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Recurso Jurisdicional n. 803/2007
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão:7/04/2011
Descritores: Indeferimento liminar
Manifesta improcedência




SUMÁRIO:



I- - Na constância do casamento em que o regime de bens é o da comunhão (geral ou de adquiridos), os bens comuns não pertencem aos cônjuges em compropriedade, antes constituem uma massa patrimonial que, em bloco, pertence a ambos os conjugues, podendo dizer-se que os dois são titulares de um único direito sobre eles, aplicando-se, então, o disposto no art. 709º do mesmo Código e não o art. 710º do mesmo Código.

II- É condição suficiente à penhora de bens comuns dos conjugues que o exequente, ao nomeá-los à penhora, requeira a citação do cônjuge não executado para que venha pedir a separação de bens. Se o cônjuge então citado nada fizer, a execução prossegue nos bens penhorados até à venda judicial.

III- Se a acção visa a anulação da venda a coberto do art. 710º do CPC, mas baseada em factos que se subsumem ao art. 704º do mesmo Código, é evidente que a pretensão jamais poderá proceder.

V- Deve, nesse caso, ser indeferida liminarmente a petição inicial nos termos do art. 394º, n/1, al. d), do CPC.






Recurso Jurisdicional n. 803/2007
(Civil e Laboral)

Acordam no Tribunal de 2ª Instância da RAEM

I- Relatório

A, com os demais sinais dos autos, moveu acção declarativa comum com processo sumário contra B e mulher C e Banco D SARL pedindo se declarasse sem efeito a venda judicial realizada no âmbito do processo de execução n. CV2-01-0008-CEO e fossem os réus condenados a reconhecer o direito de propriedade da autora sobre uma fracção imobiliária ali identificada.
*
Liminarmente indeferida a petição por ineptidão, do respectivo despacho recorreu a então autora, A, em cujas alegações apresentou as seguintes conclusões:
  “1) O presente recurso interposto do despacho de indeferimento liminar da presente acção;
  2) O pedido da presente acção consiste o seguinte:
  a) declarar, sem efeito, a venda judicial por proposta em carta fechada, realizada em 08.06.2006, nos autos de execução n.º CV2-01-0008-CEO, que correu os seus termos pelo 2.º juízo Cível do Tribunal judicial de Base da RAEM, sobre a fracção autónoma “HR/C”, do rés-do-chão “R”, para comércio, do prédio, em regime de propriedade horizontal, sito em Macau, com os n.º s XX a XX da Rua de XX, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXX, a fls. XX do livro BXX, cuja a sua aquisição está inscrita nessa Conservatória sob o n.º XXX do livro XX;
  b) serem os Réus condenados a reconhecer o direito de propriedade da Autora sobre a fracção autónoma “HR/C”, do rés-do-chão “R”, para comércio, do prédio, em regime de propriedade horizontal, sito em Macau, com os n.º s XX a XX da Rua de XX, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXX, a fls. XX do livro BXX, cuja a sua aquisição está inscrita nessa Conservatória sob o n.º XXX do livro XX;
  3) Para proceder os pedidos da Autora, esta alegou os seguintes factos essenciais que consubstanciam a causa de pedir da presente acção:
  a) factos relativamente ao direito da propriedade e da posse da Autora sobre a fracção autónoma “HR/C” em causa (cfr. artigos 1.º a 14.º da petição inicial);
  b) factos relativamente à invalidade da venda judicial por proposta em carta fechada, realizada em 08.06.2006, nos autos de execução n.º CV2-01-0008-CEO, que correu os seus termos pelo 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base da RAEM, sobre a referida fracção autónoma “HR/C” (dr. artigos 15.º a 27.º da petição inicial);
  4) A ora Recorrente é proprietária registada da referida fracção autónoma “HR/C”, pelo que, assiste o direito de propor a presente acção de reivindicação nos termos do disposto no artigo 1235.º do Código Civil;
5) A referida fracção autónoma “HR/C” não pertence unicamente ao 1.º Réu B, mas também a sua mulher C, ora 2.ª Ré, em regime de compropriedade;
6) A comproprietária da fracção autónoma “HR/C”, C, ora 2.a Ré, não é executada dos autos de execução n.º CV2-01-0008-CEO;
7) A penhora não pode incidir sobre a totalidade da referida fracção autónoma “HR/C”, uma vez que, esta não pertence totalmente ao 1.º Réu B;
8) Com a invalidade total da penhora, o Tribunal deverá declarar inválido os actos posteriores à penhora, nomeadamente, dá sem efeito a venda judicial realizada em 08.06.2006, nos termos do disposto nos artigos 147.º 802.º e 803.º do CPC;
9) A petição inicial dos presentes autos não verificou os casos de indeferimento liminar previstos pelo artigo 394.º do CPC;
10) O despacho ora recorrido violou os preceitos legais previstos pelo disposto nos artigos 147.º, 394.º, 704.º, 710.º, 802.º e 803, todos do Código de Processo Civil (CPC) e no artigo 1235.º do Código Civil (CC);
11) Pelo que, REQUER, muito respeitosamente, as V. Exas. se digne ordenar a revogação. do despacho em causa pelos motivos supra mencionados, como o que V. Exas. farão JUSTIÇA!”.
*

O Banco D, SARL, por sua vez, apresentou as suas alegações, que concluiu da seguinte maneira:

“1ª
Após o registo da penhora incidente sobre a fracção autónoma em causa no âmbito dos autos de execução registados sob o n.º CV2-01-0008-CEO, que teve lugar a 10 de Novembro de 2003, e após inclusive a notificação do próprio executado B (1º R. da presente acção ordinária) da referida penhora em 3 de Novembro de 2003, este último, por si e na qualidade de procurador da sua mulher, C, vendeu o referido imóvel a favor de A, ora recorrente, ao abrigo de escritura pública datada de 19 de Novembro de 2003, recorrendo esta compradora para o efeito a um empréstimo (com hipoteca) junto do Banco da E.

Ora, o exequente daquela acção executiva, ora recorrido, adquiriu pela referida penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior (artigo 812º, n.º 1, do CC).

Sendo que, sem prejuízo das regras de registo, são ineficazes em relação ao ora recorrido os actos de disposição ou oneração dos bens penhorados, nos termos do artigo 809º do mesmo Código.

Conclui-se assim que a penhora incidente sobre aquele imóvel continuou a garantir o cumprimento da obrigação exequenda, não obstante o mesmo ter sido transmitido a favor de A, ora recorrente, tomando em conta que essa transmissão foi efectivada e registada já depois do registo da aludida penhora.

Razão por que o Mmo. Juíz a quo entendeu a fls. 542 dos referidos autos de execução que a mesma deveria prosseguir com a venda daquele imóvel

Termos que o imóvel foi vendido judicialmente no âmbito dos referidos autos de execução, livre de todos os direi tos de garantia que o onerava bem como dos demais direitos reais que não tinham registo anterior ao da referida penhora (artigo 814º, n.º 2, do CC), como é precisamente o caso da referida aquisição a favor da ora recorrente (inscrição n.º XXXG) cujo registo é posterior ao da referida penhora.

Sendo assim totalmente ineficaz em relação ao ora recorrido o acto de aquisição daquele imóvel por parte da ora recorrente (artigo 809º do CC), como vem realçado, e bem, no douto despacho recorrido.

Não se questiona o regime jurídico que dispõe que não podem ser penhoráveis partes especificadas de bens indivisos quando a execução for movida apenas contra algum ou alguns dos contitulares; mas existe uma excepção a este regime que está expressamente consagrada no artigo 709º, n.º 1, do CPC.

Na realidade, o direito do cônjuge à meação dos bens comuns do casal traduz-se num direito a uma universalidade; todavia o artigo 709º, n.º 1, do CPC permite penhorar os bens comuns do casal compreendidos nessa universalidade, mesmo quando a execução seja movida contra um só dos cônjuges, contando que o exequente, ao nomeá-los à penhora, peça a citação do cônjuge do executado para requerer a separação de bens.
10ª
Conclui-se que o imóvel em causa não estava registado em regime de compropriedade a favor daquele casal, mas trata-se, em bom rigor, de um bem comum daqueles cônjuges sujeito ao regime do artigo 709º do CPC e não ao do artigo 710º do mesmo diploma.
11ª
Como se sabe, dispõe o artigo 709º, n.º 1, do CPC, que: “Na execução movida contra um só dos cônjuges, podem ser penhorados bens comuns do casal, contando que o exequente, ao nomeá-los à penhora, peça a citação do cônjuge do executado, para requerer a separação de bens”.
12ª
Quando foi requerida a penhora da fracção autónoma “HR/C”, o ora recorrido teve o cuidado de requerer ainda a citação de C, para os fins do artigo 709º, n.ºs 1 e 2, do CPC, porquanto esse imóvel constituía efectivamente um bem comum do casal.
13ª
Sendo que nem C (nem o Ministério Público, em sua representação) requereram a separação de bens, não obstante ter a mesma sido citada, por éditos, para esse efeito, tal como o próprio Ministério Público, pelo que a execução prosseguiu naquele bem comum do casal.
14ª
Conclui-se assim que o despacho recorrido, ao indeferir liminarmente a petição inicial por se mostrar evidente que a pretensão da recorrente não poderia proceder (artigo 394º, n.º 1, al. d), 2ª parte, do CPC), limitou-se a analisar a peça processual em causa e a dar cumprimento ao estatuído na lei (cfr., entre outros, artigo 709º, n.ºs 1 e 2, do CPC e artigo 809º do CC), não violando qualquer preceito legal, mormente os artigos 147º, 394º, 704º, 709º, 710º, 802º e 803º do CPC e o artigo 1235º do CC.
15ª
Confirmando-se ainda que, como realça o douto despacho recorrido, a petição inicial é perfeitamente inepta por entre o pedido e a causa de pedir (artigo 394º, n.º 1, al. a), do CPC, ex vi artigo 139º, n.ºs 1 e 2, al. b), do mesmo Código): se o pedido de anulação tem por fundamento a penhora e a venda de uma metade daquele imóvel que não pertencia ao executado mas sim à sua mulher, o pedido deveria cingir-se naturalmente somente a essa parte.
16ª
Sendo que, no caso sub judice, não é admissível o indeferimento liminar parcial da petição por força do disposto no artigo 394º, n.º 2, do CPC, como salienta acertadamente o Mmo. Juiz a quo no despacho recorrido”.
*
Cumpre decidir, colhidos os vistos legais.
***

II- Os Factos
1º Em 5/06/2001 o Banco D instaurou execução contra F Construção Civil e Fomento Predial Limitada, G e B.
2º Nesses autos foi, em 25/09/2003, penhorada a fracção autónoma “HR/C”, do rés-do-chão “R”, para comércio, do prédio, em regime de propriedade horizontal, sito em Macau, com os n.º s 8 a 14 da Rua de XX, descrito na XX. do XX de Macau sob o n.º XXX, a fls. XXv do livro BXX, cuja a sua aquisição está inscrita nessa Conservatória sob o n.º XXX do livro G, pertencente a B e sua mulher C, casados no regime de comunhão de adquiridos.
3º Essa fracção havia sido registada a favor dos proprietários por inscrição de 11/09/1987, enquanto a penhora referida em 2º supra foi registada por inscrição de 10/11/2003.
4º O Banco exequente naqueles autos pediu a citação da mulher do executado B para requerer a separação de bens, o que foi feito através de citação edital (doc. fls. 47 verso e fls. 122 a 130 dos presentes autos).
5º Após a notificação da penhora ao executado B, este, por si e na qualidade de procurador de sua mulher C vendeu a fracção a favor de A, ora recorrente por escritura de 19/11/2003 (fls. 17 e sgs. dos presentes autos).
6º O registo desta compra verificou-se em 20/11/2003 (fls. 6 e sgs. dos presentes autos).
7º A referida fracção foi vendida em 8/06/2006, no âmbito da referida execução ao próprio exequente (fls. 52, 53).
8º Apresentada a petição inicial da presente acção, foi lavrado o seguinte despacho:
“Pela presente acção, veio a A. requerer que seja declarada nula a venda judicial da fracção autónoma identificada no artº 1º da p.i. efectuada nos autos de execução ordinária nº CV201-0008-CPE, no dia 8 de Junho de 2006.
Fundamenta o seu pedido na violação do disposto nos artºs 147º, 704º, 710º, 802º e 803º, todos do CPC.
Dos factos alegados pela A. verifica-se que a causa de pedir consiste no facto de o bem vendido judicialmente pertencer aos 1 º e 2a RR. em regime de compropriedade o qual foi adquirido pela A. e está registado em nome da mesma. Além disso, alega a A. que o adquiriu por escritura pública de 19 de Novembro de 2003 enquanto a penhora que precede à venda judicial foi ordenada por despacho de 25 de Setembro de 2003.
Da análise dos documentos junto com a p.i., verifica-se que interessam para a prolação do presente despacho liminar os seguintes factos:
• Por inscrição de 11 de Setembro de 1987, o bem ficou registado em nome dos 1 º e 2a RR., enquanto casados no regime de comunhão de adquiridos (cfr. doc. de fls 46);
• Por inscrição de 10 de Novembro de 2003, a penhora acima referida foi registada sendo executados nos respectivos autos de execução F Construção Civil e Fomento Predial, . Limitada,G e B; .
• Por inscrição de 20 de Novembro de 2003, o bem ficou registado em nome da A..
Ora, do acima expendido, julga-se que é de indeferir liminarmente a p.i. pelo seguinte.
Em primeiro lugar, a p.i. é inepta por contradição entre o pedido e a causa de pedir. Com efeito, ao alegar que apenas metade da fracção autónoma vendida judicialmente pertencia ao 1º R., executado nos autos de execução mencionada, o pedido de anulação com fundamento na venda de bens que não pertenciam ao executado, nos termos do artº 803º, nº 1, d), do CPC, devia cingir-se a metade da fracção autónoma. Assim, é manifesto que a pretensão da A. não pode proceder.
Além disso, atento o disposto no artº 394º, nº 2, do CPC, nem pode este Tribunal proceder ao indeferimento liminar parcial do pedido.
Em segundo lugar, o bem não estava registado em regime de compropriedade a favor dos 1 º e 2ª RR. como pretende a A.. Trata-se de um bem comum dos 1 º e 2ª RR. sujeita ao regime do artº 709º do CPC e não ao do artº 710º do mesmo Código. Portanto, não se vislumbra obstáculo, à priori, na venda do bem em questão. Além disso, uma vez que a penhora já estava registada em 10 de Novembro de 2003, nos termos dos artºs 2º e 5º do CRP, a mesma é oponível à A. que registou a sua aquisição posteriormente em 20 de Novembro de 2003. Perspectivando a questão a partir da aquisição feita pela A., verifica-se que a venda judicial não está enfermada do vício imputado por a aquisição da A. ser ineficaz em relação ao exequente nos termos do artº 809º do CC. Assim, é manifesto que a pretensão da A. não pode proceder.
Nestes termos, indefiro liminarmente a p.i.”.
***

III- O Direito
A autora, aqui recorrente, intentou a acção no TJB alegando ser dona da fracção imobiliária identificada na respectiva petição inicial. E no final do articulado inicial pediu:
1 - Seja declarada sem efeito a venda judicial que dela foi feita no âmbito da execução n. CV2-01-0008-CEO, por violação dos arts. 704º, 710º, 802º e 803º, do CPC;
2- E se condene os RR a reconhecerem o seu direito de propriedade sobre a coisa, em virtude a penhora e a respectiva venda judicial terem recaído sobre um bem imóvel:
a) Do qual foram comproprietários não só o executado B, como também a esposa C, que não era parte na execução;
b) E que antes da venda judicial fora por si mesma comprado a B e mulher através de escritura pública de 19/11/2003.
O despacho liminar sob escrutínio partiu da ideia de que a petição inicial é inepta, por contradição entre pedido e causa de pedir e por manifesta improcedência do pedido.
Para assim concluir, o Exm.o Juiz “a quo” afirmou:
“Com efeito, ao alegar que apenas metade da fracção autónoma vendida judicialmente pertencia ao 1º R, executado nos autos de execução mencionada, o pedido de anulação com fundamento na venda de bens que não pertenciam ao executado, nos termos do art. 803º, n.1, al. d), do CPC, devia cingir-se a metade da fracção autónoma. Assim, é manifesto que a pretensão da A. não pode proceder”.
Não concordamos com esta afirmação, por duas ordens de razões:
Em primeiro lugar, a autora não invocou que a coisa apenas pertencia pela metade ao executado. O que disse é que a fracção autónoma em apreço não pertencia unicamente a B (executado), mas que dela também era comproprietária a sua mulher C (não executada). Por isso, a penhora não podia incidir sobre a totalidade da fracção.
Depois, o que a autora acrescentou foi que, tendo ela mesma adquirido a totalidade da fracção, ao menos o seu direito sobre a quota de metade indivisa derivada de C (porque não executada) seria oponível à penhora em causa.
Por aqui se vê que não há qualquer contradição entre pedido e causa de pedido. Para a autora, a penhora e venda foram ilegais, por ofensa das disposições que cita. Independentemente da razão que possa ter, a impetrante entendia que, estando o prédio em regime de compropriedade, a invalidade atingia toda a venda judicial e não apenas parte dela. Aliás, até se percebe que, na sua perspectiva, toda a venda fosse dada sem efeito, na medida em que, por detrás daquele invocado pressuposto de (in)validade, está também uma causa de pedir que assenta numa compra e venda de toda a fracção que a autora considera ser totalmente válida e eficaz.
Não se acompanha, portanto, a fundamentação vertida na primeira parte do despacho.
*
Mas, para o M.mo juiz da 1ª instância, havia ainda uma outra causa para o indeferimento.
Disse: “Em segundo lugar, o bem não estava registado em regime de compropriedade a favor dos 1 º e 2ª RR. como pretende a A.. Trata-se de um bem comum dos 1º e 2ª R, sujeito ao regime do artº 709º do CPC e não ao do artº 710º do mesmo Código. Portanto, não se vislumbra obstáculo, à priori, na venda do bem em questão. Além disso, uma vez que a penhora já estava registada em 10 de Novembro de 2003, nos termos dos artºs 2º e 5º do CRP, a mesma é oponível à A. que registou a sua aquisição posteriormente em 20 de Novembro de 2003. Perspectivando a questão a partir da aquisição feita pela A., verifica-se que a venda judicial não está enfermada do vício imputado por a aquisição da A. ser ineficaz em relação ao exequente nos termos do artº 809º do CC. Assim, é manifesto que a pretensão da A. não pode proceder”.
No trecho acabado de reproduzir estão vertidos dois fundamentos: um, ligado à natureza do regime de propriedade que os RR B e C detinham sobre a fracção imobiliária; outro, referente à eficácia do registo.
Analisemo-los separadamente.
i) A respeito do primeiro, a razão está claramente do lado do digno julgador. Foi, aliás, esta questão já debatida no âmbito do Recurso Jurisdicional n. 155/20071 em termos que julgamos aqui totalmente aplicáveis sem necessidade da mais pequena alteração. Motivo pelo qual, com o devido respeito, reproduzimos o que lá exarámos (incluindo as respectivas anotações em rodapé):
“É a este segundo normativo que a recorrente se segura para defender a impossibilidade de penhora da fracção em apreço, com o argumento de que ela era compropriedade de B (executado) e sua esposa (não executada).
Ora, acontece que nem o alcance do artigo 710º é aquele que a recorrente parece conferir-lhe, nem a sua previsão se adequa ao caso sub judice.
Na realidade, o que o art. 710º proíbe é que, estando a coisa em regime de compropriedade em bens indivisos, na execução movida contra um dos comproprietários possam ser penhoradas partes especificadas dela2. Isto porque cada um deles é titular de um direito sobre a própria coisa, ainda que apenas corresponda sobre uma quota ideal dela . Nesse caso, o que se penhora é a quota ideal que cada um deles tem sobre o bem. A proibição legal compreende-se, assim, como forma de se impedir que a penhora recaia sobre bens de terceiro, retius, sobre bens do comproprietário. Logo, pode penhorar-se o direito ideal do executado sobre a coisa indivisa, não uma parte materialmente determinada3.
Todavia, este regime de penhora, exceptuada a situação de cônjuges casados em regime de separação de bens, caso em que os bens se situam numa relação de compropriedade4, já não se aplica aos casos em que esse regime é de comunhão (geral ou de adquiridos).
Na verdade, na constância de um casamento em que vigore o regime de comunhão de bens (geral ou de adquiridos), os cônjuges não são titulares de nenhuma “meação” sobre os bens determinados que integram essa comunhão. Em tal situação “os bens do casal não são necessariamente de um ou de outro cônjuge, nem pertencem a ambos em compropriedade – são antes «bens comuns» que “constituem uma massa patrimonial (…) que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela”5. São bens que se encontram numa situação de mão comum ou de património colectivo6, passando a compropriedade em caso de cessação da comunhão conjugal7 8
Importa então que se sublinhe este aspecto: a co-titularidade de bens na constância de um casamento assume características de comunhão ou de compropriedade, consoante o regime de bens por que ele se rege. Se a situação for enquadrável no primeiro dos casos, imperará o art. 709º, do CPC; se subsumível ao segundo, o regime será o do art. 710º, do CPC.
Efectivamente, o Código de Processo Civil de Macau - depois de vicissitudes várias verificadas ao longo de um percurso legislativo histórico na correspondente disposição do texto português (art. 825º) - veio permitir que na execução movida contra um dos cônjuges possam ser penhorados bens comuns do casal, desde que o exequente, ao nomeá-los à penhora, requeira a citação do outro cônjuge para requerer a separação de bens. Fê-lo no art. 709º em moldes tais que não deixam margem para dúvidas: À penhora de bens comuns do casal é condição suficiente um mero requerimento do exequente no sentido da citação do cônjuge não executado para pedir a separação de bens.
O objectivo desta divisão de bens é claro. Tem em vista proporcionar ao cônjuge não executado, por via da partilha, a possibilidade de pôr termo à comunhão e assim acautelar a sua posição jurídica perante os bens: se ficarem adjudicados a si, a penhora deixa de prevalecer e serão, então, nomeados outros que ao executado tenham cabido; se couberem ao executado, a penhora mantém-se e a execução prossegue sobre eles (art. 709º, n.2, CPC).
Mas se o cônjuge citado com aquele objectivo nada fizer, a execução prossegue nos bens penhorados até à venda9 (art. 709º, n.2, in fine).
Revertendo ao caso em análise, e uma vez que o executado B era casado com C em regime de comunhão de adquiridos (v.g., doc. Fls. 5, do 1º apenso), a fracção penhorada era um bem comum do casal que, ao abrigo do art. 709º do CPC, podia ser penhorado desde que fosse pedida a separação de bens pelo exequente, o que foi feito. Quer isto dizer que o artigo 704º invocado pela recorrente não serve os seus propósitos.
E por ser assim, mais ainda pelo facto de a mulher do executado não ter vindo requerer a separação de bens, podia a execução prosseguir até à fase da venda, como aconteceu. O que, por outras palavras vale por dizer, que nem a penhora é inválida, nem a venda tem que ser dada sem efeito, em virtude de os artigos 802º e 803º do CPC não terem aqui aplicabilidade”.
Cremos que a transcrição efectuada nos liberta de adicional fundamentação para manter o despacho incólume nessa parte.
-
Mas o mesmo despacho ainda chama à colação a circunstância de o registo da penhora (10/11/2003) ter sido anterior ao registo da compra que a recorrente dela fez directamente ao executado B.
A questão colocada assim remete-nos para as disposições legais que conferem direitos emergentes do registo. É o caso dos arts. 809º e 812º, n.1, ambos do Cod. Civil, o primeiro dos quais estabelece que “Sem prejuízo das regras do registo, são ineficazes em relação ao exequente os actos de disposição ou oneração dos bens penhorados” e o segundo prescreve que “Salvo nos casos especialmente previstos na lei, o exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior”. E até mesmo do art. 814º, n.2, do mesmo Código, que estatui que “Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de….penhora…., com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros, independentemente de registo”.
Ora, à luz destas normas, e visto que o Banco exequente, aqui recorrido, registou a penhora antes da aquisição que a recorrente fez da fracção, parece que a sua posição jurídica substantiva está absolutamente salvaguardada pela precedência registral, a menos que a penhora tivesse sido inválida, o que, como já vimos, não sucede. Quer dizer, a venda que o executado fez da coisa à ora recorrente é ineficaz em relação ao exequente.
-
Vistas as coisas por este prisma, somos levados a dizer que o despacho não infringiu quaisquer normas e, por isso, deve ser mantido na ordem jurídica. Com efeito, embora ele não tenha carácter resolutório do litígio, ou seja, não tenha “decidido o direito” invocado, por não ter feito uma apreciação definitiva e decisória da questão controversa, a verdade é que a análise que ainda assim fez do direito substantivo, coincidente com a nossa, como se viu, é de molde a concluir que a acção seria manifestamente improcedente. Na verdade, se a acção visa a anulação da venda judicial a coberto do art. 710º do CPC, mas baseada em factos que se subsumem ao art. 704º do mesmo Código, é evidente que a pretensão não poderá jamais proceder. Circunstância que cai na alçada da previsão do art. 394º, n.1, al. b), do CPC. E por isso nenhum reparo o despacho recorrido nos merece.
***

IV- Decidindo
   Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando o despacho recorrido. Custas pela recorrente.
   
   TSI, Macau, 07/04/2011


_________________________
José Cândido de Pinho
(Relator)

_________________________
Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)

_________________________
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)

1 Só não se pode falar em litispendência entre causas, nem em caso julgado, porque o objecto da censura é diferente em ambos os processos, embora a matéria fundamentativa seja parcialmente coincidente: além, estava em crise um despacho que indeferira o pedido de declaração de invalidade da penhora recaída sobre a fracção, proferido na execução para pagamento de quantia certa movida pelo Banco D contra F, construção civil e fomento predial, limitada e contra G e B; aqui, o que se ataca a penhora e a venda realizadas.
2 Lebre de Freitas, CPC anotado, vol. 3º, pag.371/372. O que aliás bem se compreende à luz dos artigos 1301º e 1307º, do Cod. Civil de Macau, preceitos dos quais resulta que os comproprietários exercem em conjunto todos os direitos que pertencem ao proprietário singular e que cada um, separadamente, não pode, sem consentimento dos restantes, alienar, nem onerar parte especificada da coisa.
3 F. Amâncio Ferreira, in Curso de Execução, 7ª ed., Almedina, pag. 188/189.
4 F. Amâncio Ferreira, ob. cit., pag. 182.
5 Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in Curso de Direito de Família, pag. 367 e 507. Neste sentido, ainda, o Ac. STJ de 6/11/2008 P. 07B4517.
6 Mota Pinto, in Direitos Reais, 1971, pag. 258.
7 Ac. do STJ, de 19-1-95, www.dgsi.pt, JSTJ00029845; RC, de 12-11-2002, www.dgsi.pt, JTRC01830; RL, de 30-11-90, www.dgsi.pt, JTRL00002566.
Também, ac. R.C. de 12/02/2008, P. 133-B/1999 e T.S.I. de 27/05/2010, P. 521/2009.
8 Por isso se diz que “I -Extinto o casamento, a situação de comunhão matrimonial de bens existente entre os cônjuges finda, passando os bens à situação de compropriedade, a cujo regime ficarão sujeitos. II - Deste modo, finda a comunhão conjugal, já não será aplicável à penhora de bens comuns o disposto no artigo 825 do Código de Processo Civil, mas sim o regime do precedente artigo 824, segundo o qual pode penhorar-se o direito do executado relativo a uma universalidade indivisa ou a outros bens indivisos, mas não podem penhorar-se os próprios bens compreendidos na universalidade, ou uma fracção de qualquer deles, nem uma parte especificada dos bens indivisos, a não ser que a execução seja instaurada contra todos os comproprietários (Ac. R.P. de 18/09/97. P RP199709189730730). No mesmo sentido, o acórdão da R.P. de 30/06/94 P. RP199406309450290; Ver ainda ac. R.L. de 25/06/2009, P. 2811-E/1993.
9 Neste sentido, ver ac. do TSI de 27/05/2010, Proc. 521/2009.
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