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Processo n.º 529/2010
(Recurso civil e laboral)

Data: 17/Fevereiro/2011

Recorrente:
A

Recorridas:
Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L. (澳門旅遊娛樂有限公司)

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    
    I – RELATÓRIO

A, melhor identificada nos autos, patrocinada por advogado, veio interpor contra Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L., , igualmente melhor identificada nos autos, pedindo a condenação da Ré, a título de créditos laborais a pagar- lhe a quantia de MOP$863.980,00, acrescida dos respectivos juros.
    Julgada a causa, foi decidido absolver a Ré do pedido.
    Da decisão final vem recorrer o A., alegando, em síntese:
    Ao caso sub judicio apenas se pode aplicar o RJ.R.T da R.A.E.M., uma vez que o mesmo não contém lacuna que deva ser integrada, não se podendo fundar a Sentença recorrida no art. 854° do Código Civil - art. 3° do D.L. 39/99/M e art. 6°, n.º 3º, 8°, 9° do C.C. e 25° e 33° do RJ.RT.
    De acordo com o disposto no art. 33° do Decreto-Lei n.º 84/89/M, de 03 de Abril, os direitos dos trabalhadores a créditos laborais, designadamente a salários por trabalho efectivamente prestado, são inalienáveis e irrenunciáveis.
    Ao não aplicar ao caso concreto a norma do art. 33° do R.J.RT., a Douta Sentença recorrida sofre de nulidade - art. 571°, n.º 1 alínea d) do C.P.C..
    Os créditos laborais dos trabalhadores da R.A.E.M. não têm um tratamento diferenciado, i.e., indisponíveis na vigência do contrato de trabalho e disponíveis após essa vigência.
    Uma tal intepretação, no sentido da sua disponibilidade após a cessação da relação laboral, não resulta nem da letra da Lei, nem do seu espírito, nem das circunstâncias efectivas e históricas em que foi criada.
    Bem como violaria o Princípio da Igualdade, pois os direitos dos trabalhadores nas mesma circunstâncias da recorrente têm vindo a ser acauteladas pelos Tribunais da R.A.E.M., existindo sobre a questão Jurisprudência Assente.
    A "Declaração" assinada pela recorrente não consitui, por falta de todos os legais requisitos e por violação do art. 33º do R.J.RT. uma remissão ou renúncia absdicativa, sendo nula e de nenhum efeito.
    A recorrente, embora tenha cessado o seu contrato de trabalho com a recorrida, continuou a exercer funções para a sua subsidiária, existindo entre aquela e a SJM, subsidiária da recorrida e por ela controlada, uma relação de trabalho, que a impedia de, livremente, formar uma vontade, com o que os documentos que suportam a Decisão recorrida são nulos e inquinam a mesma art. 259º do CC.
    A Doutrina portuguesa que suporta a Decisão recorrida não tem aplicação ao caso concreto, pelo que padece a mesma de ausência de fundamentação - art. 571°, n.º 1, alíneas b) e d) do C.P.C.
    A "Declaração" assinada pela recorrente é vaga e imprecisa, sendo certo que os requisitos do art. 854° do CC, sem conceder, são a existência de um direito e não a mera hipótese de existência ou probabilidade de existência do mesmo, e a certeza, pela concretização, do direito a que se renúncia, quer pela sua especificação exacta, quer pelo reconhecimento da sua existência, o que não acontece in casu.
    A "Declaração" da recorrente e documentos constantes dos autos, reportam-se a um "prémio de serviço" e não a um qualquer direito efectivado, não representando, ainda, a perda de um valor pecuniário/patrimonial, por si só e sem contrapartida.
    Ainda, para que se dê a remissão/renúncia consensual do direito, nos termos do art. 854° do CC, é condição essencial o consentimento do devedor na remissão, que inexiste nesta concreta situação.
    Ninguém pode dar quitação de um crédito que ignora e cuja titularidade nem sequer lhe é reconhecida, donde, não existindo qualquer remissão/renúncia abdicativa da recorrente aos seus créditos laborais e não sendo permitido retirar qualquer efeito liberatório de uma "Declaração" viciada, está a Decisão recorrida ferida de nulidade - cfr. arts. 854°, 239° e 240° do CC e art. 571°, n.º 1 alíneas b) e d) do C.P.C.
    Uma vez mais sem conceder, a "Declaração" e demais documentos que postulam a Decisão recorrida, padecem de erro vício - art. 240° do CC - uma vez que a recorrente foi levada a assiná-los.
    Atento o inderrogável Princípio do Favor Laboratoris, elaborado atentas as especificidades do Direito de Trabalho e a necessidade de proteger o trabalhador, encontrando-se a solução jurídica que lhe seja mais favorável, uma vez que é a parte débil em qualquer relação laboral, deve sempre entender-se a "Declaração" sub judicio como declaração retratável - na senda da Jurisprudência da R.A.E.M., sob pena de violação do art. 6° do D.L. n.º 24/89/M, de 3 de Abril.
    Sem conceder, mesmo que a "Declaração" assinada tivesse feito surgir o contrato de remissão de dívida, de acordo com as normas imperativas dos arts. 6° e 2°, alínea d) do R.J.R.T., não podia este surtir qualquer efeito, pois é, em concreto, muitíssimo desfavorável à recorrente.
     Termos em que entende dever ser declarada nula e de nenhum efeito a sentença proferida, com as legais consequências, designadamente, ser a presente Acção julgada, in tottum, procedente por provada, assim se fazendo a esperada.
     
      A este recurso respondeu a Ré defendendo a bondade do decidido.
     Foram colhidos os vistos legais.
    
II – FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
    “1. A Ré teve por objecto social a exploração de jogos de fortuna ou azar, e a indústria hoteleira, de turismo, transportes aéreos, marítimos e terrestres, construção civil, operações em títulos públicos e acções nacionais e estrangeiros, comércio de importação e exportação.
    2. A Ré foi, até 31 de Março de 2002, a única concessionária de jogos de fortuna ou azar em Macau, sendo operadora de todos os casinos aqui existentes.
    3. A Autora começou a trabalhar para a Ré STDM em 01 de Janeiro de 1970, recebendo retribuição por parte desta, exercendo primeiro as funções de assistente a clientes, posteriormente as de croupier.
    4. O rendimento da Autora era constituído por um salário diário, acrescido de gratificações, gratificações essas que eram variáveis consoante o montante de gorjetas diárias recebidas dos clientes do casino.
    5. A Autora deixou de trabalhar para a Ré em Julho de 2002.
    6. A Autora prestou serviços em turnos, conforme horários fixados pela entidade patronal.
    7. Os turnos eram os seguintes:
    1. 1° e 6° turnos, das 07h00, às 11h00 e das 03h00 até às 07h00:
    2. 3° e 5° turnos, das l5h00 às 19h00 e das 23h00 às 03h00 (do dia seguinte);
    3. 2° e 4° turnos, das 11h00 às 15h00 e das 19h00 às 23h00.
    
    8. Em 24 de Julho de 2003, a Autora subscreveu a declaração junta a fls.67, no âmbito da qual referiu expressamente o seguinte: “Eu A titular do BIR n. o 5/XXXXXX/7 recebi, voluntariamente, a título de prémio de serviço, a quantia de MOP$29.790.10 da STDM, referente ao pagamento da compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a STDM. Mais declaro e entendo que, recebido o valor referido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a STDM subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma, à STDM, na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral.”
    9. A Autora, no âmbito do processo de contravenção laboral n.º 1476/2002 que correu termos na Direcção dos Serviços de Trabalho e Emprego recebeu da ora Ré a quantia de MOP$14.895,05, em conformidade com os documentos juntos a fls. 132 a 134 dos autos.”

    
    III - FUNDAMENTOS
    1. A questão fulcral prende-se com o valor da declaração assinada pela trabalhadora e pelo representante da STDM relativa à relação laboral entre eles cessada.
    
    2. A Mma Juiz a quo julgou que tal declaração constituía uma declaração extintiva de qualquer dívida da entidade patronal.
     Insurge-se a recorrente, refutando a tese de que tal declaração possa ser tomada como remissão, renúncia ou abdicação dos créditos.
    Para além de que tais créditos não devem merecer apenas protecção durante a vigência do contrato, mantendo-se a sua indisponibilidade no momento da cessação do contrato.
     Antes de esmiuçar esta questão, importa caracterizar a natureza e alcance da declaração que o trabalhador assinou, para assim se ver se ela está ou não regulada no RJRL. Só se se concluir que se trata de uma renúncia de direitos indisponíveis abrangida por aquele Regime se poderá afirmar a inaplicabilidade do regime geral consagrado na lei civil.
    Analisando a transcrita declaração, os seus termos, em chinês e em português, são claros e o sentido que um declaratário normal – e face ao disposto no artigo 228º do CC, é esse o sentido que há que relevar - dali se retira que os trabalhadores, face à rescisão do contrato de trabalho, no que respeita à relação laboral subsistente até então, receberam uma certa quantia, referente a compensações de eventuais direitos, nomeadamente relativos aos descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios e licença de maternidade, aceitando que nenhuma outra quantia fosse devida.
    Em linguagem simples, deu a A. quitação da dívida.
    
    3. Mas vem agora demandar outros montantes, quantitativamente muito maiores, numa desconformidade que desde logo impressiona, em relação àqueles que aceitou receber. E impressiona, porque em face de tais montantes, se não se considerava paga, face ao prejuízo que se afigurava, não devia ter assinado essa declaração.
    Dir-se-á que não tinha consciência do montante dos créditos ou que foi induzido em erro; mas essa é uma outra questão que devia ter sido alegada e comprovada, não se deixando de adiantar que tal como agora ocorreu não havia razões para se aconselhar sobre o alcance dos créditos a que efectivamente teria direito.
    Essa, contudo, é questão que não importa agora apreciar.
    
    4. Pretende a recorrente que não se tratou de uma renúncia de direitos, aliás, indisponíveis.
    E para tanto invoca a natureza indisponível dos direitos concedidos ao trabalhador, a natureza proteccionista daquele diploma em relação a tais direitos, a necessidade de protecção da parte mais fraca, a posição dominante da concessionária empregadora, a menor margem de liberdade do trabalhador.
    Tal declaração respeitaria apenas ao recebimento de um prémio de serviço.
    Não tem razão a recorrente.
    Não obstante ser verdade o que diz quanto à enunciação daqueles princípios, a protecção que deve ser dispensada ao trabalhador não pode ser absoluta nem fazer dele um incapaz sem autonomia e liberdade, ainda que aceitando os condicionamentos específicos decorrentes de uma relação laboral.
    É verdade que, desde logo, o RJRL ,no seu art. 1°, pugnando pela "observância dos condicionalismos mínimos" nele estabelecidos, prevê que
    “O presente diploma define os condicionalismos mínimos que devem ser observados na contratação entre empregadores directos e trabalhadores residentes, para além de outros que se encontrem ou venham a ser estabelecidos em diplomas avulsos.”
     E no art. 33º do R.J.R.T.
    ”O trabalhador não pode ceder, nem a qualquer outro título alienar, a título gratuito ou oneroso, os seus créditos ao salário, salvo a favor de fundo de segurança social, desde que os subsídios por este atribuídos sejam de montante igual ou superior ao dos créditos.”
    Daqui decorre que nenhum desses artigos contempla ex professo a situação em apreço. Antes respeitam a situações diferentes, nomeadamente o artigo 33º o que prevê é a impossibilidade de renúncia a um salário e não já às compensações devidas por trabalho indevido.
    Tais preceitos dispõem sobre a regulação do exercício de uma relação laboral ainda em aberto, compeendendo-se que por essa via, ao trabalhador sejam garantidos aqueles mínimos que o legislador reputa como as condições mínimas de exercício humano, digno e justo do trabalho a favor de outrem.
    Tais cautelas já não são válidas quando finda essa relação, como acontece no caso presente.
    E também não são válidas quando já não está em causa o exercício dos direitos, mas apenas uma compensação que mais não é do que a indemnização pelo não gozo de determinados direitos.
    Não deixaria de ser abusivo e contrário à autonomia da vontade e liberdade pessoal, próprias do direito privado, que alguém, incluindo o trabalhador, não pudesse ser livre quanto ao destino a dar ao dinheiro recebido, ainda que a título de compensações auferidas por créditos laborais.
    A não se entender desta forma, pese embora a aberração do argumento, ter-se-ia de obrigar o trabalhador a aceitar o dinheiro e, mais, importaria seguir o destino que ele lhe daria.
    
    4. Diferentes são as coisas quando o trabalhador está em exercício de funções e a sociedade exige – exigência plasmada na lei - que as condições de trabalho sejam humanas e dignificantes, não se permitindo salários ou condições concretas de exercício vexatórias e achincalhantes, materializando a garantia da sua subsistência e do seu agregado familiar. Essa tem de ser a inspiração do intérprete relativamente ao princípio favor laboratoris, mas que não pode ir ao ponto de converter o trabalhador num incapaz de querer, entender e de se poder e dever determinar.
    Nem aquele princípio, consagrado no artigo 5º do mesmo supra citado Regime nos seguintes termos “1. O disposto no presente diploma não prejudica as condições de trabalho mais favoráveis que sejam já observadas e praticadas entre qualquer empregador e os trabalhadores ao seu serviço, seja qual for a fonte dessas condições mais favoráveis. 2. O presente diploma nunca poderá ser entendido ou interpretado no sentido de implicar a redução ou eliminação de condições de trabalho estabelecidas ou observadas entre os empregadores e os trabalhadores, com origem em normas convencionais, em regulamentos de empresa ou em usos e costumes, desde que essas condições de trabalho sejam mais favoráveis do que as consagradas no presente diploma.”, poderá ter o alcance que se pretende, de limitar a capacidade negocial do trabalhador de forma tão extensa.
    O princípio do tratamento mais favorável "...assume fundamentalmente o sentido de que as normas jurídico-laborais, mesmo as que não denunciem expressamente o carácter de preceitos limitativos, devem ser em princípio consideradas como tais. O favor laboratoris desempenha pois a função de um prius relativamente ao esforço interpretativo, não se integra nele. É este o sentido em que, segundo supomos, pode apelar-se para a atitude geral de favorecimento do legislador - e não o de todas as normas do direito laboral serem realmente concretizações desse favor e como tais deverem ser aplicadas"1
    Noutra perspectiva2, considera-se que tratamento mais favorável ao trabalhador deve ser entendido em termos actualistas, como o conjunto dos valores que o Direito do Trabalho, de modo adaptado, particularmente defende e entre os quais, naturalmente, avulta a protecção necessária ao trabalhador subordinado. Quando haja um conflito hierárquico entre fontes do Direito do Trabalho, aplicam-se as normas que estabelecem tratamento mais favorável para o trabalhador, sejam elas quais forem; tal não se verificará quando a norma superior tenha uma pretensão de aplicação efectiva, afastando a inferior.
    Donde decorre que o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador não é erigido para sufragar toda e qualquer interpretação que permita o alargamento de uma tutela proteccionista injustificada, tendo antes na sua génese a exclusão de um regime, entre dois ou mais aplicáveis, que lhe seja menos favorável.
    
    5. Nesta conformidade falece eventual invocação do artigo 6º do RJRL ”São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei”, tendo-se como condições de trabalho, nos termos do art. 2º, al. d) todo e qualquer direito, dever ou circunstância, relacionados com a conduta e actuação dos empregadores e dos trabalhadores, nas respectivas relações de trabalho, ou nos locais onde o trabalho é prestado.
    Isto porque, como se disse, já não se trata de conduta e actuação no local de trabalho e exercício de funções.
    Tal é a situação dos autos, em que se mostra finda a relação laboral e assim se tem entendido em termos de Jurisprudência comparada.3
    
    6. Quanto à natureza e validade da declaração.
    Afastando-se, como se viu, a aplicabilidade do RJRL em relação à proibição de tal estipulação, importa atentar na natureza que assume a declaração emitida pelo trabalhador aquando da cessação da relação laboral.
    Em termos gerais, a remissão de dívida traduz-se na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação, feita com o acordo do devedor.
A primeira questão que se coloca é a de saber se o documento em causa constitui realmente um contrato de remissão. Pode-se entender que a referida declaração não configura um contrato de remissão, pois que tal implicaria uma identificação e reconhecimento de créditos de que prescindiria.
    Mas, o certo é que tal documento contém, pelo menos, uma declaração de quitação que, dada a sua amplitude, abrange todos os créditos resultantes da relação laboral em causa, incluindo os que eventualmente pudessem resultar da sua cessação.
A remissão é uma das causas de extinção das obrigações e traduz-se na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação que lhe é devida, feita com a aquiescência da contraparte4, revestindo, por isso, a forma de contrato, como claramente se diz no art.º 854º, n.º 1, do C.C.: "O credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor."

7. O que verdadeiramente caracteriza o contrato de remissão é a renúncia do credor ao poder de exigir a prestação que lhe é devida pelo devedor. Ao contrário do que acontece com o cumprimento (em que a obrigação se extingue pela realização da prestação devida) e ao contrário do que acontece na consignação, na compensação e na novação (em que o interesse do credor é satisfeito, não através da realização da prestação devida, mas por um meio diferente), na remissão, tal como na confusão e na prescrição, o direito de crédito não chega a funcionar. O interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indirecta ou potencialmente e, todavia, a obrigação extingue-se.5
O direito romano admitia a acceptilatio (remissão de uma obrigação verbal, mediante reconhecimento de se ter recebido a prestação, remissão que extinguia o crédito ipso jure), o pactum de non petendo (convenção pela qual o credor prometia ao devedor que não faria valer o crédito, definitiva ou temporariamente, contra todos - pactum in rem - ou contra determinada pessoa - pactum in provissem, produzindo o pacto o efeito de atribuir uma exceptio contra o crédito) e o contrarius consensus (convenção pela qual se extinguia toda uma relação obrigacional, derivada de um contrato consensual, o que só era possível se nenhuma das partes tinha ainda cumprido6
    Pode dizer-se, num certo sentido que, hoje, na remisão, - artigo 854ºdo Código Civil - extinguindo-se a obrigação, o interesse do credor não se satisfaz, nem sequer indirecta ou potencialmente.

8. Mas mesmo que, ainda porventura por algum excesso de rigor formal, se considerasse que o documento em causa não pudesse ser qualificado de remissão, por se entender ser necessário que a declaração nele contida tivesse carácter remissivo, isto é, que a parte tivesse declarado que renunciava ao direito de exigir esta ou aquela concretizada prestação, não se deixará de estar sempre perante uma declaração de quitação em que se consideravam extintos, por recíproco pagamento, ajustado e efectuado nessa data, toda qualquer compensação emergente da relação laboral, o que vale por dizer que todas as obrigações decorrentes do contrato de trabalho tinham sido cumpridas.

    Como diz Leal Amado7., uma quitação com aquela amplitude é, sem dúvida, uma quitação sui generis, uma vez que os credores não se limitaram a atestar que receberam esta ou aquela prestação determinada. Ao declarar que recebia as compensações a determinado título e que mais nenhum direito subsistia, por qualquer forma, nada devendo reciprocamente, atestaram que receberam todas as prestações que lhe eram devidas. E essa forma de quitação, por saldo de toda a conta, não deixa de ser admitida em direito.

    Perante isto, em vez de se perguntar se o autor renunciou ao direito às prestações que eventualmente lhe seria devida em consequência da cessação da relação laboral, perguntar-se-á se essas prestações já se mostram realizadas ou se se mostram extintas, sendo que a resposta a esta última questão, tida como relevante, é seguramente afirmativa, perante a clareza daquela afirmação.
    Na verdade, como inequivocamente decorre do teor do documento, os direitos abrangidos pela declaração emitida são os emergentes da relação contratual de natureza profissional que entre A. e Ré se manteve até àquela data.
    
    8. Poder-se-á ainda dizer que a extinção da relação laboral acordada, tornou impossível o cumprimento da obrigação de pagamento ao Autor do que foi por ele solicitado. Daí que ele passasse a ser titular de um outro direito; tal como já se assinalou, o crédito peticionado é o crédito à indemnização devida pelo incumprimento das obrigações que decorreram para a entidade patronal de lhe garantir os aludidos repousos enquanto para ele trabalhou.
    Esta perspectiva afigura-se particularmente relevante.
    É que não se trata da disponibilidade de direitos, mas sim da compensação pela sua não satisfação.

    Pelo contrato havido e comprovado, no âmbito do qual foi emitida aquela declaração, as partes acordaram sobre o montante de indemnização ou "compensação" devida à Autora e, com o recebimento dessa quantia, a correspondente obrigação da Ré, surgida em substituição da obrigação inicial, extinguiu-se pelo pagamento de que a A. deu total quitação, sendo legítima a transacção extrajudicial sobre o conteúdo ou extensão de obrigação da Ré nos termos do artigo 1172º do CC, não abrangida já por qualquer indisponibilidade.

    9. Somos assim, face à caracterização jurídica do acordo celebrado, em considerar que a alegação sobre a vaguidade da declaração de reconhecimento de cumprimento e extinção de toda e qualquer prestação que fosse porventura devida não colhe, face à sua admissibilidade.
    Para além de que não se deixaram de concretizar a que título ocorreu o acerto final, quais as compensações a que se procedia, dando-se quitação de todas e eventuais prestações não abrangidas por aquele recebimento.
    
    10. Sobre a eventual situação de inferioridade e dependência ao assinar o recibo, pelo que, não manifestando qualquer vontade negocial, não tomou uma opção livre e consciente, uma escolha livre no tocante à assinatura da referida declaração, estaríamos perante uma situação de erro vício previsto no artigo 240º do CC, face à indução da conduta pela entidade pública tutelar e viciação da vontade, por temor, face à continuação numa sociedade subsidiária da primeira empregadora.
    Ou, noutra perspectiva numa situação de coacção moral ou de negócio usurário contemplados nos artigos 240º e 275º do CC.
    Trata-se de matéria não comprovada.
    Para além de que dos termos da sua alegação sempre decorreria contradição insanável e que reside em saber o que viciou a vontade da declarante, se o erro, se o temor.
    Aquele por não estar inteirada do alcance do conteúdo da declaração, cuidando que não estavam em dívida as importâncias ora reclamadas; este, pelo receio de perder o emprego na nova empregadora.
    
    11. Quanto à violação do princípio da igualdade, não se alcança qual o âmbito do invocado princípio em sede do direito privado, face ao predomínio da autonomia da vontade e da liberdade contratual. O Direito privado não acolhe esse princípio com o alcance que lhe é dado pelo recorrente, sendo que a especificidade e o tratamento de cada caso pode levar a soluções diferentes, bastando até que divirjam as interpretações dos diferentes aplicadores do Direito. O problema colocar-se-á então em sede de salvaguarda de um outro valor a preservar e que é o da segurança, mas essa é uma outra questão que não releva de todo neste momento.
    Entrarão aí critérios de uniformização de Jurisprudência que caberá ao legislador acautelar.
    Assim se conclui pela não existência dos apontados vícios, sendo de manter a douta decisão proferida.
    
    12. Nem se diga, como parece pretender a trabalhadora, ora recorrente, que não houve uma cessão da relação laboral com a STDM, mantendo-se essa relação com a SJM, porquanto se trata de uma outra empregadora, sendo diversa a personalidade jurídica de ambas e por todas as razões já abundantemente analisadas neste Tribunal.8
    
    Não se provando que a STDM transferiu todos os seus elementos constitutivos para a SJM e que por força dessa transferência a SJM adquiriu todos os direitos e obrigações emergentes dos contratos de trabalho celebrados anteriormente, não se pode concluir pela manutenção da mesma relação contratual.
    13. A posição ora assumida foi, aliás, sufragada pelo TUI.9

Assim se conclui pela não existência dos apontados vícios, sendo de manter a douta decisão proferida.
    
    IV - DECISÃO
    Pelas apontadas razões, nos termos e fundamentos expostos, acordam em negar provimento ao recurso ora interposto, confirmando a decisão recorrida.
    Custas pela recorrente.
                Macau, 17 de Fevereiro de 2011,

João A. G. Gil de Oliveira
(Relator)

Ho Wai Neng
(Primeiro Juiz-Adjunto)

José Cândido de Pinho
(Segundo Juiz-Adjunto)

1 - Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, Almedina, 11.ª edição, pág. 118.
2 - Menezes Cordeiro, Direito do Trabalho, pág. 219.
3 - Acs. STJ de 20/11/03, proc. 01S4270, de 12/12/01, proc. 01S2271, de 9/10/02, proc. 3661/02
4 - A. Varela, Das obrigações em geral, Coimbra Editora, 2.ª ed., vol. II, pag. 203
5 - A. Varela - Ob. cit., pág. 204
6 - Professor Vaz Serra, BMJ 43, 57.
7 - A Protecção do Salário, pag. 225, eparata do volume XXXIX do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
8 - Acs. 244/2009 e 407/2009 deste TSI, entre outros
9 - V.g. ac. n.º 17/2008 – 11/06/2008
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