Processo nº 880/2010 Data: 27.01.2011
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “ofensa à integridade física”.
Retorsão.
Dispensa da pena.
SUMÁRIO
1. O conceito de “retorsão” implica a ocorrência conjunta dos seguintes elementos:
a) - que a agressão se siga, de forma imediata e instantânea a uma outra agressão;
b) - que surja em resposta a essa prévia agressão.
Corresponde pois a situações nas quais o agente se limita a “responder” a uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido (a ao mesmo tempo agressor) empregando a força física.
2. Age em “retorsão” o arguido que agride o “ofendido” com um cinzeiro na cabeça depois de este o ter também agredido da mesma forma.
3. Constatando-se que agiu o arguido em retorsão, e não sendo a “dispensa da pena” uma “medida de clemência”, deve o Tribunal decretá-la se as lesões causadas forem diminutas e o arguido primário.
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 880/2010
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por sentença proferida pelo Mm° Juiz do T.J.B. foi A (A), com os sinais dos autos, condenado pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de “ofensa à integridade física”, p. p. pelo art. 137°, n° 1 do C.P.M., na pena de 90 dias de multa, com a taxa diária de MOP$60.00, perfazendo a multa total de MOP$5,400.00, ou 60 dias de prisão subsidiária; (cfr., fls. 131 a 134 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado, o arguido veio recorrer para este T.S.I., afirmando, em síntese, que o Tribunal a quo violou o art. 137°, n° 3, al. b) e 40° e 65°, todos do C.P.M.; (cfr., fls. 139 a 143 e 169 a 172).
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Respondendo, afirma o Exm° Magistrado do Ministério Público que:
“Neste tribunal o arguido e ora recorrente A foi condenado pela pratica de um crime p. e p. no art° 137° C.P.M. na pena de 90 dias de multa, à razão de Mop$60,00 diária, no total de Mop$5.400,00.
Em alternativa a esta multa, deverá o arguido cumprir 60 dias de prisão.
Para alcançar a condenação, o tribunal "a quo" considerou que no dia 3 de Outubro de 2006 pelas 16:30 h. o arguido, nas instalações do casino Fortuna e quando estava sentado no lugar n° 2 de uma mesa de bacará, entrou em discussão com um tal B, que se encontrava sentada na mesma mesa.
A dado momento o ora ofendido C meteu-se na discussão.
O arguido, então pegou num cinzeiro e atirou-se à cabeça de C.
Destes factos resultaram ligeira lesões para o ofendido, que lhe terão determinado 5 dias de doença.
O Tribunal deu ainda como provado que o arguido confessou os factos, é primário e que momentos antes de ser agredido pelo arguido, o ofendido tinha-lhe, igualmente atirado um cinzeiro à cabeça.
Consta ainda da douta sentença recorrida que o arguido procedeu deste modo porque o atrás citado B tinha lhe dado uma bofatada e, coma já se disse, o ofendido C o atacou com um cinzeiro.
Inconformado com a sentença, o arguido veio interpor o presente recurso, pedindo que seja isento de pena, nos termos do despacho no art° 137° b) C.P.M., pois que se limitou a retorquir sobre o agressor, facto esse reconhecido pelo tribunal.
Argumenta ainda que sendo aposentado, recebendo uma pensão mensal de Mop$1.250,00 não tem possibilidade de pagar a multa a que foi condenado.
Assim, por entender que a douta sentença não obedeceu aos critérios de determinação de pena consagrados nos art.° 64° e 65° C.P.M., nomeadamente no que diz respeito à sua condição económica, pede que a mesma seja alterada e não pondo em causa a Justiça da sua condenação, solicita a isenção de pena ou em alternativa a substituição desta pena de multa, por prestação de trabalho.
Finalmente, pede, em último lugar que caso nenhuma das alternativas por si apontadas não seja viável, que seja fixada um novo montante para a multa diária.
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Os factos tem pouca importância penal, sendo de realçar a confissão e os motivos os que determinavam a condução do arguido. Por outro lado, merece a atenção do tribunal o facto de o arguido ser primário, o que é relevante, se atentarmos à sua idade - 62 anos.
A douta sentença procurou ser benévola para o arguido, ao optar desde logo, por aplicar uma pena de multa. Todavia, não podemos deixar de dar razão ao recorrente quando entende ser desproporcionado o montante de multa a que foi condenado, relativamente aos seus rendimentos mensais comprovados.
A multa apurada corresponde a mais de 4 meses, de rendimento do arguido, o que, salvo o devido respeito, parece manifestamente exagerado.-
Pagar tal quantia, porá em perigo a satisfação das necessidades básicas do arguido.
E não nos parece que em nome da necessidade de prevenção geral ou mesmo especial, se deva impor tão "severa" sanção ( pelo menos para o recorrente), tanto mais que, como se disse, os factos tem pouca relevância penal.
A conduta do arguido fora, até então, exemplar. Os motivos que o determinam estão encontrados e em parte levam à sua compreensão.
Daí que não repugna que V. Exª, dando razão ao recorrente, o isentem de pena, como peticionado.”; (cfr., fls. 145 a 147).
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Remetidos os autos a este T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exm° Representante do Ministério Público o seguinte Parecer:
“Encontra-se exclusivamente em causa o inconformismo do recorrente relativamente à dosimetria penal de que se lançou mão na douta sentença em escrutínio.
Pese embora a nossa compreensão relativamente à eventual dificuldade económica daquele com vista ao pagamento da multa em que foi condenado, convirá não olvidar que se trata de uma pena, que, como todas as penas, é suposto acarretar para o penalizado os sacrifícios e inconvenientes inerentes, os quais, no caso, poderão, quiçá, passar por não arriscar o dispêndio dos seus haveres nos jogos de fortuna e azar, prática durante a qual se desenrolaram os factos conducentes ao ilícito registado.
Seja como for, quer-nos parecer que a medida concreta da pena alcançada não deixando de ponderar devidamente todo o circunstancialismo apurado, designadamente o que em abono do interessado se regista, se apresenta como justa e adequada, em limites perfeitamente razoáveis, seja no tempo da multa, seja no quantitativo diário fixado, não se vendo que se imponha redução ou isenção da mesma, razões por que, em nosso critério não merecerá provimento o presente”; (cfr., fls. 179).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados os factos seguintes:
“Em 3 de Outubro de 2006, cerca das 4h35, o arguido A (A) jogou na mesa do jogo de Bacará n.º 20, lugar n.º 2, da área B do piso de jogos destinado ao mercado de massas que se situa no cave do Casino Fortuna, e disputou com B (B) que se sentou no lugar n.º 5 da mesma mesa o direito de ver as cartas primeiro. Vendo isso, o cunhado de B (B), ou seja o ofendido C (C) veio disputar com o arguido.
Durante a disputa, o arguido pegou em cima da mesa um cinzeiro (ora apreendido no processo) com que atacou a cabeça do ofendido C (C), causando ferimentos na mesma.
Tal acto do arguido causou directamente ao ofendido contusão e rasgadura dos tecidos moles do esquerdo topo da cabeça, lesão essa precisa de 5 dias para recuperar-se (vide o parecer de medicina legal constante de fls. 69 dos autos, que se dá aqui por integralmente reproduzido).
O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente ao atacar dolosa e violentamente o ofendido, assim causando directamente ofensas a integridade física e saúde do mesmo.
O arguido bem sabia que a sua conduta é proibida e punida por lei.
Mais se provou:
Antes de o arguido atacar o ofendido C (C), este também atacou a cabeça do arguido com um cinzeiro.
O arguido é aposentado, recebe mensalmente o subsídio de aposentação no valor de MOP$1.250,00.
O mesmo é casado, não tendo a seu cargo ninguém.
A habilitação literária do arguido é escola primária.
O arguido confessou os factos que lhe eram acusados.
Segundo o registo criminal, o arguido é delinquente primário.”; (cfr., fls. 131 a 134 e 162 a 163).
Do direito
3. Afirma o arguido/recorrente que a decisão do Mm° Juiz do T.J.B viola o art. 137°, n° 3, al. b) do Código Penal, considerando também excessiva a pena em que foi condenado e que atrás se deixou explicitada.
Merecendo o recurso conhecimento, vejamos se merece provimento.
Pois bem, nos termos do mencionado art. 137°:
“1. Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. O procedimento penal depende de queixa.
3. O tribunal pode dispensar de pena quando:
a) Tiver havido lesões recíprocas e não se tiver provado qual dos contendores agrediu primeiro; ou
b) O agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor.”
No que se refere à alínea b) do n° 3, (e como no recente Acórdão deste T.S.I. de 02.12.2010, tirado no Proc. n° 871/2010, se deixou consignado), tem-se entendido que o conceito de “retorsão” implica a ocorrência conjunta dos seguintes elementos:
“a) - que a agressão se siga, de forma imediata e instantânea a uma outra agressão;
b) - que surja em resposta a essa prévia agressão”; (cfr., v.g., Ac. da Relação de Lisboa de 31.10.2001, Proc. n° 0060793).
Mais recentemente, entendeu também a Relação do Porto que:
“A retorsão corresponde a situações nas quais o agente se limita a “responder” a uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido (a ao mesmo tempo agressor) empregando a força física”; (cfr., Ac. de 22.09.2010, Proc. n°1281/05.9TAVLG.P1).
Também Pinto de Albuquerque, (no “Comentário do Código Penal”, pág. 386), diz que a retorsão consiste numa reacção ilícita de agressão diante de uma agressão, também ela, ilícita.
A retorsão diferencia-se assim da legítima defesa e do estado de necessidade porque supõe a ilicitude da reacção da vítima.
E, como parece evidente, tem de ter lugar no mesmo acto, sendo essencial o carácter imediato da reacção do agente.
Dito isto, e ponderando na factualidade provada e atrás retratada, mostra-se-nos de concluir que agiu o ora recorrente em “retorsão” pois que a sua conduta (agressão ao ofendido C) foi uma resposta à agressão que sofreu deste.
De facto, provado está que antes de o recorrente agredir a cabeça do ofendido com 1 cinzeiro, este também o fez, “atacando a cabeça do arguido com 1 cinzeiro”.
Nesta conformidade, “que dizer”?
Ora, o preceito em questão, (art. 137º do C.P.M.), é certo, não impõe a dispensa da pena, atribuindo ao Tribunal a “faculdade” de a decretar; (atente-se na expressão “O Tribunal pode...”).
Ponderando nas circunstâncias da situação sub judice, cremos que se deve decretar a dispensa da pena, pois que esta para além de não ser uma “medida de clemência”, tem algo de uma “pena de substituição”.
Como ensina F. Dias, “o que na mesma existe verdadeiramente é uma pena de declaração de culpa, ou, se se preferir, uma espécie de admoestação, que decorre de tal declaração”; (vd., “Direito Penal, II, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, pág. 317).”
“In casu”, e face à factualidade dada como assente, nomeadamente, às lesões causadas e ao facto de ser o arguido primário, afigura-se-nos pois bastante tal “admoestação”, sendo assim de proceder o recurso na parte em questão, e prejudicada ficando a apreciação da questão da adequação da pena pelo T.J.B. decretada.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam julgar procedente o recurso.
Sem custas.
Honorários ao Exm° Defensor no montante de MOP$1,200.00.
Macau, aos 27 de Janeiro de 2011
(Relator)
José Maria Dias Azedo
(Segunda Juiz-Adjunta)
Tam Hio Wa
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng (vencido, por entender que “in casu”, não pode haver lugar a dispensa da pena, devido à “desproporção das lesões”, pois embora o arguido tenha sido agredido primeiro pelo ofendido, não se provou que o arguido sofreu lesão por isso, mas, por outra banda, já se provou que o ofendido, depois do ataque pelo arguido, sofreu lesões que lhe demandaram 5 dias para convalescença, pelo que admito que possa ser reduzida a pena do arguido, mas não dispensada a pena).
Proc. 880/2010 Pág. 14
Proc. 880/2010 Pág. 1