Processo nº 845/2010(/) Data: 27.01.2011
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “ofensa à integridade física por negligência”.
Erro notório na apreciação da prova.
Negligência.
SUMÁRIO
1. O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.
2. É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.
3. Comete o condutor de um veículo o crime de“ofensa à integridade física por negligência” se, por falta de cuidado na condução vier a causar um acidente de viação do qual resultarem lesões para terceiro.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 845/2010(()
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Em audiência colectiva respondeu A, com os sinais dos autos, decidindo, a final, o Tribunal:
“A) Condenar o arguido, A, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de dois crimes de ofensas à integridade física por negligência, p.p. pelo artigo 142º, nº 1 do Código Penal, conjugado com o artigo 66º, nº 1 do Código da Estrada, na pena de 180 dias de multa à taxa diária de MOP150 por cada crime, e condená-lo, pela prática de uma contravenção p.p. pelo artigo 14º, nº 1, conjugado com o artigo 72º, nº 1 do Código da Estrada, na pena de multa de MOP800;
B) Em cúmulo jurídico, condenar o mesmo na pena de 300 dias de multa à taxa diária de MOP150, num total de MOP45,000, ou 200 dias de prisão, caso não seja pague a multa ou esta seja substituída pelo trabalho, e na pena de multa de MOP800.
C) aplicar ao arguido duas sanções de suspensão da validade da licença de condução, três meses por cada sanção, o que prefaz um período de suspensão da validade da licença de condução de seis meses (artigo 73º, nº 1, al. a) do Código da Estrada).
D) Além disso, condena o arguido a pagar, ao ofendido, C, uma indemnização, no montante de MOP1,000, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros legais contados a partir do trânsito em julgado deste acórdão até integral pagamento.”; (cfr., fls. 164 a 168 e 220 a 221 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado, traz o arguido o presente recurso, concluindo nos termos seguintes:
“1) O recorrente foi condenado pelo acórdão recorrido, pela prática de dois crimes de ofensas à integridade física por negligência, p.p. pelo artigo 142º, nº 1 do Código Penal, conjugado com o artigo 66º, nº 1 do Código da Estrada.
2) Salvo o devido respeito, o recorrente não se conforma com o acórdão recorrido, vem interpor o presente recurso.
3) Conforme a declaração da testemunha, D, à fl. 34 dos autos, e a declaração prestada na audiência pela mesma, verifica-se que
4) na altura, o ofendido violou o artigo 28º, nº 3, al. c) do Código da Estrada – disposições relativas à ultrapassagem.
5) Isto está em conformidade com as fotografias às fls. 14, 25, 44, 47 e 48 relativas ao embate entre os dois veículos.
6) Por isso, o facto de “…o ciclomotor conduzido por C efectuou uma ultrapassagem para passar à frente do dito automóvel na beira direita da estrada…” devia ser enumerado na “matéria de factos provados”.
7) No entanto, o mencionado facto não foi aludido na “matéria de factos provados”, o que levou à condenação do arguido.
8) O facto que devia ser abrangido mas não foi abrangido na “matéria de factos provados” é relevante para a determinação da pena.
9) Porquanto, numa estrada tão estreita e de sentido único era impossível para o arguido ter consciência de que alguma viatura fizesse uma ultrapassagem que não era proibido por lei.
10) Não há dúvida que, para além dos factos não favoráveis o Tribunal devia considerar também os factos favoráveis ao arguido.
11) Em face dos motivos invocados, podemos verificar dos dados constantes dos autos que o acórdão recorrido violou as regras da experiência comum na apreciação dos factos, pelo que não incluiu no acórdão recorrido o facto indicado no nº 14 desta motivação de recurso, o que resultou na condenação do recorrente.
12) Pelo exposto, o acórdão recorrido violou as regras da experiência comum na apreciação dos factos, padecendo assim do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 400º, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal. Deve o Tribunal declarar nulo o acórdão recorrido.
13) Caso assim não entenda, o recorrente não se conforma com o entendimento baseando-se nos seguintes fundamentos:
14) Em primeiro lugar, mantemos os fundamentos acima invocados. Dos fundamentos acima invocados, verifica-se que a colisão entre o automóvel conduzido pelo recorrente e o veículo do ofendido foi, de facto, provocado pelo ofendido que praticou naquele momento um acto de condução contrário à lei.
15) Não podemos esperar que um utente da via pública possa saber ou prever, a qualquer momento e em qualquer lugar, se outro utente da via pública tem, ou não, a intenção de praticar acto de condução contrário à lei.
16) Pelo exposto, o embate mencionado não foi previsível, não havendo ninguém que soubesse ou previsse e deixasse acontecer a colisão. O recorrente não devia ser julgado culpado, mas o acórdão recorrido não assim entendeu.
17) O acórdão recorrido violou o artigo 14º do CP por julgar o recorrente culpado, enfermando, pois, do vício de interpretação errada da lei, previsto no artigo 400º, nº 1 do Código de Processo Penal, assim sendo, devendo ser declarado nulo.
18) Entendemos que o Tribunal deve aplicar correctamente o artigo 14º do Código Penal e declarar o recorrente não culpado e, em consequência, absolver o mesmo.”
Pede ainda que:
“(1) Seja admitido o presente recurso mais os anexos apresentados; e solicita ao Tribunal de Segunda Instância que
(2) Seja declarada a nulidade do acórdão recorrido por violar as regras da experiência comum, por qual padecendo do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 400º, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal.
Caso assim não entenda,
(3) Seja declarada a nulidade do acórdão recorrido por este violar o artigo 14º do Código Penal, padecendo, pois, do vício de interpretação errada da lei, previsto no artigo 400º, nº 1 do Código de Processo Penal.
(4) Seja o recorrente declarado não culpado e, por consequência, absolvido.”; (cfr., fls. 186 a 195 e 231 a 235).
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Respondendo, conclui o Exm° Magistrado do Ministério Público que:
“– Não foi requerida a documentação da prova produzida na audiência de julgamento pelo que a matéria de facto está fixada;
– O douto acórdão recorrido não enferma de qualquer dos vícios invocados pelo recorrente;
– a matéria de facto fixada é suficiente e nela constam os elementos constitutivos do crime por que o arguido foi condenado.
- A pena aplicada é justa e equilibrada.”
Pugna assim pela confirmação da decisão recorrida; (cfr., fls. 200).
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Admitido o recurso, e remetidos os autos a este T.S.I., em sede de vista juntou o Exm° Procurador-Adjunto o seguinte douto Parecer:
“O nosso Exm°. Colega demonstra, cabalmente, a sem razão do recorrente.
E nada temos a acrescentar, de relevante, às suas judiciosas considerações.
O arguido invoca o vício referido na al. c) do n°. 2 do art. 400° do C. P. Penal.
Mas mais não faz, realmente, do que controverter a matéria de facto fixada, afrontando o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 114° do C. P. Penal.
Estão em causa factos cometidos por negligência.
E, face a essa matéria, não pode questionar-se o preenchimento do respectivo tipo de ilícito - a violação de cuidado a que, segundo as circunstâncias, o agente está obrigado, isto é, a violação do cuidado objectivamente devido - e do inerente tipo de culpa - a violação do cuidado que o agente é capaz de prestar, segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais.
Não se vislumbra, assim, também, qualquer reparo no âmbito do art. 14° do C. Penal.
Deve, em conformidade, o recurso ser julgado manifestamente improcedente (com a sua consequente rejeição, nos termos dos art°s. 407°, n°. 3-c, 409°, n° 2-a e 410°, do C. P. Penal).”(cfr., fls. 239 a 240).
Fundamentação
Dos factos
2. Deu o Colectivo a quo como provada a seguinte matéria de facto:
“Em 27 de Setembro de 2005, pelas 14H53, o arguido, A, conduzia o automóvel ligeiro (matrícula nº MK-XX-XX) e circulava pela Rua Nova à Guia em direcção à Estrada de S. Francisco.
Na altura, o estado do tempo era bom, o piso estava seco, a iluminação era suficiente e o trânsito fluiu normalmente.
No momento em que chegou ao cruzamento da Rua Nova à Guia e da Rua de Surpresa, o arguido virou o carro para a direita entrando para a Rua de Surpresa.
Quando fez o acto acima referido, o arguido não reparou que estava um ciclomotor (matrícula CM-XXXXX) a circular, no mesmo sentido, no lado direito do seu automóvel.
A ciclomotor de matrícula CM-XXXXX era conduzido por B e levava como passageira C.
Tal acto levou com que o automóvel do arguido embatesse com a parte frontal direita no ciclomotor de matrícula CM-XXXXX. O condutor da mota desequilibrou-se e caiu da mota em conjunto com a passageira, D.
O choque causou directa e inevitavelmente contusões de tecido mole da palma esquerda e dos joelhos de C, provocando-lhe ofensas simples à integridade física e precisando de três dias para se recuperar. Vide o relatório pericial de clínica médico-legal em fl. 33 dos autos para a descrição pormenor dos ferimentos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido nesta acusação.
O choque causou directa e inevitavelmente contusões de tecido mole do cotovelo e joelho esquerdos de D, provocando-lhe ofensas simples à integridade física e precisando de três dias para se recuperar. Vide o relatório pericial de clínica médico-legal em fl. 41 dos autos para a descrição pormenor dos ferimentos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido nesta acusação.
No caso, o ciclomotor de CM-XXXXX também sofreu danos: o pisca-pisca esquerdo partiu-se, riscas na parte frontal da tampa plástica do punho, no manete de travão da frente do lado esquerdo e na parte esquerda frontal do guarda-lama (vide o relatório de inspecção de veículo em fl. 43, cujo teor se dá por integralmente reproduzido nesta acusação).
O arguido fez uma manobra à direita sem notar que estava outro veículo a circular no seu lado direito, o que provocou o acidente, por consequência, ferimentos a terceiros e danos à mota.
Com a referida conduta o arguido violou os deveres de prudência na condução de veículos, resultando na ocorrência do acidente.
O arguido agiu voluntária e conscientemente, sabendo bem que a sua conduta era proibida e punida pela lei.
O arguido é escriturário, auferindo um salário mensal de MOP15.800.
É solteiro e não tem ninguém a seu cargo.
Não confessou os factos e é primário.
O ofendido, C, deseja que seja indemnizado por danos sofridos mas a ofendida, D, alegou não quer indemnização.”; (cfr., fls. 212 a 215).
Do direito
3. Como se colhe do que se deixou relatado, traz o arguido ora recorrente o presente recurso, imputando ao Acórdão recorrido o vício de “erro notório na apreciação da prova” e “violação do art. 14° do C.P.M.”.
Porém, e como se consignou em sede de exame preliminar, mostra-se-nos ser o recurso “manifestamente improcedente”, e por isso, de rejeitar.
Eis o porque deste nosso entendimento.
— Quanto ao imputado “erro notório na apreciação da prova”.
Afirma, em síntese, o ora recorrente, que o Tribunal a quo não deu como provada a versão dos factos apresentada em sede do depoimento de uma testemunha – D – e que, por isso, incorreu no dito vício.
Ora, desde já se consigna que, no caso, não se procedeu à gravação dos depoimentos prestados, pelo que mal se percebe a supra aludida afirmação.
Seja como for, há que ter presente que como repetidamente tem este T.S.I. decidido:
“O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”; (cfr., v.g., Ac. de 14.06.2001, Proc. n° 32/2001, do ora relator).
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.”; (cfr., v.g., Ac. de 20.09.2001, Proc. n° 141/2001, do ora relator).
Constatando-se que com o que alega o recorrente mais não faz o mesmo que tentar impor a sua versão dos factos, afrontando assim o princípio de livre apreciação da prova estatuído no art. 114° do C.P.P.M., nada mais há a acrescentar sobre a questão.
— Quanto à alegada “violação do art. 14° do C.P.M.”:
Pois bem, nos termos deste comando legal:
“Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização de um facto que preenche um tipo de crime.”
E atento o assim estatuído, evidente é que ao ora recorrente não assiste razão.
Com efeito, o Colectivo a quo deu, (em síntese), como provado que:
– o arguido, no dia e local constantes da sentença, conduzia um veículo automóvel pela Rua Nova a Guia em direcção à Estrada de São Francisco;
– ao chegar ao cruzamento formado por aquela primeira via, com a Rua da Surpresa, efectuou uma manobra de virar à direita a fim de tomar esta via;
– na altura circulava na mesma faixa de rodagem e à sua direita o motociclo CM-XXXX conduzido por C e onde seguia como passageira D; e que,
– ao efectuar a referida manobra para a direita, a parte dianteira direita do veículo conduzido pelo arguido embateu no motociclo fazendo que este se desequilibrasse caindo ao chão com os seus ocupantes, os quais sofreram ferimentos.
Finalmente, deu igualmente como provado que o arguido, ao efectuar a citada manobra à direita, não atentou no ciclomotor que circulava ao seu lado direito no mesmo sentido e direcção, e que, por isso, violou o dever de condução “cautelosa”; (cfr., fls. 199 a 200).
Ora, sendo, (em síntese), esta a factualidade que do julgamento resultou assente, inquestionável é o cometimento pelo recorrente dos crimes em questão na forma negligente, tal como foi condenado.
Apreciadas que assim ficam as questões colocadas, e sendo o recurso manifestamente improcedente, impõe-se a sua rejeição.
Decisão
4. Nos termos que se deixam expostos, e em conferência, acordam rejeitar o recurso; (cfr., art°s 409°, n° 2, al. a) e 410°, n° 1 do C.P.P.M.).
Pagará o recorrente a taxa de justiça de 6 UCs, e, pela rejeição, o equivalente a 4 UCs; (cfr., art. 410°, n° 4 do C.P.P.M.).
Macau, aos 27 de Janeiro de 2011
José Maria Dias Azedo (Relator)
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
T Processo redistribuído ao ora relator em 10.01.2011.
. Processo redistribuído ao ora relator em 10.01.2011.
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