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Processo nº 992/2010 Data: 31.03.2011
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Acidente de viação.
Crime de “ofensa à integridade física por negligência”.
Erro notório na apreciação da prova.
“In dúbio pro reo”.
Pena alternativa.


SUMÁRIO

1. “O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”

“É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”.

2. “O princípio “in dúbio pro reo” identifica-se com o da “presunção da inocência do arguido” e impõe que o julgador valore sempre, em favor dele, um “non liquet”.
Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dúbio pro reo”, decidir pela sua absolvição”.

3. Sendo o arguido primário, e se com a sua conduta (negligente) causou lesões que apenas demandaram 3 dias doença ao ofendido, incorrendo assim na prática do crime de “ofensa à integridade física por negligência”, punido com pena de prisão ou multa, motivos não há para não se optar por uma pena não privativa da liberdade.

O relator,

______________________







Processo nº 992/2010
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. No T.J.B. respondeu A (XXX), com os sinais dos autos, vindo a ser condenada pela prática de um crime de “ofensa à integridade física por negligência”, p.p. pelo art.° 142° n.° 1 do C.P.M., conjugado com o art.° 93° n.°1 da Lei n.°3/2007 (“Lei do Trânsito Rodoviário”), na pena de 10 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e 6 meses, e de uma contravenção p.p. pelo art.º 37.º n.º 2 e 103°, n.°1 da mesma Lei, na multa de MOP$ 1.500,00, convertível em 10 dias de prisão caso não for paga e na de inibição de condução pelo período de 6 meses.

Em relação ao pedido de indemnização civil enxertado nos autos, decidiu o Tribunal condenar a demandada “Companhia de Seguros de XX, S.A.” no pagamento de MOP$ 727.00 a título de indemnização das despesas médicas da ofendida B e de MOP$ 8.000,00, a título de indemnização pelos seus danos não patrimoniais; (cfr., fls. 118 a 118-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformada a arguida recorreu.

Motivou para, afinal, oferecer a seguintes conclusões:

  (1) “Na decisão recorrida, o teor principal da sentença da recorrente é como no seguinte: “Condena a arguida A, pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência p.p. pelo art.º 142.º n.º 1 do Código Penal, conjugado com o art.º 93.º n.º 1 da Lei do Trânsito Rodoviário, na pena de 10 meses de prisão, com suspensão da execução da pena pelo período de 1 ano e 6 meses. ”
  (2) Na sentença recorrida, os art.ºs 2 e 3 dos factos provados já foram constantes nas fls. 1 e 2 da sentença recorrida; Na sentença recorrida, os factos não provados já foram constantes na fls. 2 da sentença recorrida. O método de provas é “A declaração prestada pela arguida na audiência, declaração prestada pela testemunha e documentação relativa ao caso, incluindo os relatórios médico-legais constantes nas fls. 23 e 24 dos autos.”
  (3) Para isso, salvo devido respeito,
  (4) A recorrente não se conformou com um crime de ofensa à integridade física por negligência condenado na sentença recorrida, pelo que, vem apresentar este recurso.
  (5) Em primeiro lugar, na sentença recorrida, julga-se que as partes de ferida da ofendida incluem a do ombro direito (sic.). Mas, na sentença recorrida, verifica-se somente que o veículo da recorrente embateu levemente no pé direito da ofendida. Ao mesmo tempo, também não se verifica que a ofendida foi embatida no chão.
  (6) Assim, não conseguimos ver que há conexão directa e necessária entre a ferida no ombro esquerdo e acidente de veículo.
  (7) Com certeza, os relatórios médico-legais constantes nas fls. 23 e 24 dos autos mostram que o ombro esquerdo da ofendida ficou ferido.
  (8) Dos dois relatórios supracitados, o parecer de médico-legal baseia-se da afirmação particular da ofendida.
  (9) Sendo assim, não se pode verificar, através os relatórios médico-legais, que há nexo de causalidade directo e necessário entre a lesão no ombro esquerdo da ofendida e este acidente de veículo.
  (10) Além disso, como a contusão causa necessariamente a ferida externa, vulgarmente designada por escoriação. Se classifique como torcedura está abrangido no juízo profissional de técnico (perito).
  (11) No relatório na fls. 23, quando a ofendida foi à consulta médica em 5 de Janeiro de 2009, mostrando somente dores no ombro esquerdo, mas sem dores na articulação de tornozelo; Para isso, se as lesões no ombro esquerdo não fossem causadas por acidente de veículo, o prazo de recuperação da ofendida deve ser de 1 dia, não ser de 3 dias na sentença.
  (12) Assim, as duas partes com distância longa relativamente no corpo humano ficam feridas simultaneamente apenas por causa de um embate leve, e determina-se a medida da pena com base nisso. A recorrente não se conformou com isso.
  (13) Por outro lado, no âmbito de anatomia, o maléolo (ou designado por articulação de tornozelo) é parte de ligação entre pé e perna, fazendo parte por sete osso do tarso, metatarso do pé e esqueleto da barriga da perna, sendo designado vulgarmente como “olho de pé”.
  (14) Conforme os relatórios médico-legais supracitados, a lesão no maléolo (ou designado por articulação de tornozelo) foi provocada por contundente, designada vulgarmente por escoriação.
  (15) Independentemente de sexo, depois de ficar adulto, quando uma pessoa está sentada ou de pé, distando geralmente 3 polegadas ou cerca de 10 centímetros do pavimento.
  (16) Os dados do ciclo-motor supracitado nos autos foram constantes nas fls. 13, 13V e 14 dos autos. Da foto constante na fls. 14, podemos ver que a roda dianteira do veículo não contacta com toda a área com corpo humano neste acidente de veículo. Quer dizer, apenas a parte dianteira deste veículo pode embater levemente na ofendida.
  (17) A distância do chão que a roda dianteira do veículo consegue embater levemente no corpo humano é de cerca de 7 a 9 polegadas (18cc até 23cc).
  (18) Além disso, a foto constante na fls. 18 dos autos mostra-se que o lugar do acidente de veículo ocorrido situa-se num pavimento plano sem superfície convexa ou côncava, apenas o pavimento de peões é alto um pouco à superfície de faixa de rodagem ou passagem.
  (19) A recorrente não pode entender que como é que a roda dianteira do veículo consegue embater levemente no maléolo direito da ofendida e resultar as contusões nos tecidos moles.
  (20) Também sabemos, ao apreciar as provas, deve pensar numa óptica de “in dúbio pró reo” quando encontra-se dúvida.
  (21) Assim, dos dados constantes nos autos, mesmo cidadão comum, também pode ver a contradição entre as provas (incluindo o teor material nos relatórios médico-legais) e os art.º 2 e 3 nos factos provados e os factos não provados. Isso também viola a regra de experiência geral.
  (22) Enquanto os factos provados e não provados também se servem de base principal da condenação e determinação da medida da pena.
  (23) Da decisão recorrida, não se entende correctamente as provas citadas supra na sentença recorrida, nem se classifica a sua credibilidade substancial e grau; Conforme as regras de experiência comum, também sabemos que há um nexo de causalidade adequado entre o assunto supracitado e factos e crimes acusados nesta acção. Quer dizer, se a recorrente deve ser absolvida dos crimes acusados, assim, também pode evitar o reenvio do processo ao Tribunal Judicial de Base para novo julgamento;
  (24) Pelo que, o Tribunal de Segunda Instância deve, depois de apreciar as provas constantes nos autos, declarar que ao apreciar as provas supracitadas, a sentença recorrida viola as regras de experiência comum e princípio básico do direito penal, “in dúbio pró reo”, há “vício de erro notório na apreciação da prova” nos termos do art.º 400.º n.º 2 al. c) do Código de Processo Penal. Pelo que, o Tribunal de Segunda Instância deve declarar a anulação da decisão recorrida;
  (25) O Tribunal de Segunda Instância declara que absolve a recorrente dos crimes por faltar de provas para verificar que a recorrente tinha praticado a ofensa à integridade física por negligência, devendo absolver a recorrente dos crimes;
  (26) Se o tribunal não entendesse assim, reenvie os autos ao Tribunal Judicial de Base e aprecia novamente os factos e crimes acusados indicados nos presentes autos.
  (27) Se assim não for entendido pelo tribunal, a recorrente ainda não se conformou com a determinação da medida da pena, apresentando os seguintes fundamentos;
  (28) A recorrente é delinquente primária, salvo o presente processo, a recorrente não tem nenhuma acção criminal pendente, nem outra diligência criminal a realizar, e a mesma também tinha conhecimento disso.
  (29) Esta acção é provocada pelo acidente de veículo, sendo ofensa à integridade física por negligência. Na altura, a recorrente já reduziu, pelo menos, a velocidade de veículo. Ao contrário, os factos provados não se verificam que foi embate leve na altura. Tal como a sentença recorrida, não causou resultado grave de acidente.
  (30) Assim, combinando com o art.º 65.º do Código Penal e considerando os factos supracitados e jurisprudência geral, deve condenar a recorrente na pena não superior a 6 meses de prisão. Nos termos do art.º 44.º n.º 1 do Código Penal, pode ser substituída pela multa.
  (31) Contudo, na sentença recorrida, condena a recorrente na pena de 10 meses de prisão. É manifestamente superior bastante a pena aplicada ao mesmo tipo de crime, também não se enquadrando com o espírito de legislação da determinação da medida da pena previsto no art.º 65.º do Código Penal.
  (32) A subjunção de facto ao direito é matéria jurídica.
  (33)Para isso, na determinação da medida da pena, a sentença recorrida viola o art.º 65.º do Código Penal, nomeadamente, n.º 2 al.s a) e b), existindo “o vício de interpretação errada da lei” previsto pelo art.º 400.º n.º 1 do Código de Processo Penal. Pelo que, deve declarar a ser anulada.
  (34) A recorrente entende que, combinando com os fundamentos supracitados e condições pessoais da recorrente, deve declarar a condenar a recorrente na pena não superior 6 meses de prisão, e nos termos do art.º 44.º n.º 1 do Código Penal, pode ser substituída pela multa.
  (35) Se assim não for entendido pelo tribunal, a recorrente entende que, nos termos do art.º 44.º n.º 1 do Código Penal, não proibiu a substituir a pena de 10 meses de prisão da recorrente por multa.
  (36) Combinando com as condições pessoais supracitadas da recorrente e matéria de facto referida na presente acção, deve permitir a substituição da pena de prisão por multa. No entanto, a sentença recorrida não se entende assim,
  (37) Pelo que, a recorrente entende que a sentença recorrida viola o art.º 44.º n.º 1 do Código Penal, há o vício de interpretação errada da lei previsto pelo art.º 400.º n.º 1 do Código de Processo Penal. Pelo que, deve declarar a ser anulada.
  (38) A recorrente entende que, combinando com os fundamentos supracitados e condições pessoais da recorrente, deve declarar a decidir permitir à recorrente a substituição da pena de prisão por multa, cujo valor concreto é fixado pelo tribunal.
  (39) Por fim, a recorrente pediu ao tribunal competente para pronunciar-se sobre a existência ou não do vício da ilegalidade que é de conhecimento oficioso e um julgamento justo”; (cfr., fls. 125 a 137 e 171 a 192).

Respondendo, diz o Exmo. Magistrado do Ministério Público:
“1. Conforme os factos provados, o veículo não embateu no ombro esquerdo da ofendida e a ofendida não caiu no chão por embate do ciclo-motor, mas, não pode excluir a possibilidade de que a lesão do ombro esquerdo foi provocada por embate. Na altura, a ofendida estava com bebé ao colo, com um peso determinado nas mãos, mais, como a ofendida estava nervosa no momento de ser embatida, para proteger o bebé, é possível que os tecidos moles do ombro fiquem com contusões na altura.
2. Como a possibilidade de causa de ferida é diversa, o médico-legal precisa de conhecer o contexto do processo e fazer perícia à ofendida antes de efectuar parecer profissional, e depois conclui a natureza, tipo e motivo das lesões.
3. No caso de ninguém pedir a nova perícia, este tribunal entende que não pode questionar os respectivos relatórios médico-legais por estes disporem de profissionalidade e valor especial que por lei lhe seja cometido.
4. A posição da lesão pode ser diferente devido à posição de embate diferente, a ofendida estava em frente, ou no nordeste, noroeste do ciclo-motor, poderá ter um efeito diferente, a posição da lesão deve ser diferente por ser diferente o ponto de embate.
5. Pelo que, no momento de que a arguida embateu na ofendida com ciclo-motor, conduzindo provavelmente à lesão do maléolo direito.
6. A recorrente fez várias “hipóteses ousadas” na petição de recurso para questionar que o nexo de causalidade entre a arguida e as lesões da ofendida não é objecto e não tem nenhuma razão, sendo puramente a sua opinião pessoal.
7. Tal como a jurisprudência do Processo n.º 16/2000 do Tribunal de Última Instância, “ora, o erro notório na apreciação da proa existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. E tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores. ”
8. Analisando os factos provados e não provados na sentença proferida pelo tribunal a quo, não foi descoberto que há situação incompatível entre factos provados, nomeadamente, os art.ºs 2.º e 3.º dos mesmos, e factos não provados.
9. Na apreciação das provas, o tribunal a quo apresentou o método de prova no juízo dos factos: “A declaração prestada pela arguida na audiência, declaração prestada pela testemunha e documentação relativa ao caso, incluindo os relatórios médico-legais constantes nas fls. 23 e 24 dos autos. ”
10. As provas supracitadas podem verificar objectiva, directa e justamente que a recorrente praticou o respectivo acto de ofensa por negligência, não existindo nenhum erro apresentado pela recorrente na apreciação da prova do tribunal a quo.
11. Não há nenhuma prova neste processo para levar com que o tribunal a quo tenha dúvida com o acto de ofensa da recorrente, portando, é improcedente que a recorrente indica que o tribunal a quo viola o princípio de “in dúbio pró reo”.
12. A recorrente estava a questionar o julgamento do tribunal a quo sobre os factos para mostrar as suas opiniões diferentes com o tribunal a quo, a fim de tentar questionar a livre convicção do juiz, isso não é permitido pela lei.
13. Na apreciação de provas, o tribunal a quo não viola nenhum princípio ou regras de experiência, pelo que, tal como a jurisprudência do Processo n.º 18/2010 do Tribunal de Segunda Instância, a recorrente não pode tentar ilidir a convicção formada pelo tribunal a quo com as suas opiniões pessoais.
14. Nestes termos, é improcedente a questão levantada pela recorrente.
15. O Processo n.º 684/2010 do Tribunal de Última Instância entende que, no aspecto da determinação da medida da pena, o tribunal deve observar o disposto do art.º 65.º do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal.
16. Quanto à culpa da recorrente, a recorrente, como condutora, deve ter mais conhecimentos sobre as regras de trânsito do que os que não tem qualificação de condução, quando conduz o veículo até a passagem, deve dar atenção a peões e deixar passar os peões, mas a arguida não reduziu a velocidade adequadamente para dar passagem à ofendida que estava com bebé ao colo na altura, como a arguida não parou oportunamente, causando que o ciclo-motor embateu no pé direito da ofendida. Além disso, o tribunal a quo ainda considera o factor importante de não confissão da recorrente.
17. Do aspecto de prevenção de crime, o crime cometido pela recorrente é comum em Macau, a razão principal é a consciência fraca de observância das regras de trânsito do condutor, muitos acidentes de veículo são provocados por não observância de regras de trânsito, cujo resultado pode ser muito grave, em cada ano acontecendo muitos acidentes com vítimas por não observância de regras de veículo, portanto, é necessário considerar a exigência de prevenção geral.
18. Considerando o grau de culpa da recorrente, natureza dos crimes cometidos, moldura da pena aplicável, situação concreta do caso e influência trazida para segurança de trânsito, e atendendo sinteticamente à necessidade de prevenção geral, entendemos que não é inadequado que o tribunal a quo condena a recorrente na pena de 10 meses de prisão, com suspensão da execução da pena pelo período de 1 ano e 6 meses.
19. Pelo que, entendemos que a pena determinada pelo tribunal a quo não é demasiada, sendo improcedentes manifestamente as motivações apresentadas pela recorrente”; (cfr., fls. 143 a 146-v e 193 a 204).

Remetidos os autos a este T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte Parecer:
“Encontramo-nos de acordo e subscrevemos as judiciosas considerações empreendidas pelo Exmo Colega junto da 1ª instância, no que tange à não ocorrência, no caso, de vício de erro notório na apreciação da prova, ou afronta do princípio “in dúbio pró reo”, já que, ao que se descortina, nenhuma dúvida paira ou persiste sobre a prática efectiva e forma de ocorrência dos factos delituosos imputados à recorrente, sendo que, por outra banda, o facto de se ter concluído que, aquando do embate, o motociclo conduzido pela arguida embateu “levemente no pé direito da ofendida”, sem registo da queda da mesma no solo, não invalida que as lesões que a ofendida apresentava a nível dos tecidos moles do ombro esquerdo se pudessem apresentar como consequência directa e adequada do acidente, não se mostrando tais factos incompatíveis entre si, ou que se tenha retirado de facto provado conclusão logicamente inaceitável, dada a circunstância de a ofendida ter tentado a travessia da faixa de rodagem com uma criança ao colo, tomando-se perfeitamente possível e aceitável que, até como tentativa de protecção daquela, pudesse ter ocorrido tal tipo de lesões, razão por que as “hipóteses ousadas” formuladas pela recorrente não passarão disso mesmo: de meras conjunturas e especulações, sem qualquer sustentabilidade a nível da ocorrência do vício assacado.
Já quanto à medida concreta da pena aplicada, atentos os circunstancialismos específicos do caso, nomeadamente o facto de, ao que se colhe dos factos dados como não provados, a arguida, na altura do acidente, não ter continuado “a atravessar a passagem”, subentendendo-se que, “malgré tou”, a velocidade a que seguia, lhe terá permitido parar o ciclomotor nessa passagem sem queda de qualquer dos intervenientes, a diminuta violência e consequências do embate e o facto de a arguida ser primária, afigura-se-nos algo exagerada a medida alcançada, pelo que pugnamos pela sua redução, não se alcançando motivo fundamentado para a sua não substituição por multa, nos termos do art° 44°, CPM, já que, além do mais, dada a forma de actuação da recorrente, meramente negligente, se não topa necessidade de prevenção do cometimento de novos crimes”; (cfr., fls.).

Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados os seguintes factos:
“1. Em 30 de Dezembro de 2008, pelas 6h00 à noite, a arguida A estava a conduzir o ciclo-motor (de matrícula de automóvel CM-XXXXX) ao longo da Rua Cidade do Porto, na direcção da Avenida Sir Anders à Alameda Dr. Carlos d’ Assumpção.
2. Quando a arguida conduzia o ciclo-motor supracitado, aproximando de uma passagem do Jardim Brilhantismo da Rua Cidade do Porto, não reduziu adequadamente a velocidade, nem parou para que a peoa (B) que estava com bebé ao colo atravessou a passagem, por isso, a roda dianteira do ciclo-motor da arguida embateu levemente no pé direito da ofendida por não conseguir travar oportunamente.
3. O acto supracitado da arguida resulta directa e necessariamente as contusões nos tecidos moles do ombro esquerdo e no maléolo direito da ofendida B que estava com bebé ao colo, tendo sido necessário 3 dias para se recuperar (vide a descrição das feridas detalhadas constante nas fls. 23 e 24 dos autos, relatórios médico-legais).
4. Ao aproximar de passagem, a arguida não conseguiu reduzir oportunamente a velocidade ou parar o seu ciclo-motor que estava conduzir para deixar passar o peão que se encontre a atravessar a faixa de rodagem na passagem, pelo que, a arguida violou o dever de condução prudente, resultando directamente a ocorrência deste acidente e causando a ofensa corporal de outra pessoa.
5. A arguida praticou voluntaria e conscientemente o acto supracitado e sabia que o seu acto foi proibido pela lei.
6. A arguida é croupier, auferindo mensalmente MOP$ 16.000,00, tem como habilitação académica o 5.º ano do curso de ensino secundário, devendo pagar mensalmente à sua família MOP$ 5.000,00.

*

(II) Factos não provados: Quando a arguida conduzia o ciclo-motor supracitado, aproximando da passagem do Jardim Brilhantismo da Rua Cidade do Porto, continuou atravessar a passagem, por isso, embateu na ofendida B com o seu ciclo-motor que estava conduzir.

(III) Método de prova:
A declaração prestada pela arguida na audiência, declaração prestada pela testemunha e documentação relativa ao caso, incluindo os relatórios médico-legais constantes nas fls. 23 e 24 dos autos.”

Do direito

3. Vem a arguida A recorrer da decisão proferida pelo T.J.B. que a condenou como autora da prática de um crime de “ofensa à integridade física por negligência”, p.p. pelo art.° 142° n.° 1 do C.P.M., conjugado com o art.° 93° n.°1 da Lei n.°3/2007 (“Lei do Trânsito Rodoviário”), na pena de 10 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e 6 meses, e de uma contravenção p.p. pelo art.º 37.º n.º 2 e 103°, n.°1 da mesma Lei, na multa de MOP$ 1.500,00, convertível em 10 dias de prisão caso não for paga e na de inibição de condução pelo período de 6 meses.

Afirma que a mesma decisão está, inquinada com o vício de “erro notório na apreciação da prova”, que o Tribunal a quo não deu aplicação ao princípio “in dubio pró reo”, e que excessiva é a pena principal que lhe foi fixada.

Vejamos.

–– Repetidamente tem este T.S.I. afirmado que:

“O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”

De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., Ac. de 27.01.2011, Proc. n° 470/2010, do ora relator).

Por sua vez, e no que toca ao “princípio in dúbio pro reo” também já teve este T.S.I. oportunidade de consignar que:

“O princípio “in dúbio pro reo” identifica-se com o da “presunção da inocência do arguido” e impõe que o julgador valore sempre, em favor dele, um “non liquet”.
Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dúbio pro reo”, decidir pela sua absolvição”; (cfr., v.g., o Ac. de 06.04.2000, Pro. n° 44/2000, do ora relator e do Acórdão de 20.01.2011, Processo n.° 991/2011) .

Ora, na situação dos autos, deu o Tribunal a quo que como resultado do acidente resultaram “directa e necessariamente as contusões nos tecidos moles do ombro esquerdo e no maléolo direito da ofendida B que estava com bebé ao colo, tendo sido necessário 3 dias para se recuperar” .

E diz a arguida ora recorrente que provada não podia ficar tal matéria, dado que apenas se provou também que “a roda dianteira do ciclo-motor da arguida embateu levemente no pé direito da ofendida por não conseguir travar oportunamente”.

Pois bem, cremos que à recorrente não assiste razão.

Como acertadamente observa o Exmo. Magistrado do Ministério Público no seu Parecer, a colisão no pé da ofendida “não invalida que as lesões que a ofendida apresentava a nível dos tecidos moles do ombro esquerdo se pudessem apresentar como consequência directa e adequada do acidente, não se mostrando tais factos incompatíveis entre si, ou que se tenha retirado de facto provado conclusão logicamente inaceitável, dada a circunstância de a ofendida ter tentado a travessia da faixa de rodagem com uma criança ao colo, tomando-se perfeitamente possível e aceitável que, até como tentativa de protecção daquela, pudesse ter ocorrido tal tipo de lesões”.

Aliás, se nos relatórios médicos invocados na sentença recorrida se faz menção de tais lesões, evidente se nos parece de considerar que as mesmas estão relacionadas com o acidente em questão.

Assim, e tendo também presente o que exposto está na decisão recorrida a título de elementos probatórios que serviram para formar a sua convicção, evidente se nos parece que inexistem os assacados vícios de “erro” e violação do princípio “in dúbio pró reo”.

–– Quanto à pena.

Diz a recorrente que é a mesma excessiva, e que mais adequada seria uma pena de 6 meses de prisão, convertida em multa.

Cremos que no ponto em questão tem a recorrente razão.

Vejamos.

O crime pela mesma cometido é, como se viu, 1 crime de “ofensa à integridade física por negligência”, p. e p. pelo art. 142°, n.° 1 do C.P.M..

Ao mesmo, cabe a pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias; (cfr., art. 142°, n.° 1 do C.P.M.).

Nos termos do art. 64° do C.P.M.:
“Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

E ponderando no facto de ser a arguida primária, na forma e circunstâncias de cometimento do crime, e nas lesões causadas à ofendida, afigura-se-nos que adequada será uma pena não privativa da liberdade.

Atento o estatuído no art. 45° do C.P.M., (sendo, no caso de 90 dias o limite mínimo da pena de multa), e ponderando na situação económica da arguida, afigura-se-nos justa e equilibrada a pena de 150 dias de multa, à taxa diária de MOP$100.00, o que perfaz a multa total de MOP$15.000,00, ou 100 dias de prisão subsidiária, na parte em questão sendo assim de se conceder provimento ao recurso.

Outra questão não havendo a apreciar, resta decidir.

Decisão
4. Nos termos que se deixam expostos, acordam julgar parcialmente procedente o recurso.

Pelo decaimento pagará a recorrente as respectivas custas, com taxa de justiça que se fixa em 4 UCs.

Macau, aos 31 de Março de 2011
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 992/2010 Pág. 28

Proc. 992/2010 Pág. 29