Processo nº 9/2011 Data:24.03.2011
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “tráfico de estupefacientes” e de “detenção de estupefacientes para consumo”.
Erro notório na apreciação da prova.
Alteração da qualificação jurídica.
SUMÁRIO
1. O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis.
Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.
É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.
2. Verificando-se que a arguida, após ser surpreendida no dia 25.01.2009 a entrar em Macau com Ketamina e Nimetazepam para venda ou cedência a terceiros e para o seu consumo, repete esta sua conduta em 31.03.2010, (isto é, mais que 1 ano depois), correcta não é a qualificação da sua conduta como a prática, em concurso real de 1 crime de “tráfico” e 1 outro de “consumo”, devendo antes ser condenada pela prática, em concurso real, de 2 crimes de “tráfico” e outros 2 de “consumo”.
3. Nada obsta a que o Tribunal de recurso altere oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo Tribunal recorrido, desde que observado seja o contraditório e o princípio da proibição da reformatio in pejus.
O relator,
______________________
José Maria Dias Azedo
Processo nº 9/2011
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão do Colectivo do T.J.B. decidiu-se condenar A (A), com os sinais dos autos, como autora material e em concurso real de:
– um crime de “tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, p.p. pelo artigo 8º, nº 1 da Lei nº 17/2009, na pena de 4 anos e 11 meses de prisão; e,
– um crime de “consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, p.p. pelo artigo 14º da Lei nº 17/2009, na pena de 2 meses de prisão.
Em cúmulo, foi a arguida condenada na pena única de 5 anos de prisão; (cfr., fls. 211 a 211-v, que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformada com o assim decidido, traz a arguida o presente recurso, motivando para, a final, formular as conclusões seguintes:
“1. O acórdão recorrido condenou a recorrente:
“…pela prática de um crime de “tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas” p.p. pelo artigo 8º, nº 1 da Lei nº 17/2009 e pela prática de um crime de “consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas” p.p. pelo artigo 14º da Lei nº 17/2009, na pena de 4 anos e 11 meses de prisão e na pena de 2 meses de prisão, respectivamente. Em cúmulo jurídico, condena-se a arguida numa pena única de 5 anos de prisão.”
2. Na matéria de factos provados do acórdão recorrido:
“…Ela adquiriu e deteve as drogas no sentido de vender ou fornecer uma parte das drogas a outrem e uma parte para o consumo dela. …dois sacos plásticos transparentes que continham, respectivamente, 66 e 42 saquinhos plásticos transparentes com pó branco no seu interior, bem como uma nota de 20 patacas embrulhada contendo pó branco no seu interior e entregou-os ao pessoal da SA.”
3. Na convicção sobre os factos:
“A arguida alegou começar a receber tratamento para a toxicodependência de um psiquiatra de Hong Kong um mês antes da ocorrência do caso. Então porque ainda precisou de comprar grande quantidade de drogas para consumir a longo prazo? E porque é que as drogas foram divididos em 108 saquinhos? Assim, com base nas regras da experiência comum, o Tribunal reconhece que a maioria das drogas era destinada à venda a terceiros ou para fornecer a outrem.”
4. A recorrente apresentou contestação escrita oportunamente que se encontra às fls. 192 a 195 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
5. Salvo o devido respeito, a recorrente não se conforma com a sua condenação pela prática de um crime de “tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas” p.p. pelo artigo 8º, nº 1 da Lei nº 17/2009 e vem interpor este recurso.
6. Primeiro, tal como foi dito anteriormente que a convicção no acórdão recorrido foi formada baseando-se nas regras de experiência comum que reconheceu que a recorrente vendeu drogas a terceiros, por qual foi condenada a mesma.
7. É sabido que um tratamento para a toxicodependência (do começo até que o toxicodependente deixe a droga) não só leva um, dois dias ou um ou dois meses. Apenas poucos toxicodependentes poderam deixar a droga com só um tratamento recebido.
8. Assim sendo, a recorrente recebeu o tratamento referido um mês antes de ser detida, isso não quer dizer que ela já deixou a droga com sucesso e não depende mais dela.
9. Normalmente, no tráfico ilícito de drogas, os produtos estupefacientes são sempre divididos em saquinhos pequeninos na venda, devendo haver um motivo em fazer isso.
10. Temos que saber que o tráfico de estupefacientes é um crime, quer no interior da China quer em Macau. Por isso, aquando da aquisição das drogas a recorrente não podia escolher a embalagem dos produtos – em várias embalagens ou só em uma – independentemente da embalagem em que viesse.
11. As regras da experiência comum dizem-nos: quando um residente comum compra arroz de 200 kg. num supermercado, o supermercado não vai abrir 20 sacos de arroz de 10 kg. e embrulhá-lo num saco grande de serapilheira para entregar ao residente.
12. Substancialmente, precisamos de verificar outra prova para confirmar que os vários saquinhos de droga detidos pela recorrente eram, ou não, para o consumo dela.
13. Não há outra prova objectiva nos autos que possa comprovar que a recorrente vendeu ou fornecer drogas a terceiros, em particular, não existe prova geral nos autos de busca e revista que demonstra que a arguida tem a ver com o tráfico ilícito de estupefacientes, tais como balança electrónica, registo de clientes, etc. Até não há testemunha que possa indicar que a recorrente vendeu, fornecer drogas a outrem.
14. Portanto, a recorrente entende que na matéria de facto provado o reconhecimento do facto “…Ela adquiriu e deteve as drogas no sentido de vender ou fornecer uma parte das drogas a outrem e uma parte para o consumo dela” violou, substancialmente, as regras da experiência comum, padecendo do vício de erro notório na apreciação da prova.
15. Pelo reconhecimento do facto de a arguida deter os estupefacientes para vender e fornecer a terceiros, o acórdão recorrido violou as regras da experiência comum, padecendo, por consequência, do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto na al. c), nº 2 do artigo 400º do Código de Processo Penal, devendo ser declarado anulado pelo Tribunal de Segunda Instância.
16. E deve o Tribunal de Segunda Instância declarar a redeterminação da pena à recorrente por não existir prova de que a recorrente tinha praticado tráfico ilícitos de estupefacientes
17. Segundo, a recorrente não concorda caso não se assim entenda com base nos seguintes fundamentos:
18. Tal como foi dito anteriormente, o acórdão recorrido levantou duas perguntas na convicção sobre os factos, sendo a decisão condenatória proferida sem explicações razoáveis às duas perguntas.
19. O acórdão recorrido tinha adoptado uma “forma de pensamento reversa” em deduzir a conclusão de que as drogas não eram só para o consumo pessoal da recorrente.
20. Quando adoptar-se a forma de pensamento reversa para deduzir uma conclusão, é necessário prestar atenção a: na vertente filosófica, o nível exigido por nós quanto ao resultado (examinação) é elevado ou baixo.
21. O nível exigido em processo penal é convicção plena e sem qualquer dúvida fundada, ou seja, 100% de credibilidade. É porque num processo penal será aplicada a pena privativa de liberdade.
22. Sob a exigência referida, podemos ver que o acórdão recorrido não conseguiu responder às perguntas mencionadas, por isso, imputou à arguida o crime de tráfico ilícito de estupefacientes e reconheceu os factos referentes.
23. Para a recorrente, o acórdão recorrido violou, sem dúvida, o princípio essencial do Direito Penal de “in dúbio libertas” inerente à teoria supra referenciada.
24. Assim, pelo reconhecimento do facto de a recorrente deter os estupefacientes para vender e fornecer a terceiros, o acórdão recorrido violou o princípio essencial do Direito Penal de “in dúbio libertas”, padecendo, por consequência, do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto na al. c), nº 2 do artigo 400º do Código de Processo Penal, devendo ser declarado anulado pelo Tribunal de Segunda Instância.
25. Deve o Tribunal de Segunda Instância declarar a redeterminação da pena à recorrente por não existir prova de que a recorrente tinha praticado tráfico ilícito de estupefacientes.
26. Por fim, a recorrente solicita ao Tribunal que aprecie oficiosamente todos os vícios fixados na lei nos autos e faça justiça como sempre.”; (cfr., fls. 234 a 237 e 270 a 277).
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Respondendo, assim conclui o Exm° Magistrado do Ministério Público:
“1. A recorrente alegou estar ainda dependente das drogas, acrescentando que a quantidade dos estupefacientes encontrada na sua posse era a para o consumo dela durante o período do tratamento, não sendo destinada à venda ou cedência a terceiros.
2. Explicou que os saquinhos de drogas encontrados na sua posse foram embrulhados pela pessoa que lhe vendeu os estupefacientes, não sendo ela que fez. A mesma entendeu que não há outras provas objectivas nos autos que possam sustentar o facto de tráfico e cedência de estupefacientes a outrem por ela.
3. Por isso, a recorrente entende que, pelo reconhecimento do facto de a recorrente deter os estupefacientes para vender e ceder a terceiros, o acórdão recorrido violou as regras de experiência comum, padecendo, por consequência, do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto na al. c), nº 2 do artigo 400º do Código de Processo Penal e devendo ser declarado anulado pelo Tribunal de Segunda Instância.
4. Não nos conformamos com o seu entendimento.
5. Tal como foi dito no acórdão proferido pelo Venerando Tribunal de Última Instância no processo nº 22/2009 de 30 de Julho de 2009: “O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. E tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”
6. Entendemos que não existe erro no reconhecimento dos factos provados ou na conclusão deduzida do acórdão recorrido, muito menos erro notório na apreciação da prova. Ao contrário, os fundamentos invocados pela recorrente na motivação de recurso não correspondem à lógica normal.
7. Em primeiro lugar, comparada a quantidade de Ketamina trazida pela recorrente com a quantidade de referência de uso diário de Ketamina (0,6 grama) prevista na Lei nº 17/2009, a quantidade que a mesma trouxe era suficiente para um toxicodependente comum consumir durante 61 dias.
8. Sendo uma toxicodependente que se encontra a fazer tratamento para a toxicodependência, a dose diária de droga necessária para a recorrente devia ser menos do que a para um toxicodependente comum.
9. Ademais, estando a receber neste momento o tratamento para a toxicodependência, mesmo que necessite ainda alguma droga, a recorrente não consegue saber quando pode deixar de consumir estupefacientes. Portanto, entendemos que não é lógica que a arguido prepare uma quantidade tão grande de estupefacientes para o consumo de si própria (cujo valor monetário é elevado).
10. Tal como foi dito pela recorrente, o tráfico de estupefacientes é ilegal, quer no interior da China quer em Macau. Já que o traficante vendeu as drogas em embalagens pequenas, a recorrente devia comprar em pouca quantidade. Assim é que lógica. A mesma alegou, por um lado, estar bem ciente de que o acto de tráfico de estupefacientes era ilegal e, por outro lado, transportou uma quantidade de estupefacientes tão grande para Macau. Entendemos que ela tinha um motivo escondido para fazer aquilo.
11. Na verdade, a sua invocação das regras da experiência comum na motivação de recurso (um residente comum compra 20 sacos de arroz com peso de 10 kg. cada) levou-nos a acreditar que ela trouxe estupefacientes de grande quantidade no sentido de vender ou ceder a outrem.
12. Além disso, a recorrente alegou que o acórdão recorrido levantou duas perguntas na convicção sobre os factos, assim, com base no princípio in dúbio libertas, o acórdão recorrido padece do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto na al. c), nº 2 do artigo 400º do Código de Processo Penal, que deve ser declarado anulado pelo Tribunal de Segunda Instância.
13. Importa referir que as duas perguntas usadas pelo Tribunal a quo no acórdão não são dúvidas do mencionado Tribunal,
14. sendo uma figura retórica da língua chinesa (pergunta retórica), i.e., a pessoa que já sabia, sem dúvida, a verdade do facto mas fez intencionalmente a pergunta. Com efeitos, tais perguntas servem de fundamento ao reconhecimento dos factos pelo Tribunal a quo.
15. Nos termos expostos, entendemos que não existe nenhum erro ou erro notório no reconhecimento dos factos e na conclusão. É improcedente o recurso interposto e deve ser rejeitado.”; (cfr., fls. 239 a 241 e 278 a 286).
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Em sede de vista juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o Parecer seguinte:
“Fundando a sua alegação na existência de erro notório na apreciação da prova, estriba a recorrente tal asserção em 2 vectores fundamentais :
- por um lado, não é verdade que, pelo mero facto de lhe terem sido
detectados 108 saquinhos contendo droga, tal dado, em termos de regra e experiência comum, aponte no sentido de que os mesmos, ou parte deles,
se destinariam a venda a terceiros ;
- por outro, pelo facto de o tribunal “a quo” na elaboração do seu pensamento e ponderação ter efectuado as duas perguntas atinentes às razões por que a recorrente teria que comprar tão grande quantidade de droga para seu consumo quando se encontrava em tratamento da toxicodependência e da necessidade de tal droga se mostrar acondicionada e dividida naqueles 108 sacos, retira aquela a conclusão que tais questões pressupõem a dúvida que o tribunal tenha actuado com “100% de credibilidade”, pelo que se imporia o accionamento do
princípio "in dubio pro reo"
É evidente não lhe assistir qualquer razão.
As questões, democrática e abertamente colocadas pelos julgadores, na exposição do respectivo pensamento e valoração, destinam-se precisamente a dissipar quaisquer dúvidas que pudessem existir sobre a conclusão alcançada de que a recorrente destinaria a maior parte das drogas apreendidas a terceiros. Ou seja: a conclusão a retirar da resposta dada pelo colectivo a tais questões é precisamente a contrária à que a recorrente almeja - a de que, atentos os contornos do caso, a dúvida razoável apontada, não subsiste.
Por outro lado, quanto à quantidade de sacos com droga detectados - 108 -, por amor de Deus ! Como se pode, em termos razoáveis, sustentar que, perante tal quantidade, a experiência comum não aponte no sentido de, grande parte deles se destinar a ser transmitido a terceiros, que não a mero consumo pessoal?
Não se vê, pois, que, do teor do texto da decisão em crise, por si só,
ou conjugada com as regras da experiência comum, resulte patente, evidente, ostensivo que os julgadores erraram ao apreciar como apreciaram, não se tendo os mesmos esquivado a expressar, concreta e especificamente a sua valoração da prova produzida e dos motivos que os levaram às conclusões que formularam, não se divisando que tenham sido dados como provados factos incompatíveis entre si, ou que se tenham retirado de tais factos conclusões logicamente inaceitáveis, não competindo a este Tribunal censurar os julgadores por terem formado a sua convicção neste ou naquele sentido, quando na decisão recorrida, confirmado pelo senso comum, nada contraria as conclusões alcançadas.
Acresce que, nos termos do art° 114° C.P.P.M., “Salvo disposição legal em contrário, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, sendo que, analisada a decisão recorrida na sua globalidade, se constata ser a mesma lógica e coerente, não tendo o Tribunal decidido em contrário ao que ficou provado ou não provado, contra as regras da experiência ou em desrespeito dos ditames sobre o valor da prova vinculada ou das “legis artis”, não passando a invocação do recorrente de uma mera manifestação de discordância no quadro do julgamento da matéria de facto, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, insindicável em reexame de direito.
Tudo razões por que entendemos não merecer provimento o presente recurso.”; (cfr., fls. 288 a 290).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados os factos seguintes:
“No dia 25 de Janeiro de 2009, pelas 13H30, o pessoal dos Serviços de Alfândega (SA) interceptou a arguida A no posto de inspecção fronteiriço das Portas do Cerco e levou-a à sala de inspecção.
Na sala de inspecção, o pessoal alfandegário encontrou na carteira da arguida um saco plástico transparente, no qual houve uma nota de 10 patacas embrulhada que continha no seu interior pó branco; 11 saquinhos plásticos transparentes com pó branco e três comprimidos de cor laranja embrulhados em papel alumínio vermelho.
Submetidos os produtos acima indicados a exame laboratorial, conclui-se que o pó branco embrulhado pela nota de 10 patacas continha Ketamina, com peso líquido de 0,476 grama, substância abrangida na Tabela II-C do Decreto Lei nº 5/91/M, (após a análise quantitativa, comprovou-se que a Ketamina pesou 0,316 grama, representando 66,36% do peso). O pó branco nos 11 saquinhos continha também Ketamina com peso líquido de 4,150 gramas (após a análise quantitativa, comprovou-se que a Ketamina pesou 2,937 gramas, representando 70,76% do peso). Os três comprimidos de cor laranja continham Nimetazepam abrangida na Tabela IV do mesmo diploma legal que pesou 0,543 grama.
As drogas acima indicadas foram adquiridas pela arguida de uma pessoa de identidade desconhecida. Ela adquiriu e deteve as drogas no sentido de vender ou fornecer uma parte das drogas a outrem e uma parte para o consumo dela.
No dia 31 de Março de 2010, pelas 19H25, o pessoal dos Serviços de Alfândega (SA) interceptou a arguida A no posto de inspecção fronteiriço das Portas do Cerco e levou-a à sala de inspecção.
Na sala de inspecção, a arguida retirou do seu soutien dois sacos plásticos transparentes que continham, respectivamente, 66 e 42 saquinhos plásticos transparentes com pó branco no seu interior, bem como uma nota de 20 patacas embrulhada contendo pó branco no seu interior e entregou-os ao pessoal da SA.
Submetidos os produtos acima indicados a exame laboratorial, conclui-se que o pó branco nos 66 saquinhos continha Ketamina, substância abrangida na Tabela II-C da Lei nº 17/2009, com peso líquido de 27,116 gramas (após a análise quantitativa, comprovou-se que a Ketamina pesou 22,026 gramas, representando 81,23% do peso). O pó branco nos 42 saquinhos continha também Ketamina com peso líquido de 17,354 gramas (após a análise quantitativa, comprovou-se que a Ketamina pesou 14,364 gramas, representando 82,77% do peso). O pó branco embrulhado na nota continha também a Ketamina com peso líquido de 0,481 grama (após a análise quantitativa, comprovou-se que a Ketamina pesou 0,421 grama, representando 87,53% do peso).
As drogas acima indicadas foram adquiridas pela arguida de um indivíduo de identidade não apurada, das quais a maioria se destinava à venda ou fornecimento a terceiros e uma parte pequena ao consumo dela.
A arguida A agiu livre, voluntaria e conscientemente, conhecendo bem a natureza e as características das aludidas drogas.
Sabia bem que a sua conduta não foi autorizada legalmente e que era proibida e punida por lei.
Além disso, foram apurados os seguintes:
- Segundo o registo criminal, a arguida é primária.
- Tem dois filhos menores. O custo de vida é responsável pelo seu companheiro.”; (cfr., fls. 209 a 209v e 259 a 262).
Do direito
3. Vem A, arguida dos presentes autos, recorrer da decisão ínsita no Acórdão do T.J.B. que a condenou nos termos atrás explicitados, ou seja, pela prática como autora e em concurso real de 1 crime de “tráfico de estupefacientes” e outro de “detenção de estupefacientes para concurso”, na pena única de 5 anos de prisão.
Entende a arguida ora recorrente que incorreu o Colectivo a quo no vício de “erro notório na apreciação da prova” ao dar como provado que a droga que detinha quando interceptada pelos agentes dos Serviços da Alfândega eram para a “venda ou cedência a terceiros e para o seu consumo”.
Cremos porém que não lhe assiste razão.
Vejamos.
Quanto ao erro notório na apreciação da prova, repetidamente tem este T.S.I. afirmado que “O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.”; (cfr., v.g., Ac. de 27.01.2011, Proc. n° 470/2010, do ora relator).”
No caso, e em síntese, provado está que:
–– em 25.01.2009, foi a ora recorrente surpreendida a entrar em Macau pelo posto fronteiriço das Portas do Cerco com duas porções de Ketamina, com o peso líquido de 0,316 gramas e de 2,937 gramas, e 3 comprimidos que continham como matéria activa Nimetazepam, com peso líquido de 0,543 gramas, e que era este produto estupefaciente destinado para venda ou cedência a terceiros e para o seu próprio consumo; e que, posteriormente,
–– em 31.03.2010, no mesmo local, foi a mesma recorrente (novamente) surpreendida com (outras) 3 porções de Ketamina, com peso líquido de 22,026 gramas, 14,364 gramas e 0.421 gramas, e que a maioria de tal estupefaciente era destinado à venda ou cedência a terceiros, e que uma pequena parte do mesmo estupefaciente era pela recorrente destinada para o seu consumo, provado estando também que agiu livre, voluntária e conscientemente, conhecendo a natureza e características do aludido estupefaciente, e sabendo que proibida e punida seria a sua conduta.
E, perante isto, e como se deixou dito, não merece a decisão recorrida, a censura que lhe é feita pela arguida ora recorrente.
De facto, para decidir da maneira que decidiu (quanto à matéria de facto), ponderou o Colectivo a quo nas declarações da ora recorrente e no depoimento de outras 6 testemunhas assim como no aprendido e documentos juntos aos autos.
E, para além de se repetir aqui que, no caso, “vinculado” não estava o Colectivo a quo a decidir em conformidade com qualquer elemento de prova de valor tarifado, cabendo-lhe apreciar tais elementos probatórios de acordo com o “princípio da livre apreciação da prova”, não se pode olvidar que detinha a ora recorrente um total de “108 saquinhos de plástico transparentes”, o que, de acordo com as regras de experiência, sabendo-se que são também estes “saquinhos” utilizados para acondicionar produto estupefaciente, torna evidente que bem decidiu o Tribunal ao decidir da forma que fez
Aliás, a ora recorrente, alegando o que consta da sua motivação e conclusões, mais não faz que tentar impor a sua versão dos factos, afrontando o referido princípio da livre apreciação da prova enunciado no art. 114° do C.P.P.M., (onde se preceitua que “Salvo disposição legal em contrário, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”), o que, como é óbvio, não pode merecer a concordância deste T.S.I..
Nesta conformidade, e aqui chegados, outro aspecto importa ponderar.
Como se deixou relatado, foi a recorrente condenada como autora da prática em concurso real de 1 crime de “tráfico” e 1 outro de “consumo”.
Porém, da factualidade dada como provada verifica-se que a ora recorrente, após ser surpreendida no dia 25.01.2009 a entrar em Macau com Ketamina e Nimetazepam para venda ou cedência a terceiros e para o seu consumo, repete esta sua conduta em 31.03.2010, (isto é, mais que 1 ano depois).
Será mesmo assim de entender que cometeu “1” (só) crime de “tráfico” e “1” (só) crime de “consumo”.
Não nos parece; (cfr., v.g., quanto ao concurso real de crimes de “tráfico” em situação próxima, o Acórdão do S.T.J. de 13.02.1991, Processo n.° 41352, in B.M.J. n.° 404°, página 207).
Como cremos ser evidente, não vislumbramos motivos para “unificar” a conduta pela recorrente desenvolvida em 25.01.2009 e 31.03.2010, (em especial, atento o período de tempo decorrido, não se podendo também considerar a mesma uma “continuação criminosa”, pois que a ora recorrente foi “descoberta” em 25.01.2009).
Assim, não estando este T.S.I. vinculado à qualificação jurídico-penal efectuada pelo T.J.B., e observado que foi o contraditório, há que alterar a decisão recorrida em conformidade, ficando a recorrente condenada como autora, em concurso real, de 2 crimes de “consumo ilícito de estupefacientes” p. e p. pelo art. 14° da Lei n.°17/2009.
E quanto ao “tráfico”?
A mesma terá de ser a solução.
Porém, ponderando nas quantidades de estupefacientes com que foi a recorrente surpreendida em 25.01.2009, importa consignar que, nesta data, cometeu aquela 1 crime de “tráfico de menor gravidade”, p. e p. pelo art. 11° da Lei n.°17/2009, ficando assim condenada como autora da prática em concurso real deste crime de “tráfico de menor gravidade” e (para além dos dois de “consumo”), um outro de “tráfico”, p. e p. pelo art. 8°, n.°1 da mesma Lei, (cometido em 31.03.2010).
Considerando que o Exmo. Magistrado do Ministério Público não recorreu, há que respeitar o “princípio da reformatio in pejus” consagrado no art. 399° do C.P.P.M., mantendo-se as penas parcelares e única que à recorrente foram aplicadas.
Tudo visto, resta decidir.
Decisão
4. Em face do que se expôs, e com a alteração oficiosa da qualificação jurídico-penal efectuada, acordam negar provimento ao recurso, com custas pela recorrente com taxa de justiça que se fixa em 8 UCs.
Macau, aos 24 de Março de 2011
(Relator)
José Maria Dias Azedo
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng
(Segunda Juiz-Adjunta)
Tam Hio Wa
Proc. 9/2011 Pág. 28
Proc. 9/2011 Pág. 1