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Processo nº 563/2009(/) Data: 10.03.2011
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “emprego ilegal”.
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Contradição insanável.
Crime continuado.
Suspensão da execução da pena.



SUMÁRIO

1. O vício de “insuficiência de matéria de facto provada para a decisão” apenas ocorre quando o Tribunal não emite pronúncia sobre matéria objecto do processo.

2. Constatando-se que o Colectivo a quo emitiu pronúncia sobre toda a “matéria objecto do processo”, elencando aquela que considerou provada e não provada, não deixando também de fundamentar, em termos adequados, tal decisão, evidente é que inexiste o assacado vício da “insuficiência”.

3. Não é de se considerar verificado o vício de “contradição insanável” pelo facto de se ter dado como provado que o recorrente agiu “a mando” de um outro arguido e que (mesmo assim) agiu livre e conscientemente, sabendo que proibida e punida era a sua conduta.

4. De facto, o elemento volitivo do dolo (do recorrente), podendo ser mitigado, não é afastado ou excluído, por ter agido “a mando” do 1° arguido.

5. O conceito de crime continuado é definido como a realização plúrima do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
A não verificação de um dos pressupostos da figura do crime continuado impõe o seu afastamento.

6. “O artigo 48º do Código Penal de Macau faculta ao juiz julgador a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido quando:
– a pena de prisão aplicada o tenha sido em medida não superior a três (3) anos; e,
– conclua que a simples censura do facto e ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (cfr. art.º 40.º), isto, tendo em conta a personalidade do agente, as condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
E, mesmo sendo favorável o prognóstico relativamente ao delinquente, apreciado à luz de considerações exclusivas da execução da prisão não deverá ser decretada a suspensão se a ela se opuseram as necessidades de prevenção do crime.”


O relator,

______________________
















Processo nº 563/2009(()
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Em audiência colectiva no T.J.B. (e como 3° arguido) respondeu A, com os sinais dos autos, vindo a ser condenado como cúmplice da prática de 6 crimes de “emprego ilegal”, p. e p. pelo art. 16°, n° 1, da Lei n° 6/2004, na pena de 4 meses de prisão cada e em cúmulo jurídico na pena única de 1 ano de prisão; (cfr., fls. 410 a 417 e 552 a 554 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado, traz o arguido o presente recurso, assim concluindo a sua motivação:
“a) Vem o presente recurso interposto do acórdão proferido em 1ª Instância que, não obstante ter absolvido o arguido recorrente, A do imputado crime, em co-autoria material e na forma consumada, de auxílio à imigração ilegal p. e p. pelo art° 14°, n° 2 da Lei n° 6/2004, condenou-o como cúmplice “... e na forma consumada de 6 crimes de emprego, p. p. pelo art° 16°, n° 1 da Lei n° 6/2004, conjugado com o art° 26° e 67° do Código Penal, ... , na pena de 4 meses de prisão cada, em cúmulo jurídico dos 6 crimes, vai ser condenado o arguido, numa única pena de 1 ano de prisão efectiva."
b) Não se conforma o recorrente com a pena que lhe foi aplicada, essencialmente porque, salvo o devido respeito, existe contradição e insuficiência da matéria de facto provada para o efeito da aludida condenação e, também, quando assim se não entenda, porque estão reunidos os pressupostos do crime continuado.
c) Quanto ao recorrente, verifica-se, no tocante à matéria de facto assente, que:
- O 3° arguido pagava os salários da Companhia de Construção "B";
- Tal acontecia a mando do 1° arguido; e
- O 3° arguido sabia que os residentes da China não possuíam documentos de identificação necessários para trabalhar legalmente em Macau mas, no entanto, agiu voluntária, deliberada e conscientemente ao auxiliar o 1° arguido o proceder ao pagamento do salário dos referidos trabalhadores ilegais.
d) Isto é, se por um lado se diz que o 3° arguido agiu voluntária e deliberadamente quando auxiliou o 1 ° arguido a proceder ao pagamento do salário aos trabalhadores ilegais; por outro lado, afirma-se que tal procedimento foi consequência da relação hierárquica do 1 ° arguido sobre o 3° arguido sendo a expressão, "a mando", elucidativa desta relação hierarquica.
e) Não se tratou, pois, de uma acção deliberada e voluntária; mas de uma acção dependente de um superior hierárquico, aqui existindo, salvo o devido respeito, contradição da matéria de facto assente, o que constitui fundamento de recurso nos termos do art° 400°, n° 2 aI. b) do CPP.
Por outro lado,
f) Ora, a conduta do arguido recorrente é posterior à constituição da relação de trabalho com os 6 trabalhadores ilegais a que os autos aludem, pelo que a sua conduta não tipifica o auxilio à constituição de uma relação de trabalho.
g) Outrossim, a conduta do arguido recorrente circunscreve-se, como se disse, à ordem emanada do 1° arguido de pagar os salários àqueles trabalhadores, após a constituição da relação laboral.
h) Existe, pois, aqui, insuficiência da matéria de facto assente para a condenação do arguido recorrente como cúmplice deste crime, o que constitui fundamento de recurso, nos termos do art° 400°, n° 2, aL. a) do CPP.
Quando assim se não entenda o que se admite sem conceder
i) A imputada conduta criminosa do arguido recorrente reporta-se, tão somente, à acção de pagamento dos salários diários aos 6 trabalhadores ilegais vindos do Interior da RPC; num período limitado - apenas nos dias 10 e 11 Abril de 2006 -; e na sequência de ordem emanada, para o efeito, do 1° arguido.
j) Os factos assentes descrevem uma mesma situação, ocorrida no espaço de dois dias e em consequência de obediência a um mesmo superior hierárquico.
Tudo isto diminuindo consideravelmente a alegada culpa do arguido recorrente.
Estaríamos, assim, perante uma situação de crime continuado.
l) No caso dos autos, é inquestionável que a alegada actividade do arguido foi a mesma e é inquestionável que houve uma solicitação exterior, por parte do 1° arguido, a quem o arguido recorrente devia obediência.
É, pois, patente a existência de uma relação que, de fora e de maneira considerável, facilitou e impeliu a alegada repetição da actividade do arguido, tudo se passando num curtíssimo período de tempo.
É, deste modo, inegável a diminuta culpa do arguido recorrente, em nome de uma exigibilidade sensivelmente diminuída, pelo que, procedendo a cumplicidade deste, nos termos constantes do acórdão proferido pelo Tribunal "a quo", esta não poderá deixar de ser subsumida à figura do crime continuado, nos termos do citado art° 29°, n° 2 do CP.
m) A pena aplicável seria aquela que se reportasse à conduta mais grave que integra a continuação, logo, apenas a de "cumplicidade" no crime de "emprego ilegal", a que o Tribunal "a quo" aplicou a pena de prisão de 4 meses.
n) Tal pena de 4 meses, não obstante o Tribunal lia quo" ter expressamente referido que "... a simples censura do facto e a ameaça de prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição", deverá ser suspensa na sua execução, nos termos do art° 48° do CP, porquanto se está no presença de um arguido sem antecedentes criminais e com uma situação familiar estável dele dependente, a quem, manifestamente, uma pena de curta duração de 4 meses, traria efeitos mais permiciosos do que aqueles que se pretenderiam a cautelar com a sua prisão efectiva; podendo, aliás, sujeitar o arguido a deveres ou regras de conduta, nos termos dos art°s 49° e 50° do CP.”; (cfr., fls. 441 a 453).

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Respondendo diz o Exm° Magistrado do Ministério Público o que segue:
“Motivando e concluindo a propósito, o recorrente pede, a fínal, uma de três:
- Absolvição pura e simples por o acórdão estar inquinado dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e, bem assim, da contradição insanável da fundamentação;
- Não sendo absolvido, deve ser condenado por um crime continuado de emprego ilegal, por verificação dos pressupostos a que alude o art° 29° do C. Penal; e
- Ser a pena de 4 meses de prisão - além do mais, face à sua curta duração - suspensa na respectiva execução.
Propendemos no sentido de que, embora por razões diferentes das que aduz, lhe assiste razão.
Vejamos.
Antes de mais, e quanto aos vícios que aponta, não os enxergamos no acórdão.
Com efeito, no que tange à contradição insanável por ter sido dado como provado que agiu "voluntária, deliberada e conscientemente" e, bem assim, que agiu "a mando" do 1° arguido não nos parece que a mesma exista.
Na verdade, o elemento volitivo do dolo, na conduta deliberada e consciente que levou a cabo, podendo ser mitigado, não é afastado ou excluído por ter agido "a mando" do 1° arguido.
Depois, o elemento proibitivo do dolo também se provou, pois, tinha perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Assim, sabendo da ilegalidade do acto, poderia e deveria não o ter praticado, mas praticou-o voluntária, deliberada e conscientemente.
Todavia, o nível e grau da sua comparticipação, porque auxiliou materialmente outrem a praticar conduta dolosa, consubstancia cumplicidade - como o Tribunal mui bem entendeu - nos termos do disposto no art° 26° do C. Penal.
De modo que, como vemos, inexiste, no acórdão, o vício da contradição, na medida em que os factos provados, mais que provados e que não se provaram, harmonizam-se lógica e perfeitamente.
E, quanto ao outro vício da insuficiência, que também descortina no acórdão, olhando a factualidade provada, o dito não se encontra.
Posto isto, abordemos, agora, a questão do crime continuado que o recorrente traz à colação.
Ora, os requisitos da continuação criminosa mostram-se taxativamente previstos no art° 29° n° 2 do C. Penal:
- realização plúrima do mesmo tipo de crime;
- homogeneidade da forma de execução;
- lesão do mesmo bem jurídico;
- unidade de dolo;
e
- persistência de uma "situação exterior" que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente.
E, estes pressupostos, o recorrente tem-nos por verificados, na medida em que "Os factos assentes descrevem uma mesma situação, ocorrida no espaço de dois dias e em consequência de obediência a um mesmo superior hierárquico" .
Acontece, porém, que temos por correcta a qualificação feita, nesta parte, na acusação do MP, e, bem assim, na pronúncia do M° Juiz do JIC - fls. 172/174 e fls, 267/270 - em que, por estes factos, se entendeu que tanto o 1° arguido como o recorrente cometeram apenas um único crime de emprego ilegal p. e p. p. art° 16° n° 1 da Lei n° 6/2004;
Sendo que, no que toca ao recorrente, estamos em consonância com o Tribunal quando entendeu que se provou em julgamento ter praticado aquele ilícito enquanto cúmplice.
Seja como for, porque o bem jurídico é apenas um - a protecção e legalidade do emprego, no âmbito do equilíbrio social e económico da RAEM - é apenas de um único crime que se trata.
Ou seja, não estamos perante um valor jurídico pessoalizado ou individualizado, outrossim estamos perante a salvaguarda de um interesse colectivo da RAEM.
Nesta conformidade, entendemos que a conduta do recorrente não integra, como cúmplice, 6 crimes de emprego ilegal, nem sequer um crime continuado mas tão somente um único crime desta natureza e tipo.
A este propósito, e pelas razões antes expendidas, também se qualifica a conduta do 1 ° arguido, C como consubstanciando, em autoria material, apenas um crime de emprego ilegal p. e p. p. art° 16° n° 1 da Lei n° 6/2004.
Nesta conformidade, acolhendo Vas Exas esta perspectiva que se preconiza, por se tratar de comparticipação, a ele também aproveita, nos termos do disposto no art° 392° n° 2 al, a, do C. P. Penal.
Por último, resta-nos abordar a questão da suspensão da execução da pena.
Ora, os pressupostos da suspensão são os que vem previstos no art° 48° do C. Penal.
Sucede, porém, que o recorrente, em sede de audiência de julgamento, não assumiu nem confessou os factos que se provou ter cometido,
Pelo que não exteriorizou arrependimento - ninguém se arrepende de conduta que não assume!
Todavia, concordamos com o seu entendimento de que uma pena de 4 meses de prisão forçoso é que se considere de curta duração, susceptível de gerar um efeito perverso e pernicioso.
Aliás, penas destas, são, em regra, substituídas "por igual número de dias de multa ou por outra pena não privativa da liberdade ... excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes ... ", como manda a Lei - art° 44° n°1 do C. Penal.
E, do nosso ponto de vista, à luz dos factos provados, não nos parece que o recorrente não possa nem deva beneficiar desta regra geral.
Ou seja, propendemos no sentido de que a pena de 4 meses de prisão pelo único crime de emprego ilegal que, como cúmplice, a nosso ver, cometeu deve ser substituída por igual número de dias de multa, a qual, o alto critério de Vas Exas determinará nos termos do disposto no art° 45° n° 2 do C. Penal.
Termos em que, e nos melhores de direito, dando, nesta perspectiva, provimento ao recurso e, consequentemente, revogando, na parte que respeita ao recorrente - e, bem assim, no ponto em que, nos termos do disposto no art° 392° n° 2 al, a, do C. P. Penal, aproveitar ao 1° arguido, C - o acórdão decidido, farão Vas Exas, ora, como sempre, JUSTIÇA.”; (cfr., fls. 459 a 467).

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Admitindo o recurso, vieram os autos a este T.S.I..

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Em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador-Adjunto o seguinte douto Parecer:
“O nosso Exm°. Colega põe a nu a sem razão da recorrente, relativamente aos referidos vícios da matéria de facto.
Não se vislumbra, desde logo, a alegada contradição insanável da fundamentação.
E não se divisa, também, a existência de qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
É incontroversa, por seu turno, a inverificação da invocada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Não se vê, realmente, qualquer lacuna no apuramento da matéria de facto necessária a uma decisão de direito adequada.
O recorrente expende que a sua conduta "não tipifica o auxílio à constituição de uma relação de trabalho", uma vez que é "posterior" a essa constituição.
Olvida, todavia, a natureza duradoura ou permanente do crime em apreço.
O recorrente apela, no âmbito substantivo, à figura jurídica do crime continuado.
E a resposta à motivação aponta, noutra perspectiva, para uma situação de unidade criminosa.
Quid juris?
Da factualidade dada como provada resulta, a nosso ver, a existência de tantas resoluções quantas as relações laborais em causa (cfr., a propósito, ac. deste Tribunal, de 16-5-2002, proc. n°. 26/2002).
E não podem deixar de chamar-se à colação, nesse âmbito, as presunções naturais, ligadas a princípios de normalidade ou a regras gerais da experiência.
É irrelevante, por outro lado, que se esteja perante o mesmo bem jurídico.
Basta atentar, para tanto, na 2ª parte de n°. 1 do art. 29° do C. Penal.
Tratando-se, nessa óptica, da realização plúrima pressuposta no n°. 2 desse dispositivo, a questão que se coloca é a de saber se ocorrem os requisitos da uma continuação criminosa.
E propendemos, de facto, pela negativa.
Não se mostra, em especial, que o recorrente tenha agido mediante qualquer solicitação exterior que haja diminuído consideravelmente a sua culpa.
Bem pelo contrário.
A sua actuação, nos termos apurados, inculca uma indiscutível propensão criminosa.
Não é lícito, pois, unificar criminalmente as acções ou condutas em análise.
A pretendida suspensão da execução da prisão, finalmente, merece alguma reflexão.
Há que atentar, "in casu", em razões sensíveis de prevenção geral.
Em sede de prevenção positiva, nomeadamente, impõe-se salvaguardar a confiança e as expectativas da comunidade relativamente à validade da norma violada, através do "restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada ... " (dr. Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, 106).
E, a nível de prevenção geral negativa, não pode perder-se de vista o efeito intimidatório subjacente a esta finalidade da punição.
As exigências de prevenção especial, entretanto, não apontam em sentido convergente.
O recorrente, na verdade, não tem antecedentes criminais.
É certo, igualmente, que foi um mero "auxiliator causam non dans".
Não repugna, assim, na hipótese vertente, a formulação do prognóstico favorável que a pena de substituição em questão pressupõe.
Este o nosso pare”; (cfr., fls. 556 a 560).

*

Não sendo o recurso de rejeitar, teve lugar a audiência de julgamento com integral respeito pelo formalismo processual.

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Passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Deu o Colectivo do T.J.B. como provados os factos seguintes:
“O 1º arguido C é residente de Macau e na altura, era gerente da Companhia de Construção “B” (B建築公司), tendo como uma das suas funções contratar operários, a fim destes trabalharem nas obras recebidas pela companhia atrás referida.
O 3º arguido A é residente de Macau e na altura, era chefe de operários de construção, tendo como uma das suas funções administrar os operários contratados pela Companhia de Construção “B” (B建築公司) e atribuir os salários aos respectivos operários.
A Companhia de Construção “B” (B建築公司) recebeu da Sede da Companhia de D (Grupo) da RPC (中國D(集團)總公司) uma obra de construção por empreitada nos aterros do novo terminal de Pac-On da Ilha de Taipa de Macau.
Para reduzir os custos da obra, o 1º arguido, contratava, a partir de Fevereiro de 2006, os residentes do Interior da China que não possuíam documentos de identificação legais, por baixo salário, para trabalharem para eles aqui em Macau como operários.
O recrutamento de tais residentes do Interior da China era feito pelo próprio 1º arguido, ou, através de indivíduo de nome E.
Para esse efeito, o 1º arguido através do 2º arguido F, por meio de embarcação, levava e buscava os residentes do Interior da China para o referido terreno de construção da Ilha de Taipa de Macau, fora dos postos fronteiriços da RPC e de Macau.
O 3º arguido, a mando do 1º arguido, procedeu ao pagamento do salário aos residentes do Interior da China vindos ilegalmente a Macau e recrutados pelo 1º arguido. Os quais não eram titulares de documentos de identificação que lhes permitissem a trabalhar legalmente para Macau.
Durante esse período de tempo, a contratação de residentes do Interior da China foi feita sob o modo atrás referido, entre os quais estavam incluídos E, G, H, I, J e K.
Relativamente a esses trabalhadores vindos ilegalmente do Interior da China, o 1º arguido colocou-os a trabalhar como operários de armação de ferro no terreno de construção da Taipa atrás indicado e dando, diariamente, a cada um RMB¥80,00, a título de salário diário.
Em 10 de Abril de 2006, a mando do 1º arguido, o 2º arguido conduziu a embarcação, para a costa de Wanzai da cidade de Zhuhai no dia seguinte, pelas 16h00, a fim de transportar os residentes do Interior da China, ora recrutados pelo 1º arguido, para trabalhar em Macau.
Em 11 de Abril de 2006, cerca das 16h00, o 2º arguido conduzia a embarcação, de Hengqin de Wanzai da cidade de Zhuhai para transportar 19 pessoas (incluindo E, G, L, M, H, O, I, J, K, P, Q, R, S, T, U, V, W, X e Y), para os aterros do novo terminal de Pac-On da Ilha de Taipa de Macau, tendo estes desembarcado junto à costa.
Pouco depois dos 19 residentes do Interior da China desembarcarem junto à costa de Macau, foram descobertos e interceptados por agentes dos Serviços de Alfândega.
O 2º arguido também foi interceptado por agentes dos Serviços de Alfândega.
O 1º arguido pediu ao 2º arguido que conduzisse a embarcação para transportar os residentes do Interior da China que não possuíam documentos de identificação necessários que lhes permitissem, legalmente, a entrar e permanecer em Macau.
Os 1º e 2º arguidos agiram de modo voluntário, doloso e consciente e conjugavam em mútuo esforço transportar, de barco, os residentes do Interior da China acima referidos para Macau fora dos postos fronteiriços da RPC e de Macau.
O 1º arguido sabia perfeitamente que os residentes do Interior da China atrás mencionados não possuíam documentos de identificação necessários para trabalhar legalmente em Macau, no entanto, o mesmo arguido agiu voluntário, doloso e conscientemente, contratando-os para trabalhar no terreno de construção da Taipa em causa, para obter interesses ilegítimos.
O 3º arguido sabia perfeitamente que os residentes do Interior da China atrás mencionados não possuíam documentos de identificação necessários para trabalhar legalmente em Macau, no entanto, o mesmo arguido agiu voluntário, doloso e conscientemente ao auxiliar o 1º arguido para proceder ao pagamento do salário aos referidos trabalhadores ilegais.
Os três arguidos tinham perfeito conhecimento que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Os três arguidos praticaram as condutas acima referidas de forma voluntária, dolosa e consciente.
Segundo o CRC, os arguidos são delinquentes primários. Mas o 1º arguido declarou que no período de 1998 a 1999, tinha sido condenado na pena de 3 anos de prisão pela prática de contrabando em Zhuhai, com a suspensão da execução da pena por 3 anos; e o 3º arguido declarou que tinha sido condenado na pena de 3 meses de detenção administrativa por posse de droga em Zhuhai em 2000.
O 1º arguido é o dono da Companhia dos Serviços de Projecto “Z” (Z工程服務公司), auferindo mensalmente cerca de MOP$20.000,00. A esposa do arguido é analista de programa de computador e aufere mensalmente MOP$15.000,00. Eles têm uma filha de 14 anos frequentando o 2º ano do ensino secundário. E o arguido tem como habilitações literárias curso preparatório para universidade.
O 3º arguido é chefe de operários de construção, auferindo mensalmente cerca de MOP$13.000,00. Tem uma filha de 6 anos que, após o divórcio dos pais, vivia com a ex-esposa do arguido. O arguido tem os pais a seu cargo e tem como habilitações literárias ensino primário.”; (cfr., fls. 412-v a 414).

Do direito

3. Vem A recorrer do Acórdão do T.J.B. que o condenou como cúmplice da prática de 6 crimes de “emprego ilegal”, p. e p. pelo art. 16°, n° 1, da Lei n° 6/2004, na pena de 4 meses de prisão cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 1 ano de prisão.

Colhe-se da motivação e conclusão do seu recurso que é de opinião que padece o dito Acórdão do vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “contradição insanável” e “erro de direito” na qualificação jurídica da sua conduta que entende constituir um “crime continuado”, pedindo também a suspensão da execução da pena que lhe foi fixada.

–– Comecemos pelos “vícios da matéria de facto”.

Pois bem, tem este T.S.I. entendido que o vício de “insuficiência” ocorre apenas quando o Tribunal não emite pronúncia sobre matéria objecto do processo; (cfr., v.g., o Acórdão de 24.02.2011, Proc. n.°785/2010).

Por sua vez, e no que toca à “contradição insanável”, é também sabido que a mesma apenas ocorre quando “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre este e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão; (cfr., v.g. o Acórdão deste T.S.I. de 27.01.2011, Proc. n° 634/2010).

Nesta conformidade, e certo sendo que o Colectivo a quo emitiu pronúncia sobre toda a “matéria objecto do processo”, elencando aquela que considerou provada e não provada, não deixando também de fundamentar, em termos que nos parecem adequados, tal decisão, evidente é que inexiste o assacado vício da “insuficiência”.

Quanto à contradição, diz o recorrente que a mesma existe dado que “por um lado se diz que o 3° arguido agiu voluntária e deliberadamente quando auxiliou o 1 ° arguido a proceder ao pagamento do salário aos trabalhadores ilegais”, afirmando-se também “que tal procedimento foi consequência da relação hierárquica do 1 ° arguido sobre o 3° arguido sendo a expressão, "a mando", elucidativa desta relação hierárquica”, concluindo, assim que “não se tratou, pois, de uma acção deliberada e voluntária; mas de uma acção dependente de um superior hierárquico”; (cfr., concl. al. d) e e)).

Ora, cremos que não existe a assacada “contradição”, mostrando-se de subscrever a consideração a este respeito tecida em sede da resposta ao presente recurso.

Na verdade, o elemento volitivo do dolo do ora recorrente, podendo ser mitigado, não é afastado ou excluído, por ter agido "a mando" do 1° arguido.
De facto, provado está que agiu de forma voluntária e consciente.

Por sua vez, provou-se igualmente que tinha perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida e punida, não nos parecendo assim que por se ter provado que agiu “sob instruções do 1° arguido” não se pudesse também dar como provado que agiu livre, e com consciência da ilicitude da sua conduta.

–– Aqui chegados, vejamos do imputado “erro de direito”.

Diz o ora recorrente que:

–– a sua conduta é posterior à constituição da relação de trabalho com os 6 trabalhadores ilegais a que os autos aludem, pelo que a sua conduta não tipifica o auxilio à constituição de uma relação de trabalho; e que, assim não sendo,

–– sempre seria de considerar que considerar que cometeu o crime na forma continuada.

Sem prejuízo do muito respeito devido a entendimento diverso, também aqui não nos parece que tenha o recorrente razão.

Com efeito, olvida o mesmo que o crime em questão é um “crime permanente”, (ou duradouro), pelo que não se nos mostra de atribuir qualquer relevância à circunstância de ser a sua conduta posterior à constituição da relação de trabalho com os 6 trabalhadores ilegais.

Na verdade, provado estando que a participação do recorrente permitiu – ou viabilizou – a manutenção de tal relação de trabalho ilegal, agindo de forma livre e com conhecimento da sua ilicitude, motivos não existem para se considerar o ora recorrente “alheio” àquela situação.

Quanto ao “crime continuado”, vejamos.

Nos termos do art. 29° do C.P.M.:

“1. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.”

Apreciando análoga questão, teve já este T.S.I. oportunidade de afirmar que:

“O conceito de crime continuado é definido como a realização plúrima do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”, e que, a não verificação de um dos pressupostos da figura do crime continuado impõe o seu afastamento, fazendo reverter a figura da acumulação real ou material”; (cfr., v.g., o Acórdão de 21.07.2005, Proc. n.°135/2005).

“In casu”, e como bem se observa no douto parecer do Ilustre Procurador Adjunto, “não se mostra, em especial, que o recorrente tenha agido mediante qualquer solicitação exterior que haja diminuído consideravelmente a sua culpa. ”, afigurando-se-nos que a conduta do recorrente involve antes uma indiscutível propensão criminosa, o que, inviabiliza, a pretendida qualificação da sua conduta como a prática de 1 “crime na forma continuada”.

Resta agora ver da peticionada “suspensão da execução da pena.”

Vejamos.

Preceitua o art. 48° do C.P.M. que:

“1. O tribunal pode suspender a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
   2. O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
   3. Os deveres, as regras de conduta e o regime de prova podem ser impostos cumulativamente.
   4. A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
   5. O período de suspensão é fixado entre 1 e 5 anos a contar do trânsito em julgado da decisão.”
   
   E sobre o Instituto da suspensão da execução da pena, tem este T.S.I. considerado o que segue:
   
“1. O artigo 48º do Código Penal de Macau faculta ao juiz julgador a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido quando :
– a pena de prisão aplicada o tenha sido em medida não superior a três (3) anos; e,
– conclua que a simples censura do facto e ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (cfr. art.º 40.º), isto, tendo em conta a personalidade do agente, as condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
E, mesmo sendo favorável o prognóstico relativamente ao delinquente, apreciado à luz de considerações exclusivas da execução da prisão não deverá ser decretada a suspensão se a ela se opuseram as necessidades de prevenção do crime.”; (cfr., v.g., Ac. de 27.01.2011, Proc. n°634/2010).
   
   Atento o assim exposto, cremos que procede o pedido deduzido.
   Na verdade o ora recorrente é primário, e agiu, como se viu, como mero “cúmplice”, afigurando-se-nos assim viável o necessário juízo de prognose favorável que o art. 48° do C.P.M. exige.
   Nesta conformidade, atentos os “condimentos” da situação em causa e afigurando-se-nos que, a censura dos factos e ameaça de prisão, realizam de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, mostra-se-nos pois de se decidir pela suspensão da execução da pena de 1 ano de prisão aplicada, fixando-se tal período em 3 anos.
   
    Tudo visto resta decidir.
   
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expendidos, acordam conceder parcial provimento ao recurso.
.
Pelo decaimento pagará o recorrente as respectivas custas com taxa de justiça que se fixa em 5UCS.

Macau, aos 10 de Março de 2011

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José Maria Dias Azedo
(Relator)

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Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)

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Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)
) Processo redistribuído ao ora relator em 10.01.2011.
. Processo redistribuído ao ora relator em 10.01.2011.
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Proc. 563/2009 Pág. 34

Proc. 563/2009 Pág. 1