novo julgamento tanto da questão de facto como de direito.
Vejamos então os requisitos previstos no artigo 1200º do CPC.
Autenticidade e inteligibilidade da decisão.
Parece não haver dúvidas de que se trata de um documento autêntico devidamente selado e traduzido, certificando-se uma decisão proferida em acção de divórcio, convertido em mútuo consentimento de ambos os cônjuges, do Tribunal do Distrito de Xiangzhou da cidade de Zhuhai, de 26 de Maio de 2009, cujo conteúdo facilmente se alcança, tratando-se de um divórcio requerido pela B, por insubsistência da relação conjugal e ruptura dos laços afectivos, em particular no que respeita à parte decisória - dissolução do casamento, com regulação do poder paternal e estabelecimento de alimentos -, sendo certo que é esta que deve relevar.4
Quanto aos requisitos relativos ao trânsito em julgado, competência do tribunal do exterior, ausência de litispendência ou de caso julgado, citação e garantia do contraditório, dispõe o artigo 1204º do CPC:
“O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200º, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito”.
Tal entendimento já existia no domínio do Código anterior5, entendendo-se que, quanto àqueles requisitos, geralmente, bastaria ao requerente a sua invocação, ficando dispensado de fazer a sua prova positiva e directa, já que os mesmos se presumiam6.
É este, igualmente, o entendimento que tem sido seguido pela Jurisprudência de Macau.7
Ora, nada resulta dos autos ou do conhecimento oficioso do Tribunal, no sentido da não verificação desses requisitos que assim se têm por presumidos.
2. Já a matéria da competência exclusiva dos Tribunais de Macau está sujeita a indagação, implicando uma análise em função do teor da decisão revidenda, à luz, nomeadamente, do que dispõe o artigo 20º do CC:
“A competência dos tribunais de Macau é exclusiva para apreciar:
a) As acções relativas a direitos reais sobre imóveis situados em Maca
b) As acções destinadas a declarar a falência ou a insolvência de pessoas colectivas cuja sede se encontre em Macau.”
Ora, facilmente se observa que nenhuma das situações contempladas neste preceito colide com o caso sub judice, tratando-se aqui da revisão de um divórcio requerido apenas por um dos cônjuges e convertido em mútuo acordo, homologado pelo Tribunal.
3. Da ordem pública.
Não se deixa de ter presente a referência à ordem pública, a que alude o art. 273º, nº2 do C. Civil, no direito interno, como aquele conjunto de “normas e princípios jurídicos absolutamente imperativos que formam os quadros fundamentais do sistema, pelo que são, como tais, inderrogáveis pela vontade dos indivíduos.”8E se a ordem pública interna restringe a liberdade individual, a ordem pública internacional ou externa limita a aplicabilidade das leis exteriores a Macau, sendo esta última que relevará para a análise da questão.
No caso em apreço, em que se pretende confirmar a sentença que dissolveu o casamento, decretando o divórcio entre a ora Requerente e o seu marido, não se vislumbra que haja qualquer violação ou incompatibilidade com a ordem pública.
Aliás, sempre se realça que o nosso direito substantivo prevê a dissolução do casamento, também por mútuo consenso, constatando-se da documentação que se alegou que o casamento chegou a um ponto em que já não era possível continuar.
O pedido de confirmação de sentença do Exterior não deixará, pois, de ser procedente.
V - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam conceder a revisão e confirmar a ordem de mediação civil, proferida no processo de divórcio entre A e B, nº XXXX (2009) da Série “Xiang min yi chu zi”, com sentença proferida no dia 26 de Maio de 2009 nos seus precisos termos.
Custas pelo requerente.
Macau, 9 de Dezembro de 2010
João A. G. Gil de Oliveira
(Relator)
Tam Hio Wa
(Primeira Juiz-Adjunta)
Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto) Vencido apenas quanto ás custas por entender que as custas devem ser repartidas entre o requerente e a requerida, uma vez que ambas as partes deram causa à acção em que foi proferida a decisão ora revista e confirmada.
1 “Cartório Notarial da Cidade de Zhuhai da Província de Guangdong da República Popular da China
Tribunal Popular do distrito de Xiangzhou da Cidade de Zhuhai da Província de Guangdong
Reconciliação Cível
Autora : B (B), de sexo feminino, de etnia Han, nascida a XX de XX de 19XX, residente no珠海市拱北...名園… 棟…房, portadora do bilhete de identidade n.º 210XXXXXXXXXXXXXX.
Mandatário : XX (XX), advogado do Escritório de Advocacia XX da província de Guangdong.
Réu : A (A), de sexo masculino, nascido a XX de XX de 19XX, residente da RAEM, residente no 6º andar AV do Jarins …. (Bloco ….) da Rampa dos Cavaleiros n.º …., Macau; portador do BIRM n.º XXXXXXX(0).
Assunto : conflito de divórcio
Alegando a autora B que foi no dia 8 de Julho de 2008 que procedeu com o réu ao registo de casamento em Macau. Deu à luz uma filha em Outubro de 2008, porém, o réu não deu nenhuma importância à autora nem à filha porque a autora não deu à luz um filho, rejeitando a dar-lhes pagamento de alimentos. Como as partes não se conheceram por muito tempo antes do casamento nem se entendem profundamente um ao outro, não sendo sólida a relação amorosa e até ficou completamente rompida sem possibilidade de ser recuperada. Neste sentido, intenta-se uma acção solicitando um julgamento de : 1. dissolução da relação conjugal entre a autora e o réu; 2. a filha C (C) fica a cargo da autora; 3. devendo o réu pagar mensalmente 5000 yuan como pagamento de alimentos a favor da filha C (C) até aos seus 18 anos de idade.
No decurso de julgamento do presente caso, após a conciliação deste Tribunal, ambas as partes concordam voluntariamente com o acordo de conciliação abaixo indicado :
1. A autora B e o réu A procedem voluntariamente ao divórcio, cessa-se a relação matrimonial desde a produção de efeitos jurídicos da presente Conciliação;
2. A filha C (C) fica a cargo da autora.
As custas da presente acção fixam em RMB$400, depois da redução média, o valor regista em RMB$200, custas essas ficam a cargo da autora B pela sua própria vontade.
Coincidindo com as respectivas disposições jurídicas, este Tribunal decide confirmar o acordo acima apresentado.
A Conciliação em causa produz logo efeitos jurídicos depois de assinatura das ambas as partes.
Julgador Presidente : XXX (XXX)
Juiz : XXX (XXX)
Jurado Popular : XXX (XXX)
Verificou-se que não há nenhuma diferença entre o presente documento e a sua versão original.
Aos 26 de Maio de 2009
Escrivão : XXX (XXX)
XXX (XXX)”
2 “Tribunal Popular do Distrito de Xiangzhou da Cidade de Zhuhai da Provìncia de Guangdong
Certificado da Vigência de Divórcio
Vem certificado que :
Em respeito à acção de divórcio intentada pela autora B (B) contra o réu A (A), a Conciliação Cível N.º XXXX da Série Xiang min yi chu zi (2009) proferida por este Tribunal começou a produzir efeitos jurídicos desde 26 de Maio de 2009 (usa-se simultaneamente com a Conciliação Cível).
Aos 26 de Maio de 2009
(Carimbo : Tribunal Popular de Distrito de Xiangzhou da Cidade de Zhuhai)”
3 - Alberto dos Reis, Processos Especiais, 2º, 141; Proc. nº 104/2002 do TSI, de 7/Nov/2002
4 - Ac. STJ de 21/12/65, BMJ 152, 155
5 - cfr. artigo 1101º do CPC pré-vigente
6 - Alberto dos Reis, ob. cit., 163 e Acs do STJ de 11/2/66, BMJ, 154-278 e de 24/10/69, BMJ, 190-275
7 - cfr. Ac. TSJ de 25/2/98, CJ, 1998, I, 118 e jurisprudência aí citada, Ac. TSI de 27/7/2000, CJ 2000, II, 82, 15/2/2000, CJ 2001, I, 170, de 24/5/2001, CJ 2001, I, 263 de 11/4/2002, proc. 134/2002 de 24/4/2002, entre outros
8 -João Baptista Machado, Lições de DIP, 1992, 254
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
910/2009 1/15