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Processo nº 100/2011 Data: 10.03.2011
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Prisão Preventiva.
Pressupostos.
Princípio da adequação.
Princípio de proporcionalidade.



SUMÁRIO

1. São pressupostos da prisão preventiva do arguido, além dos requisitos ou condições de carácter geral das als. a) a c) do artº 188º do C.P.P.M., os de carácter específico da inadequação ou insuficiência das restantes medidas de coacção referidas nos artºs 182º e segs. do mesmo Código; a existência de fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de limite máximo superior a 3 anos ( ibidem, artº 186º, nº 1 al. a) ) e ainda a proporcionalidade e a adequação da medida, consubstanciadas na justeza da prisão preventiva relativamente à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas ao caso (ibidem, artº 178º, nº 1).

2. Os requisitos gerais previstos nas alíneas a), b) e c) do artigo 188º do C.P.P.M. não são de aplicação cumulativa, sendo antes de aplicação alternativa.

3. A revogação de uma decisão que aplica uma medida de coacção com a devolução dos autos para nova decisão não se equipara ao “reenvio do processo para novo julgamento” previsto no art. 418° do C.P.P.M.


O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo




Processo nº 100/2011
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (A), com os sinais dos autos, veio recorrer do despacho proferido pelo Mm° Juiz de Instrução Criminal que lhe
decretou a medida de coacção de prisão preventiva.

Na sua motivação de recurso oferece as seguintes conclusões:

“(i) Violação do art.º 418º do Código de Processo Penal
1. O objectivo do legislador ao estabelecer o artigo 418º do Código de Processo Penal é evitar que o tribunal a quo for influenciado pelas ideias preconcebidas, garantindo o direito processual do arguido ou recorrente para que possa obter julgamento justo.
2. In casu, o Tribunal a quo não formou o novo tribunal colectivo para escolher a medida de coacção apta para os recorrentes e, por cima, o respectivo assunto continuou a ser tratado pela Juíza do processo que tinha assinado o despacho da aplicação da prisão preventiva proferido no acórdão a quo. Face a esta situação, verifica-se que, sem dúvida, existe violação do art.º 418º do Código de Processo Penal na decisão da Juíza do processo do Tribunal a quo que aplicou novamente aos recorrentes a prisão preventiva.
3. Dado que a lei não estipulou que a violação do art.º 418º do Código de Processo Penal podia causar nulidade, pelo que, nos termos do art.º 105º, n.º 1 do mesmo Código, verifica-se a existência da irregularidade na decisão da Juíza do processo do Tribunal a quo que aplicou novamente aos recorrentes a prisão preventiva.
(ii) Violação dos princípios da adequação e da proporcionalidade
4. Tal como a opinião manifestada pelo recorrente no recurso anteriormente interposto contra a aplicação da prisão preventiva, até ao julgamento, o recorrente cumpriu sempre as quatro medidas de coacção que lhe foram aplicadas e, pelo contrário, verifica-se que existia violação dos princípios da adequação e da proporcionalidade por ter aplicado ao recorrente a prisão preventiva, mesmo que tivesse cumprido as quatro medidas de coacção que lhe foram aplicadas.
5. Mais, é improcedente a razão exposta pela Juíza do processo do Tribunal a quo para fundamentar a sua decisão, isto é, “existe evidentemente perigo de fuga” do recorrente.
6. Em primeiro lugar, embora o recorrente abandonasse Macau e deslocou-se ao Interior da China logo após o cometimento do crime, a MM.ª Juíza do Juízo de Instrução Criminal não lhe aplicou a prisão preventiva.
7. A par disso, o recorrente exerce funções de Comissário Alfandegário e tem o emprego e vencimento fixos, assim sendo, não é justificativo que o mesmo abandonasse facilmente a vida que tinha em Macau e fugisse para outra terra.
8. Por outro lado, o recorrente compareceu pontualmente à leitura do acórdão, a partir daí, vislumbra-se que o recorrente irá suportar todas as consequências do julgamento.
9. Deste modo, em vez de dizer que existe alteração substancial nos requisitos da aplicação das quatro medidas de coacção ao recorrente por ter sido julgado procedente na 1ª instância o crime que lhe foi imputado, é mais razoável dizer que não existe perigo de fuga do recorrente por este ter sido comparecido pontualmente à leitura do acórdão.”; (cfr., fls. 1649 a 1652 e 1689 a 1699).

*

Em resposta afirma o Exmo. Magistrado do Ministério Público que:

“1 - O recorrente, como pessoal das forças de segurança, tinha perfeito conhecimento da ilicitude e da gravidade da sua conduta, senão ele não ia fugir com a sua esposa (outra arguida da causa) para o Interior da China após ter apropriado as fichas e os numerários da vítima, no valor de mais que $53.000.000,00.
2 - Até agora, ainda há cerca de HKD$25.000.000,00 que não foram encontrados. Contudo, o recorrente e a sua esposa recusaram a fornecer informações aos órgãos judiciais e à autoridade de segurança pública de Macau para recuperarem o referido dinheiro.
3 - A finalidade de medidas de coacção consiste em garantir a concretização do resultado da acção, pelo que, são permitidos a aplicação das medidas de coacção diferentes e o ajustamento destas em conformidade com as diferentes fases do processo e com a situação concreta da causa.
4 - Nos termos do art.º 188º do Código de Processo Penal, as medidas de coacção, à excepção da prestação do termo de identidade e residência (art.º 181º), podem ser aplicadas se em concreto se verificar fuga ou perigo de fuga; perigo de perturbação do decurso do processo, nomeadamente perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem ou tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa.
5 - Pela experiência, uma vez que o arguido, que cometeu o crime respeitante ao valor elevado, tiver abandonado Macau, nunca mais regressa e, muito raro, a vítima consegue obter a devida indemnização.
6 - Nos termos do art.º 178º, n.º 1 do Código de Processo Penal, as medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
7 - Presentemente, in casu, o recorrente e a sua esposa foram condenados pelo tribunal. Face à pena de prisão efectiva que foi aplicada ao recorrente, o perigo de fuga do mesmo é bastante grande.
8 - A par disso, atendendo à especialidade do ambiente geográfico de Macau que abriga a facilidade da entrada e da saída clandestinas nas fronteiras desta Região, constata-se que, perante a pena de prisão efectiva que foi aplicada ao recorrente, este podia fugir de Macau com muita facilidade, a fim de se furtar à sua responsabilidade. A quantia elevada, no valor de aproximadamente HKD$25.000.000,00, que ainda não foi encontrada nesta causa, é suficiente para assegurar a vida de boa qualidade do recorrente após a sua fuga. Assim sendo, para escapar da pena de prisão aplicada, existe evidentemente o perigo de fuga do recorrente.
9 - Ora, sub judice, a aplicação das medidas de coacção ao arguido, à excepção da prisão preventiva, mostra-se notoriamente insuficiente para salvaguardar o efeito processual, não garantindo assim a concretização do resultado da acção, pelo que, verifica-se a necessidade de se aplicar a prisão preventiva nesta ocasião.
10 - Ao abrigo do art.º 186º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal, neste caso é permitida a aplicação da prisão preventiva.
11 - Tendo em conta a situação acima exposta, perante a exigência da prevenção, a gravidade dos factos e a aplicação da pena, verifica-se que, in casu, são razoável e adequado se o tribunal aplicar ao arguido a prisão preventiva.
12 - Assim sendo, nos termos dos art.ºs 176º, 178º e 188º, al. a) do Código de Processo Penal, deve manter-se a aplicação da prisão preventiva ao recorrente.”; (cfr., fls. 1656 a 1658-v e 1700 a 1709).

*

Admitido o recurso e remitidos os autos a este T.S.I., em sede de vista juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte Parecer:

“Não assiste, a nosso ver, razão ao recorrente.
Vejamos.

É descabida, desde logo, a chamada à colação do art. 418° do
C. P. Penal.

Está em causa uma declaração de nulidade e não uma
situação de reenvio.

E essa declaração não implica, como é sabido, a intervenção
de um Tribunal diferente.
A decisão recorrida, por outro lado, não merece censura.

E, nesse âmbito, nada temos a acrescentar, de facto, às
judiciosas considerações do nosso Exm. Colega.
Verificam-se, em concreto, as hipóteses contempladas nas als.
a) e c) do art. 188° do C. P. Penal.
O perigo de fuga - ou o seu acréscimo - resulta, além do mais,
do facto de o recorrente ter passado de acusado a condenado.
E os termos da respectiva condenação não podem,
naturalmente, deixar de reflectir-se na sua situação processual.
É certo, igualmente, atentas a natureza e a gravidade do
crime, que a restituição do mesmo à liberdade não deixaria de
perturbar a tranquilidade pública.
Do exposto flui, em suma, que os fins da prisão preventiva não
podem ficar satisfeitos com a aplicação de quaisquer outras
medidas de coacção.

Deve, em conformidade, ser negado provimento ao recurso”; (cfr., fls. 1711 a 1713).

*
Cumpre decidir.

Fundamentação

2. Tem o despacho ora recorrido o teor seguintes:

“Em 10 de Setembro de 2010, o 1º arguido A (A) e a 2ª arguida B (B) foram condenados, respectivamente, pela prática de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art.º 199º, n.ºs 1 e 4, al. b), conjugado com o art.º 196º, al. b) do Código Penal, na pena de 4 anos e 3 meses de prisão efectiva.
Os dois arguidos interpuseram recurso.
Nos termos do art.º 186º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal, pode impor-se aos arguidos a prisão preventiva.
Os dois arguidos foram julgados e condenados, atendendo à gravidade da causa e tendo em conta que os dois arguidos abandonaram Macau e deslocaram-se ao Interior da China logo após o cometimento do crime, o tribunal considera que existe evidentemente perigo de fuga dos mesmos se não lhe aplicar prisão preventiva.
Assim sendo, segundo os princípios da adequação e da proporcionalidade, para prevenir a fuga dos arguidos, ao abrigo dos art.ºs 176º, 177º, 178º, 188º, al. a), e 186º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal, determina-se que seja aplicada a prisão preventiva ao 1º arguido A (A) e à 2ª arguida B (B); (cfr., fls. 1636-v e 1686 a 1688).

Resulta das conclusões pelo ora recorrente apresentadas que, em sua opinião, incorreu o Mm° Juiz de Instrução Criminal em “violação ao art. 418° do C.P.P.M.” e “violação dos princípios da adequação e proporcionalidade”.

Vejamos.

–– Da alegada “violação ao art. 418° do C.P.P.M.”.

Cremos, como infra se demonstrará, que incorre o recorrente em equívoco.

De facto, nos termos do art. 418° do C.P.P.M.:

“1. Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 400.º, não for possível decidir da causa, o tribunal a que o recurso se dirige determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.
2. Se o reenvio for de processo do tribunal singular, o novo julgamento compete ao tribunal colectivo.
3. Se o reenvio for de processo do tribunal colectivo, o novo julgamento compete a tribunal colectivo formado por juízes que não tenham intervindo na decisão recorrida.”

Como sem esforço se alcança do transcrito comando legal, o mesmo regula, (como da própria epígrafe consta), o “reenvio do processo para novo julgamento”, em virtude dos vícios do art. 400°, n.°2, al. a), b) e c) do mesmo C.P.P.M..

E, no caso dos autos, ainda que por Acórdão deste T.S.I. se tenha revogado anterior decisão do Mm°. JIC que aplicou ao ora recorrente uma medida de coacção, determinando-se que fosse proferida nova decisão, (após a observância do princípio do contraditório), importa atentar, como bem salienta o Ilustre Procurador Adjunto, que em causa “está uma declaração de nulidade e não uma situação de reenvio”, em virtude da existência de vícios da matéria de facto – art. 400°, n.°2, al. a), b) e c) do C.P.P.M. – com a consequente anulação do julgamento efectuado, pois que, independentemente do demais, incomparável é um “despacho” a aplicar uma medida de coacção, e um julgamento, onde, em sentença ou acórdão, se decide da factualidade provada e não provada em conformidade com a prova produzida na audiência de julgamento, fazendo-se o seu enquadramento jurídico, e decidindo-se, a final, pela condenação ou absolvição do arguido quanto ao(s) crime(s) que lhe é (são) imputado(s).

Aliás, a questão, apresenta-se-nos efectivamente como uma “falsa questão”, e daí, atento o que já se expôs, nada mais se mostra de acrescentar.

–– Quanto à “violação dos princípios da adequação e da proporcionalidade”.

Pois bem, é sabido que “são pressupostos da prisão preventiva do arguido, além dos requisitos ou condições de carácter geral das als. a) a c) do artº 188º do C.P.P.M., aprovado pelo DL nº 48/96/M, de 02 de Setembro, os pressupostos de carácter específico da inadequação ou insuficiência das restantes medidas de coacção referidas nos artºs 182º e segs. do mesmo Código; a existência de fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de limite máximo superior a 3 anos ( ibidem, artº 186º, nº 1 al. a) ) e ainda a proporcionalidade e a adequação da medida, consubstanciadas na justeza da prisão preventiva relativamente à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas ao caso (ibidem, artº 178º, nº 1)”, e que, “Os requisitos gerais previstos nas alíneas a), b) e c) do artigo 188º do C.P.P.M. não são de aplicação cumulativa, sendo antes de aplicação alternativa.”; (cfr., v.g., o Ac. de 12.06.2003, Proc. n° 117/2003, e o de 17.12.2010, Proc. n.°958/2010).

No caso, por Acórdão do T.J.B. decidiu-se condenar o ora recorrente como autor de um crime de “abuso de confiança” p. e p. pelo art. 199°, n°1 e 4, al. b) do C.P.M., fixando-lhe o Colectivo a pena de 4 anos e 3 meses de prisão.

E, ainda que tal Acórdão não tenha transitado em julgado em virtude do recurso que do mesmo interpôs o ora recorrente, não se pode olvidar que, o mesmo, implica uma mudança do estatuto processual do ora recorrente; (cfr., v.g. o Acórdão T.S.I. de 30.01.2003, Processo n.°258/2002).

Com efeito, passou de (mero) “indiciado”, (acusado ou pronunciado), a “condenado”, (embora, repita-se, sem trânsito em julgado, pois que a não ser assim, isto é, se transitada em julgado estivesse a decisão condenatória, razão de ser não tinha o presente recurso).

Nesta conformidade, e para além de evidente ser a grande probabilidade de ter que cumprir uma pena privativa da liberdade, cremos que inegável é também que verificados estão os pressupostos dos “fortes indícios da prática dolosa de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos; (cfr., art. 186°, al. a) do C.P.P.M.)”.

Porém, centrando o ora recorrente o seu recurso na “violação dos princípios da adequação e proporcionalidade”, eis o que se nos mostra de dizer:

Sobre tais princípios já teve este T.S.I. oportunidade de afirmar que:

“O princípio da adequação exige que qualquer medida de coacção a aplicar ao arguido, em caso concreto, seja idónea para satisfazer as necessidades cautelares do caso e, por isso, há-de ser escolhida em função da cautela, da finalidade a que se destina”; e que,
“O princípio da proporcionalidade impõe que a medida deve ser proporcionada à gravidade do crime e à sanção que previsivelmente venha a ser aplicada ao arguido em razão da prática do crime ou crime indiciados no processo”; (cfr., v.g., o Acórdão deste T.S.I. de 15.03.2001, Proc. n° 39/2001).

Ora, motivos não havendo para alterar o assim entendido, muito não nos parece de acrescentar.

De facto, existindo já uma decisão condenatória, (ainda que sem trânsito em julgado), a declarar o ora recorrente autor de prática de um crime de “abuso de confiança” (de valor consideravelmente elevado; cfr., art. 211°, n.°1 e 4 al. b) do C.P.M.), pelo qual foi (como já se referiu) condenado numa pena de 4 anos e 3 meses de prisão, não vemos como considerar que não esteja a decisão ora em crise em harmonia com o aludido “princípio da proporcionalidade”.

Por sua vez, atento o actual estatuto processual do ora recorrente – “condenado”, (ainda que sem trânsito) – e ponderando na sua conduta, nomeadamente, na sua ausência de Macau após a prática do crime, e nas circunstâncias da sua prática e montantes envolvidos, (H.K.D. $53.000.000,00), cremos que razoável é considerar como verificados os pressupostos do art. 188°, al a) e c) do C.P.P.M., o que torna também evidente a “adequação” da decisão ora recorrida, nenhuma violação ao “princípio da adequação” existindo.

Constatando-se que censura não merece a decisão objecto do presente recurso, impõe-se a sua improcedência.

Decisão
3. Em face de tudo quanto se tentou deixar esclarecido,
acordam negar provimento ao recurso.

Pagará o recorrente a taxa de justiça que se fixa em 6 UCs.


Macau, aos 10 de Março de 2011

(Relator)
José Maria Dias Azedo

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng

(Segundo Juiz-Adjunto)
João A. G. Gil de Oliveira

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