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Processo nº 44/2011 Data: 31.03.2011
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “tráfico de estupefacientes”, “detenção de estupefacientes para consumo” e “detenção de utensilagem”.
“In dúbio pro reo”.
Concurso de crimes.
Atenuação especial da pena.



SUMÁRIO

1. O vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão apenas ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo.

2. “O princípio “in dúbio pro reo” identifica-se com o da “presunção da inocência do arguido” e impõe que o julgador valore sempre, em favor dele, um “non liquet”.
Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dúbio pro reo”, decidir pela sua absolvição.
Porém, importa atentar que o referido o princípio (“in dubio pro reo”), só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”.
Daí também que, para fundamentar essa dúvida e impor a absolvição, não baste que tenha havido versões dispares ou mesmo contraditórias, sendo antes necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador - e não no do recorrente - alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que, como se referiu, há-de ser “razoável” e “insanável”.”

3. “Ainda que ao arguido não tenha sido apreendida droga, nem se tenha apurado a quem vendeu, em que quantidades, a que preço, ou quantas vezes, pode o seu comportamento ser enquadrado como a prática de um crime de “tráfico de estupefacientes em quantidades não diminutas”.
Com efeito, é irrelevante que não se tenha apurado no inquérito e no julgamento, a quem iria o arguido vender o produto, quando, em que local, etc, uma vez que tal circunstancialismo não integra os elementos objectivos do tipo criminal em questão.
De facto, o crime de tráfico de estupefaciente é um crime de perigo abstracto ou presumido, para cuja consumação não se exige a existência de 1 dano real e efectivo, bastando pois a simples criação de perigo ou risco de dano para o bem protegido”.

4. A atenuação especial da pena apenas deve ocorrer em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, ou seja, quando a conduta em causa “se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.


O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo




Processo nº 44/2011
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A e B, com os sinais dos autos, responderam perante o Colectivo do T.J.B. (como 1° e 2° arguidos).

Realizado o julgamento, proferiu-se Acórdão com o dispositivo seguinte:
“Nos termos expostos, o Tribunal Colectivo julga a acusação parcialmente procedente e provada e, em consequência:
- absolve o 1º arguido A do crime de produção e tráfico de menor gravidade p. e p. na al. 1) do nº 1 do artigo 11 da lei nº 17/2009, conforme o princípio in dúbio pró re.
- condena o 1º arguido na pena de quatro anos e cinco meses de prisão pela prática de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas p. e p. no nº 1 do artigo 8º da Lei nº 17/2009.
- condena o 1º arguido na pena de quarenta e cinco dias de prisão pela prática de um crime de consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas p. e p. no artigo 14º da Lei nº 17/2009.
- condena o 1º arguido na pena de quarenta e cinco dias de prisão pela prática de um crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento p. e p. no artigo 15º da Lei nº 17/2009.
Em cúmulo, condena o 1º arguido na pena única de quatro anos e seis meses de prisão efectiva.
- condena a 2ª arguida B na pena de quatro anos e três meses de prisão efectiva pela prática de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas p. e p. no nº 1 do artigo 8º da Lei nº 17/2009.
(…)”; (cfr., fls. 1111 a 1113-v e 1191 a 1194, que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformados, os arguidos recorreram.

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Na sua motivação produz o (1°) arguido as conclusões seguintes:
“(i) Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
1. O Tribunal a quo indicou na parte de incriminação que “o 1º arguido A encomendou, no dia 30 de Outubro de 2009, de manhã, Metanfetamina com peso líquido de 3,533 gramas do Interior da China através da 2ª arguida B. Um quarto de tal droga (0,883 grama) destinava-se à venda à 3ª arguida C e o resto (2,650 gramas) ao seu consumo e venda a terceiros, sendo imprecisa a quantidade da parte destinada à venda. Embora a quantidade não seja precisa e conforme a explicação favorável ao arguido, a quantidade da droga destinada ao fornecimento a outrem já ultrapassa, sem dúvida, a quantidade de referência de uso diário (1g. por cinco dias) prevista na Lei nº 17/2009.”
2. Não está esclarecido que o resto da Metanfetamina era destinado ao consumo próprio ou ao fornecimento a terceiros, existindo uma dúvida razoável.
3. Não foi concretamente confirmado, quer no relatório de seguimento e as escutas telefónicas constantes dos autos, quer na matéria de factos provados pelo Tribunal a quo, que o recorrente já vendeu ou intencionou vender o resto do referido produto estupefaciente.
4. O recorrente tinha hábito de consumir drogas. Conforme o princípio in bubio pró reo e a explicação razoável e favorável ao recorrente: o arguido comprou três quartos da Metanfetamina para o consumo dele.
5. Apenas foi dado como provado o facto da venda à 3ª arguida da Metanfetamina de 0,833 g., o que deve constituir apenas um crime de “produção e tráfico de menor gravidade”.
6. No entanto, o acórdão recorrido concluiu, sem factos provados e sem dúvida, que a Metanfetamina de 2, 650 g e a de 0,883 g (que foi vendida à 3ª arguida), no total de 3,533 g, era destinada à venda a outrem e acusou o recorrente de cometer um crime de “consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, por qual padece o acórdão do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e violando o artigo 114º do CPP e o princípio in dúbio pró reo.
7. O nº 1 do artigo 418º do CPP prevê: “Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 400.º, não for possível decidir da causa, o tribunal a que o recurso se dirige determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.”
8. Por isso, não deve, presentemente, condenar o arguido pela prática de um crime de “tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas” p. e p. no nº 1 do artigo 8º da Lei nº 17/2009.
9. Caso os Srs. Drs. Juízes não assim entendam, o recorrente invoca os seguintes fundamentos:
(ii) Pena demasiada pesada
10. O recorrente entende que a pena que lhe foi aplicada (4 anos e 6 meses de prisão efectiva) pelo Tribunal a quo é demasiada pesada.
11. O Tribunal a quo não observou os dispostos nos nºs 1 e 2, al. c) do artigo 66º do Código Penal, violando os dispostos na mesma norma.
12. Mesmo que o Tribunal a quo entendesse não existir circunstâncias atenuantes no caso do recorrente, a aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, conforme dispõe o artigo 40º do CP.
13. Na determinação da medida da pena, o artigo 65º do CP prevê que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal, ao mesmo tempo, o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
14. Solicita aos MMºs Juízes do Tribunal de Segunda Instância que determinem, de novo, a pena ao recorrente, condenando-o numa pena mais leve.
15. Há lugar à atenuação da pena caso se analise objectivamente a natureza do crime cometido pelo arguido, sendo adequado condenar o mesmo na pena de 3 anos e 6 meses de prisão.”; (cfr., fls. 1134 a 1139 e 1211 a 1228).

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Por sua vez, oferece a (2ª) arguida as conclusões seguintes:
“1. A recorrente não só confessou os factos acusados na audiência mas também aquando da intercepção pela PJ, conforme o depoimento da testemunha da acusação D.
2. A recorrente confessou de livre vontade e fora de qualquer coacção os factos que lhe foram imputados, o que manifestou sentimentos sinceros de arrependimento dela.
5. No entanto, quanto à confissão da arguida, mesmo que o Tribunal recorrido entendesse que ela mostrou uma melhor atitude, não considerou se ela mesmo ficou arrependida sinceramente ou não.
6. Pelo que o Tribunal a quo não atenuou especialmente a sua pena conforme dispõem os artigos 66°, n° 2, al. c), e 67°, n° 1, als. a) e b) do CP.
5. Portanto, o Tribunal recorrido violou os dispostos nos artigos 66°, n° 2, al. c), e 67°, n° 1, als. a) e b) do CP.
6. A recorrente é primária e tinha confessado logo o crime quando foi interceptada pela PJ, o que manifestou os sentimentos sinceros de arrependimento da arguida, devendo esta ser condenada numa pena mais leve.
7. O Tribunal recorrido condenou-a na pena de 4 anos e 3 meses de prisão efectiva, que é pesada de mais.
8. Pelo qual o acórdão recorrido violou os dispostos nos artigos 40° e 65° do CP.
9. Deve aplicar à recorrente uma pena menos de 4 anos e 3 meses de prisão efectiva.”; (cfr., fls. 1125 a 1132 e 1196 a 1210).

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Respondendo, pugna o Exm° Magistrado do Ministério Público pela confirmação do Acórdão recorrido; (cfr., fls. 1143 a 1147 e 1148 a 1150).

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Admitidos os recurso e remetidos os autos a este T.S.I., e em sede de vista juntou o Ilustre Procurador-Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Mostram-se ambos os recorrentes inconformados com a medida concreta das penas que lhes foram aplicadas, almejando a atenuação especial das mesma ou, pelo menos, a redução respectiva, esgrimindo ainda A com o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e afronta do principio "in dubio pro reo".
Mas, cremos, sem qualquer razão.
A persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar no sentido favorável ao arguido, impondo-se que o julgador valore sempre em favor dele, um "non liquet".
Porém, este princípio "in dubio pro reo " só actua em caso de dúvida razoável, motivável e insanável, exigindo-se, assim, para a violação respectiva, que se demonstre que o julgador, após a produção da prova, detendo réstea desse espírito, decida em desfavor desse arguido.
No caso, almeja o recorrente A o atropelo do aludido princípio por, em seu critério, " Embora a droga detida pelo recorrente seja um facto importante, não foi concretamente confirmado, quer no relatório de seguimento e as escutas telefónicas constantes dos autos, quer na matéria de facto provada pelo tribunal a quo, que o recorrente já vendeu ou tencionou vender o resto do referido produto estupefaciente", alegando ainda a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada por se não ter logrado apurar, em concreto e com rigor, qual a quantidade de estupefacientes detectados que aquele destinaria a consumo pessoal e para cedência a terceiros, ou, nas suas próprias palavras, "O acórdão recorrido não apurou qual a quantidade da droga destinada ao consumo pessoal, qual à venda, pelo exposto deve o processo ser reenviado para novo julgamento ".
Reportando-se o ilícito de tráfico de estupefacientes a crime de perigo abstracto ou presumido, não é exigível para a consumação respectiva a existência de dano real e efectivo, sendo suficiente a simples criação de risco para o bem protegido, designadamente, no caso, a saúde pública, na dupla vertente física e moral, bastando-se, assim, a lei com a aptidão que a conduta revele para a criação desse perigo.
Neste contexto, não se torna essencial o apuramento em julgamento da efectivação das vendas do produto, ou identificação dos eventuais "receptores" do mesmo, uma vez que tal se não revela integrador dos elementos objectivos do tipo criminal em causa, tanto mais que a norma incriminadora prevê e pune expressa e autónomamente a mera detenção ilícita de estupefacientes, não constituindo a venda dos mesmos a terceiros elemento típico essencial do crime de tráfico, razão por que se não pode fazer uso da eventual não prova dessa venda para tentar corporizar a persistência de qualquer dúvida razoável àcerca da prática do ilícito.
Por outra banda, tendo-se, no caso, além do mais, dado como provado que, na posse do arguido em questão foi detectada a existência de Metanfetamina, como peso de de 3,533 gr, da qual 1/4 se destinava à venda à co-arguida C e o resto a posterior venda a terceiros e ao seu consumo pessoal, correspondendo aquele peso a mais de 17 vezes a quantidade de referência de uso diário de 0,2 gr, não carecia o tribunal, melhor dizendo, não estava este vinculado, para a imputação empreendida, a apurar, com rigor, dentro da restante droga apreendida, qual a quantidade específica destinada para consumo próprio e para cedência a terceiros, uma vez que a quantidade de estupefacientes acima assinalada se revela, por si só, suficiente para a afirmação do ilícito p.p. pelo acta 8°, n° 1 da Lei 17/2009, inexistindo, assim, qualquer lacuna no apuramento da matéria de facto provada, a revelar insuficiência para a fundamentação da decisão proferida.
Quanto à medida concreta das penas aplicadas, não vemos como, com base exclusivamente na confissão dos recorrentes (de valor algo diminuto, atentas as circunstâncias específicas em que a situação foi detectada), da contrição daí decorrente e do facto de ambos serem primários em Macau, se possa alcançar a almejada atenuação especial das penas, inexistindo, em boa verdade, a demonstração de quaisquer circunstâncias anteriores ou posteriores ao cometimento dos ilícitos ou com estes contemporâneos que diminuam, de forma acentuada, a ilicitude dos factos, a culpa dos agentes ou a necessidade das penas.
Assim sendo, revelando-se, em nosso critério, como justas, adequadas e proporcionadas as penas concretamente aplicadas a cada um dos ilícitos imputados a cada um dos recorrentes, bem como a dosimetria usada no cúmulo operado (no caso do recorrente A), afigura-se-nos ser de manter as mesmas, não merecendo provimento o presente recurso.”; (cfr., fls. 1252 a 1254).

*

Passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos
2. Deu o Colectivo a quo como provados os factos seguintes:
“1. A partir de Outubro de 2009, os arguidos A e B exerciam actividades de tráfico de droga em Macau em conjunto com um homem do Interior da China e, ao mesmo tempo, o arguido A consumia também droga.
2. Geralmente, o A contactava o referido homem do Interior da China quando alguém ou ele precisou de droga e o homem exigia à arguida B para levar a droga do Interior da China para Macau para o A.
3. A 30 de Outubro de 2009, de manhã, a arguida C ligou com o seu telemóvel nº 6254XXXX para o telemóvel nº 6616XXXX do A a fim de encomendar MOP500,00 de droga.
4. Posteriormente, o A contactou o homem do Interior da China pedindo RMB2.000,00 de droga.
5. Às 12H58 do mesmo dia, organizado pelo homem do Interior da China, o A encontrou-se com a B à entrada do Hotel XXX e entregou-lhe RMB2.000,00 para esta comprar droga ao dito homem do Interior da China e trazê-la para Macau para ele.
6. Às 13H02 do mesmo dia, a B, munida do dinheiro, apanhou o shuttle bus do dito hotel para o Posto Fronteiriço das Portas do Cerco, saindo de Macau para o Interior da China às 13H31 do mesmo dia.
7. Às 14H27 do mesmo dia, após adquirido a droga no Interior da China a B entrou no território de Macau através do Posto Fronteiriço das Portas do Cerco e deslocou-se ao Hotel XXX do shuttle bus do mesmo.
8. Às 14H53 do mesmo dia, à entrada do dito hotel, a B entregou a droga que adquiriu no Interior da China ao A que estava lá à espera dela. Neste mesmo momento o pessoal da Polícia Judiciária interceptou os dois.
9. Os agentes da PJ encontrou in logo uns cristais brancos embrulhados num lenço e um telemóvel na mão direita do A (vide os autos de revista e apreensão à fl. 563 dos autos).
10. Sujeitos a exame laboratorial revelou-se que os cristais brancos continham Metanfetamina com peso líquido de 4,971 gramas, substância abrangida na Tabela II-B do Lei nº 17/2009 (após análise quantitativa, verificou-se a Metanfetamina em 71,08%, no peso líquido de 3,533 gramas).
11. A droga referida foi a que a B comprou naquele mesmo dia no Interior da China e que trouxe para Macau para entregar ao A.
12. O A adquiriu e deteve a dita droga, destinando um quarto da droga (no valor de MOP500,00) à venda à arguida C e o resto à posterior venda a terceiros e ao seu consumo.
13. O telemóvel encontrado na posse do A pelos agentes da PJ era o meio de comunicação utilizado pelo mesmo para contactar as arguidas B e C nas transacções da droga.
14. Por outro lado, os agentes da PJ encontraram na posse da B um telemóvel, dois cartões telefónicos e RMB200,00 em numerário (vide o auto de apreensão à fl. 590 dos autos).
15. Tal telemóvel foi usado pela B para contactar o A no transporte da droga e o dinheiro foi recebido do homem do Interior da China como a remuneração para o transporte do produto estupefaciente.
16. No mesmo dia, os agentes da PJ efectuou uma busca domiciliária na residência do A que se situou em Macau, XXXX, Bloco II, XXº andar – X, na ZAPE. Na altura, a arguida C estava à espera do A no quarto deste com objectivo de levantar a droga que ela encomendou.
18. Os agentes da PJ encontraram na parte cima do roupeiro no quarto da casa do A 41 saquinhos plásticos transparentes; no roupeiro uma palhinha com vestígios e um papel de alumínio; na gaveta do toucador uma faca com cabo amarelo, um isqueiro, um tubo de vidro, um índice telefónico e uma balança electrónica; em cima do toucador um papel de alumínio e uma garrafa plástica transparente com líquido e duas palhinhas no seu interior; no sofá um isqueiro; no chão em frente do armário de TV uma tampa branca de garrafa plástica; e no espaço entre o roupeiro e o armário de TV um saco plástico transparente de cor azul e dois sacos plásticos transparentes com vestígios (vido os autos de busca e apreensão às 566 a 567 dos autos)
19. Após o exame laboratorial, verificou-se que o líquido de 185 ml. na garrafa plástica continha cocaína e Metanfetamina, substâncias abrangidas, respectivamente, nas Tabelas I-B e II-B da Lei nº 17/2009. A palhinha e os dois sacos plásticos transparentes também tinham vestígios da Metanfetamina.
20. O líquido em causa foi encomendado pelo A a uma pessoa de identidade desconhecida que se destinava ao seu consumo pessoal.
21. As palhinhas, papel de alumínio, isqueiro, tubo de vidro, tampa de garrafa plástica eram utensílios para o consumo de droga detidos pelo A.
22. Os sacos plásticos transparentes, balança electrónica eram utensílios detidos pelo A para embalar e pesar drogas.
23. O agente da PJ revistou a arguida e encontrou o telemóvel (nº 62544698) que foi usado por ela para encomendar a droga ao A.
24. Posteriormente, os agentes da PJ deslocaram-se à residência da arguida C que se situou em Macau, na Avenida do Dr. Rodrigo Rodrigues, Edf. XXX, Xº andar – X, no sentido de efectuar busca domiciliária, na qual encontraram em cima de uma cama uma garrafa plástica transparente com duas palhinhas de cor laranja e de cor amarela, respectivamente, no seu interior, duas palhinhas (uma das quais estava com papel de alumínio) e um saco de cristais brancos; em cima da outra cama um saco plástico preto contendo um rolo de papel de alumínio e 69 palhinhas coloridas; e uma folha de papel de alumínio numa revista colocada no chão (vide os autos de busca e apreensão à fl. 623 dos autos).
25. Sujeitos a exame laboratorial revelou que os cristais brancos continham Metanfetamina com pesa líquido de 0,210 grama, substância abrangida na Tabela II-B da Lei nº 17/2009, (após análise quantitativa, verificou-se a Metanfetamina em 73,83%, no peso líquido de 0,155 grama). A garrafa plástica transparente com as palhinhas de cores laranja e amarela no seu interior e o papel de alumínio tinham vestígios de Metanfetamina. As duas palhinhas (uma das quais estava com papel de alumínio) mancharam-se das substâncias de Metanfetamina, Anfetamina e N,N-dimetanfetamina abrangidas na Tabela II-B da mesma lei.
27. A arguida C adquiriu e deteve a droga em causa para o seu consumo pessoal.
28. A dita garrafa plástica com palhinhas, as palhinhas e o papel de alumínio eram utensílios para o consumo de droga detidos pela C.
29. Os arguidos A, B e C Conheciam bem a natureza e as características das referidas drogas.
30. Os três arguidos agiram livre, voluntaria, consciente e dolosamente.
31. A conduta dos três arguidos não foi autorizada por lei.
32. Os três arguidos sabiam bem que a sua conduta era proibida e punida por lei.
33. O arguido A praticou a conduta descrita durante a sua permanência ilegal em Macau.
Provaram-se, ainda, os seguintes factos:
Segundo o registo criminal, os três arguidos não têm antecedentes criminais em Macau.
O 1º arguido A alegou sem ter emprego antes de ser preso privativamente e não ter ninguém a seu cargo. Concluiu a escola primária.
A 2ª arguida B alegou não ter emprego. O seu marido e filhos vivem em Macau. Tem a seu cargo os dois filhos. Tem o 8º ano de escolaridade.
A situação pessoal e económica da 3ª arguida é desconhecida.”; (cfr., fls. 1106-v a 1108-v e 1175 a 1182).

Do direito

3. Dois são os recursos trazidos à apreciação deste T.S.I..
O primeiro pelo (1°) arguido A, imputando ao Acórdão recorrido o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, violação do princípio “in dúbio pro reo” e considerando ainda que excessiva é a pena que lhe foi aplicada.

O segundo, pela (2ª) arguida B, afirmando apenas que excessiva é pena de 4 anos e 3 meses em que foi condenada, e assacando ao Acórdão recorrido a violação do art. 65° e 66° do C.P.M..

Vejamos.

3.1. Do recurso do (1°) arguido A.

— Comecemos pelo assacado vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”.

Pois bem, é sabido que o vício em questão apenas ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo; (cfr., v.g., o Acórdão de 24.02.2011, Proc. n.°785/2010).

E, no caso dos presentes autos, assim não sucedeu.

Como se pode constatar do Acórdão recorrido, o Colectivo a quo emitiu pronúncia sobre toda a matéria objecto do processo, pois que elencou a factualidade provada e a que não se provou, fundamentando também adequadamente esta sua decisão.

Assim, evidente é que inexiste o vício em questão.

— Quanto ao “princípio in dúbio pro reo”.

Em recente acórdão deste T.S.I. consignou-se que:
“O princípio “in dúbio pro reo” identifica-se com o da “presunção da inocência do arguido” e impõe que o julgador valore sempre, em favor dele, um “non liquet”.
Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dúbio pro reo”, decidir pela sua absolvição.
Porém, importa atentar que o referido o princípio (“in dubio pro reo”), só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”.
Daí também que, para fundamentar essa dúvida e impor a absolvição, não baste que tenha havido versões dispares ou mesmo contraditórias, sendo antes necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador - e não no do recorrente - alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que, como se referiu, há-de ser “razoável” e “insanável”.”;(cfr., Ac. de 20.01.2011, Proc. n° 991/2010, do ora relator).

E no que toca ao vício em questão, afirma o ora recorrente que “o acórdão recorrido concluiu, sem factos provados e sem dúvida, que a Metanfetamina de 2, 650 g e a de 0,883 g (que foi vendida à 3ª arguida), no total de 3,533 g, era destinada à venda a outrem e acusou o recorrente de cometer um crime de “consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, por qual padece o acórdão do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e violando o artigo 114º do CPP e o princípio in dúbio pró reo”;(cfr., concl. 6ª).
Ora, está provado que desde Outubro de 2009 que o ora recorrente e a (2ª) arguida B exerciam actividades de tráfico de estupefacientes com 1 indivíduo do Interior da China e que o ora recorrente também consumia estupefacientes.

Está igualmente (e em síntese) provado que, no dia 30.10.2009 a pedido do ora recorrente, a dita (2ª) arguida deslocou-se ao Interior da China, e com dinheiro fornecido pelo recorrente, (RMB$2,000.00), adquiriu 3,533 gramas de Metanfetamina que trouxe para Macau e que entregou ao ora recorrente, sendo que um quarto (1/4) desta quantidade de Ketamina era para ser vendida a C, e que os restantes três quartos (3/4) eram para posterior venda a terceiros e para o consumo do próprio recorrente.

Perante isto, e certo sendo que provado também ficou o “elemento subjectivo” do crime de “tráfico” e “consumo” em questão – vd. “matéria de facto” – cremos que adequada é a decisão no sentido que cometeu o arguido os ditos crimes.

Diz o recorrente que “não está confirmado que já vendeu ou pensava vender o resta da droga”.

Ora, também não é assim.

Está provado que 0,833 gramas de Metanfetamina eram para venda a C, e que a restante era para venda a terceiros e para o seu consumo.

E, no mesmo acórdão deste T.S.I. atrás referido (de 20.01.2011), teve-se também a oportunidade de afirmar que “Ainda que ao arguido não tenha sido apreendida droga, nem se tenha apurado a quem vendeu, em que quantidades, a que preço, ou quantas vezes, pode o seu comportamento ser enquadrado como a prática de um crime de “tráfico de estupefacientes em quantidades não diminutas”.
Com efeito, é irrelevante que não se tenha apurado no inquérito e no julgamento, a quem iria o arguido vender o produto, quando, em que local, etc, uma vez que tal circunstancialismo não integra os elementos objectivos do tipo criminal em questão.
De facto, o crime de tráfico de estupefaciente é um crime de perigo abstracto ou presumido, para cuja consumação não se exige a existência de 1 dano real e efectivo, bastando pois a simples criação de perigo ou risco de dano para o bem protegido.”.

Dito isto, e não se olvidando aqui a factualidade provada e que deu lugar à condenação do ora recorrente pelos (3) crimes a que atrás se fez referência, é o momento de consignar o que segue.

Verifica-se que foi também o ora recorrente condenado como autor e em concurso real de 1 crime de “detenção de estupefacientes para consumo” e de “detenção de utensilagem”, p. e p. pelos art°s 14° e 15° da Lei n.° 17/2009.

Ora, como na declaração de voto anexa no Acórdão hoje por este T.S.I. prolatado nos Autos de Recurso Penal n.° 81/2011 tivemos oportunidade de afirmar, adequado não é o assim decidido.

De facto, importa atentar que ambos os crimes visam tutelar essencialmente o mesmo bem jurídico – a saúde individual do consumidor – e, tal como na mencionada declaração que aqui se dá como reproduzida se referiu, importa ter em conta o afirmado aquando do debate na generalidade da então Proposta de Lei que após aprovada se converteu na Lei n.° 17/2009, (cfr., o Diário da Assembleia da R.A.E.M., I Série, n.° III – 100, página 17 e 18), mostrando-se assim de considerar que cometeu o ora recorrente o crime de “detenção de estupefacientes para consumo” em concurso aparente com o de “detenção de utensilagem”.

Nesta conformidade, ficando o ora recorrente apenas condenado pela prática do crime de “detenção de estupefacientes para consumo”, e sendo de se manter a pena de 45 dias de prisão aplicada por este ilícito, em cúmulo jurídico com a pena de 4 anos e 5 meses que lhe foi fixada pelo crime de “tráfico”, vai o mesmo condenado na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão.

–– Pede ainda o recorrente a atenuação especial de pena.

Adianta-se desde já que, em nossa opinião, nenhum motivo existe para se proceder a tal atenuação.
Vejamos.

No que toca à atenuação especial da pena, repetidamente tem este T.S.I. afirmado que tal atenuação apenas deve ocorrer em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, ou seja, quando a conduta em causa “se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo”, (cfr., v.g., o recente Ac. deste T.S.I. de 11.11.2010, Proc. n° 670/2010).

E onde, em que segmento da factualidade provada consta (ou pode-se extrair) matéria para se considerar que se está numa “situação excepcional” como a que se referiu?

Por sua vez, as penas parcelares e única apresentam-se-nos justas e equilibradas, em harmonia com as respectivas molduras penais e ao preceituado nos art°s 40°, 64°, 65° e 71° do C.P.M. e às necessidades de prevenção criminal.

Ociosas nos parecendo mais alongadas considerações, avancemos.

3.2. Do recurso da (2ª) arguida B.

Aqui, coloca apenas a recorrente a questão do excesso da pena.

Também pouco há a dizer.

Quanto à pretendida “atenuação especial”, e não obstante a sua confissão dos factos, há que atentar que a recorrente foi surpreendida em flagrante delito, pouco valor atenuativo tendo assim aquela mesma confissão.

E, nesta conformidade, dando-se aqui como reproduzido o que atrás se expôs sobre o entendimento por este T.S.I. tem assumido sobre a dita “atenuação especial”, evidente é que à mesma não se pode proceder.

Quanto à pena de 4 anos e 3 meses de prisão, sendo o crime de “tráfico” pela recorrente cometido punido com a pena de 3 a 15 anos de prisão, e prementes sendo as razões de prevenção deste tipo de crime, não se vislumbra margem para a pretendida redução.

Tudo visto, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos que se deixam expostos, e alterando-se oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo Colectivo a quo, acordam negar provimento aos recursos.

Pagará o recorrente A a taxa de justiça de 6 UCs e a recorrente B a taxa de justiça de 4 UCs.

Honorários a cada um dos Exm°s Defensores no montante de MOP$1,500,00.

Macau, aos 31 de Março de 2011

José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng (subscrevo a decisão de negação de provimento aos recursos, por ser de manter, nos seus precisos termos, a decisão condenatória recorrida, já que, aliás, entendo que não pode haver concurso aparente, mas sim concurso efectivo (real), entre o crime de detenção indevida de utensílio e o crime de consumo ilícito de estupefaciente, nos termos já vertidos no acórdão de hoje, do Processo n.º 81/2011).
Tam Hio Wa (vencida nos termos da declaração de voto junta em anexo)








Processo nº 44/2011 (Autos de recurso penal)
Data: 31/03/2011

Declaração de voto

Vencida por seguintes razões:

Conclua-se dos factos provados pelo colectivo do TJB de que da posse do recorrente A, 0,833 gramas de Metanfetamina eram para venda a C, e que a restante era para venda a terceiros e para o seu consumo.

Entendo que da referida matéria provada não se pode concluir que a quantidade de droga que o referido recorrente detinha e destinada para a venda a terceiros era superior a quantidade diminuta prevista na Lei nº 17/2009.

Pelo que existe o vício da insuficiência da matéria de facto provada e deve ser o processo reenviado para novo julgamento.

A Segunda Adjunta

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Tam Hio Wa
Proc. 44/2011 Pág. 34

Proc. 44/2011 Pág. 1