Processo n.º 566/2008(II) Data do acórdão: 2011-01-13
(Autos de recurso civil)
Assuntos:
– art.º 854.º, n.º 1, do Código Civil de Macau
– contrato de remissão de dívida
– art.º 399.º, n.º 1, do Código Civil de Macau
– limitação da liberdade contratual
– art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril
– Regime Jurídico das Relações de Trabalho de Macau
– princípio do favor laboratoris
– art.º 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto
S U M Á R I O
1. O Código Civil de Macau, no n.° 1 do seu art.° 854.°, dispõe que <>.
2. Entretanto, segundo o art.º 399.º, n.º 1, deste Código, a criação do contrato não implica que o mesmo possa vir a produzir necessariamente os efeitos pretendidos pelos respectivos outorgantes, visto que tudo depende da existência, ou não, de outras disposições legais obrigatórias que restrinjam ou limitam a liberdade contratual.
3. Estando o presente processo sob a alçada do Direito do Trabalho, há que aplicar o Regime Jurídico das Relações de Trabalho de Macau, consagrado no Decreto-Lei n.° 24/89/M, de 3 de Abril.
4. O art.° 6.° deste Decreto-Lei determina que <>.
5. Sendo certo que as “condições de trabalho” de que se fala nesta norma devem ser entendidas, conforme o conceito definido na alínea d) do art.° 2.° do mesmo Decreto-Lei, como referentes a <>.
6. Assim, estando o montante concreto do “prémio de serviço” então declarado pelo Autor como recebido da Ré muito aquém da soma indemnizatória reclamada na petição inicial, o Tribunal a quo, independentemente da procedência ou não do pedido do Autor, não deveria ter desconsiderado a norma expressa do art.° 6.° do dito Decreto-Lei, nem o pensamento legislativo ao mesmo subjacente e ligado às preocupações de proteger os interesses da parte trabalhadora (cfr. os cânones de hermenêutica jurídica plasmados no n.° 1 do art.° 8.° do Código Civil), não devendo, pois, ter julgado válido o contrato de remissão de dívidas da Ré para com o Autor, mesmo que esse contrato tivesse sido celebrado após a cessação da relação de trabalho entre o Autor e a Ré.
7. Aliás, norma jurídica semelhante à do art.° 6.° do Decreto-Lei n.° 24/89/M, pode ser encontrada nas seguintes disposições do art.° 60.° do Decreto-Lei n.° 40/95/M, de 14 de Agosto, definidor do regime aplicável à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais, também em prol da protecção dos interesses da parte trabalhadora:
<<1. É nula a convenção contrária aos direitos ou às garantias conferidas no presente diploma ou com eles incompatível.
2. São igualmente nulos os actos e contratos que visem a renúncia aos direitos estabelecidos no presente diploma.>>
8. Por outras palavras, como o contrato de remissão de dívida em questão nos presentes autos violou o princípio do “favor laboratoris” também consagrado obrigatoriamente no art.° 6.° do Decreto-Lei n.° 24/89/M, todos os créditos laborais legais do Autor sobre a Ré não podem ficar extintos por efeito desse contrato.
O relator por vencimento,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 566/2008 (II)
(Autos de recurso civil)
Autor: A
Ré: Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L.
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
No dia 8 de Maio de 2007, A apresentou petição ao Tribunal Judicial de Base, pedindo, em acção declarativa ordinária, a condenação da sua ex-empregadora Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L., no pagamento da quantia total de MOP$651.317,00, como indemnização pecuniária dos créditos laborais por ele tidos como existentes ao abrigo da legislação laboral de Macau (cfr. o teor da petição a fls. 2 a 12 dos presentes autos correspondentes).
Citada, a Ré veio apresentar contestação para se opor à pretensão do Autor mediante invocação de diversos motivos, de entre os quais se salientando o argumento de que todas as obrigações ora imputadas pelo Autor, a existirem, já teriam sido extintas por efeito de uma declaração subscrita pelo Autor nesse sentido em 17 de Julho de 2003 e já por ela aceite logo no próprio dia (cfr. o teor da contestação de fls. 32 a 74v dos autos), excepção essa cujo conhecimento foi entretanto relegado para final, conforme o determinado no despacho saneador (de fls. 159 a 168), por força do qual foi entretanto julgada improcedente a excepção de prescrição então também invocada pela Ré, a qual, por isso, chegou a interpor recurso dessa parte do saneador que lhe era desfavorável.
Ulteriormente, foi proferida sentença final pelo Mm.° Juiz titular do processo em primeira instância, absolvendo-se a Ré do pedido, por aí concluída já extinção, por força da remissão, dos créditos reclamados na petição inicial (cfr. a sentença de fls. 309 a 317v dos autos).
Inconformado, veio o Autor recorrer para esta Segunda Instância para rogar a invalidação dessa decisão, nos termos constantes da sua alegação de fls. 322 a 339, que se dão por aqui reproduzidos para todos os efeitos legais.
A este recurso respondeu a Ré no sentido de improcedência do mesmo, nos termos vertidos na sua contra alegação de fls. 343 a 350, que também se dão por aqui reproduzidos para todos os efeitos legais.
Subido o processo, feito o exame preliminar e corridos os vistos legais, foi apresentado pelo Mm.o Juiz Relator a quem o processo ficou distribuído o douto Projecto de Acórdão relativo ao recurso final do Autor à apreciação do presente Tribunal Colectivo ad quem, sugerindo-se que se julgasse improcedente este recurso do Autor com manutenção da decisão de absolvição da Ré do pedido.
Entretanto, como o Mm.o Relator acabou por sair vencido da votação sobre essa sua douta solução sugerida, cumpre decidir da sorte do recurso final do Autor nos termos constantes do presente acórdão definitivo, lavrado pelo primeiro dos Juízes-Adjuntos.
II – DOS FACTOS
Com pertinência à solução do recurso final do Autor, é de coligir dos autos os seguintes elementos:
Em 17 de Julho de 2003, o Autor assinou uma declaração dactilografada em chinês (com respectiva tradução portuguesa também dactilografada no mesmo texto original), e aceite no próprio dia pela Ré, com seguinte teor traduzido para português:
<
Eu,(.....................................), titular do BIR nº (...........................) recebi, voluntariamente, a título de prémio de serviço, a quantia de MOP$(..........................) da STDM, referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a STDM.
Mais declaro e entendo que, recebido o valor referido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a STDM subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma, à STDM, na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral.
[...]>> (cfr. o teor literal da mesma declaração, a que alude a fl. 76 dos autos), sendo certo que de acordo com o teor original em chinês dessa declaração, o “prémio de serviço” é de MOP$31.255,94.
III – DO DIREITO
Juridicamente falando, a questão nuclear posta no recurso final do Autor prende-se com a indagação do sentido e alcance da declaração escrita então por ele assinada e logo aceite pela Ré.
A este propósito, e tal como já se analisou mormente no acórdão de 14 de Junho de 2007 deste Tribunal de Segunda Instância, lavrado em chinês no Processo n.° 258/2007 (em que se ocupou da mesmíssima questão jurídica ante uma declaração escrita com conteúdo materialmente idêntico ao da declaração ora em causa):
O Código Civil de Macau, no n.° 1 do seu art.° 854.°, dispõe que <>.
Ora, em princípio, a dita declaração então emitida pelo Autor, uma vez aceite pela Ré, já fez nascer um contrato de remissão de dívida previsto neste preceito do Código Civil.
Entretanto, a criação do contrato não implica que o mesmo possa vir a produzir necessariamente os efeitos pretendidos pelos respectivos outorgantes, visto que tudo depende da existência, ou não, de outras disposições legais obrigatórias que restrinjam ou limitam a liberdade contratual (vide o art.° 399.°, n.° 1, do Código Civil).
Estando o presente processo sob a alçada do Direito do Trabalho, há que aplicar ao caso o Regime Jurídico das Relações de Trabalho de Macau, consagrado no Decreto-Lei n.° 24/89/M, de 3 de Abril, e vigente inclusivamente à data da assinatura da acima referida declaração escrita do Autor.
Segundo o art.° 6.° deste Decreto-Lei: <> (com sublinhado ora colocado).
Sendo certo que as “condições de trabalho” de que se fala nesta norma devem ser entendidas, de acordo com o conceito definido na alínea d) do art.° 2.° do mesmo Decreto-Lei, como referentes a <> (com sublinhado agora posto).
Assim, estando o montante concreto do “prémio de serviço” então declarado pelo Autor como recebido da Ré muito aquém da soma indemnizatória considerada devida e reclamada na petição inicial, o Tribunal a quo, independentemente da procedência ou não do pedido do Autor, não deveria ter desconsiderado a norma expressa do art.° 6.° do dito Decreto-Lei, nem o pensamento legislativo ao mesmo subjacente e ligado às preocupações de proteger os interesses da parte trabalhadora (cfr. os cânones de hermenêutica jurídica plasmados no n.° 1 do art.° 8.° do Código Civil), não devendo, pois, ter julgado válido o atrás referido contrato de remissão de eventuais dívidas da Ré para com o Autor, mesmo que esse contrato tivesse sido celebrado após a cessação da relação de trabalho entre o Autor e a Ré.
Aliás, norma jurídica semelhante à do art.° 6.° do Decreto-Lei n.° 24/89/M, pode ser encontrada nas seguintes disposições do art.° 60.° do Decreto-Lei n.° 40/95/M, de 14 de Agosto, definidor do regime aplicável à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais, também em prol da protecção dos interesses da parte trabalhadora:
<<1. É nula a convenção contrária aos direitos ou às garantias conferidas no presente diploma ou com eles incompatível.
2. São igualmente nulos os actos e contratos que visem a renúncia aos direitos estabelecidos no presente diploma.>>
Por outras palavras, como o contrato de remissão de dívida em questão nos presentes autos violou o princípio do “favor laboratoris” também consagrado obrigatoriamente no art.° 6.° do Decreto-Lei n.° 24/89/M, todos os eventuais créditos laborais legais do Autor sobre a Ré não podem ficar extintos por efeito desse contrato, com o que há que cair por terra a excepção peremptória deduzida pela Ré com base nesse contrato.
Na verdade, este princípio do favor laboratoris, como um dos derivados do princípio da protecção do trabalhador informador do Direito do Trabalho, para além de orientar o legislador na feitura das normas juslaborais (sendo exemplo paradigmático disto o próprio disposto no art.º 5.º, n.º 1, e no art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril), deve ser tido pelo menos também como farol de interpretação da lei laboral, sob o qual o intérprete-aplicador do direito deve escolher, na dúvida, o sentido ou a solução que mais favorável se mostre aos trabalhadores no caso considerado, em virtude do objectivo de protecção do trabalhador que o Direito do Trabalho visa prosseguir. (Neste sentido, e para maior desenvolvimento no assunto, cfr. a Dissertação de Doutoramento de MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO: A Autonomia Dogmática do Direito do Trabalho, in Colecção Teses, Almedina, Setembro de 2000, págs. 947 a 948 e 974 a 977, em especial, aliás já materialmente citada no acórdão de 25 de Julho de 2002, do Processo n.° 47/2002, deste Tribunal de Segunda Instância).
Assim sendo, não se pode concordar com toda a opinião diversa no assunto, mormente a constante no douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 11 de Junho de 2008 no seu Processo n.o 14/2008 (a propósito de uma declaração de teor idêntico à dos presentes autos), cuja fundamentação, salvo o devido respeito, não procede, designadamente por seguintes razões, para além das já acima expostas:
– em primeiro lugar, se o tipo de declaração em causa é uma declaração de quitação com acompanhado reconhecimento negativo de dívida ainda não existente, porque é que a Ré teve que afirmar no texto da mesma declaração que aceitava o aí declarado?
– e em segundo lugar, ao declarar-se que “nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a STDM subsiste”, é porque, no entender das partes, chega a existir, até a esse momento, o direito a compensação de “descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios..., decorrentes do vínculo laboral com a STDM”, embora não se saiba do quantum exacto dessa compensação;
– daí que, em terceiro lugar, não é por acaso que foi a STDM quem começou a invocar a tese de “remissão da dívida” em contestações apresentadas em processos congéneres (e também no presente processo);
– e em quarto lugar, mesmo dentro da própria economia da douta tese do Venerando Tribunal de Última Instância, sempre se diria que teria subsistido o mesmo estado de sujeição fáctico da parte trabalhadora declarante no momento da assinatura da declaração, porque já é facto notório, conhecido pelos Tribunais de Macau no exercício das funções jurisdicionais em todos os processos semelhantes ao dos presentes autos, que quem assinou este tipo de declarações foram aqueles “ex-trabalhadores da STDM” que passaram a trabalhar, a partir dessa altura, nos casinos da Sociedade de Jogos de Macau, S.A., criada e controlada pela mesma STDM;
– e, por fim, há que atender a que em acórdãos anteriores proferidos por este Colectivo do TSI sobre a questão, nunca se afirmou que era aplicável o art.o 60.o do Decreto-Lei n.o 40/95/M, de 14 de Agosto, mas sim que “norma jurídica semelhante à do art.o 6.o do Decreto-Lei n.o 24/89/M, pode ser encontrada nas seguintes disposições do art.o 60.o do Decreto-Lei n.o 40/95/M, de 14 de Agosto”.
Termos em que e independentemente de demais indagação por desnecessária, há que proceder o recurso final do Autor.
Caberá, pois, ao Tribunal a quo conhecer do pedido do Autor (mas agora naturalmente dentro dos justos limites decorrentes do julgado deste Tribunal ad quem sobre o recurso intercalar então interposto pela Ré do despacho saneador, na parte referente à excepção da prescrição de determinados créditos reclamados pelo Autor – cfr. o correspondente Acórdão preliminar doutamente lavrado pelo Mm.o Juiz Relator do processo e já proferido a fls. 361 a 368v dos autos, por força do qual foi mantida a decisão de improcedência da excepção de prescrição então invocada pela Ré na contestação), a não ser que haja ainda outro motivo legal a obstar a isto.
IV – DECISÃO
Em sintonia com o acima exposto, acordam em conceder provimento ao recurso final do Autor, revogando, por conseguinte, a sentença recorrida de absolvição da Ré do pedido, e ordenando o conhecimento pelo Tribunal a quo do pedido formulado na petição inicial (com observância do julgado já feito pelo presente Tribunal ad quem quanto à questão de prescrição de créditos), a não ser que haja ainda outro motivo legal a obstar a isto.
Custas do recurso final do Autor a cargo da Ré.
Macau, 13 de Janeiro de 2011.
____________________________
Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto vencedor)
____________________________
Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)
____________________________
José Maria Dias Azedo
(Vencido. Dou como reproduzido a declaração de voto que anexei ao Acórdão hoje prolatado no Proc. n.º 611/2007)
(Relator do processo)
Processo n.º 566/2008(II) Pág. 1/13