Processo nº 438/2007
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 14 de Abril de 2011
ASSUNTO:
- Aquisição por usucapião
SUMÁRIO:
- Sem o registo da titularidade do prédio, a simples existência do registo da hipoteca não pode implicar necessariamente a existência de um direito de propriedade validamente constituído.
- Não foi feita prova de o terreno em causa ter a natureza de propriedade privada, ou o seu domínio útil ter integrado naquele regime, o mesmo não é passível de aquisição por usucapião face ao disposto do artº 7º da Lei Básica da RAEM.
O Relator,
Ho Wai Neng
Processo nº 438/2007
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 14 de Abril de 2011
Recorrente: Associação de Beneficência do Hospital Kiang Wu
Recorridos: Herdeiros incertos de A e outros interessados
incertos
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – Relatório
Inconformada com a sentença na parte que julgou improcedente o pedido de ser « declarada, para todos os efeitos legais, nomeadamente de registo, como a exclusiva proprietária do prédio com os nºs 6 e 8 do Pátio das Narcejas, com a área de 139m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº 978, a fls. 243 verso do Livro B26 e com as seguintes confrontações : NE : Travessa do Calão nºs 5-7E, Pátio das Narcejas nºs 2A-2B e Rua da Palmeira nº 47 ; SE : Rua da Palmeira nº 43 e Rua da Palmeira ; SW : Pátio das Narcejas nºs 2-4 ; Rua da Ribeira do Patane nºs 50-50A (no local tem também o nº 41 da Rua da Palmeira) e Rua da Palmeira nº 43 e NW : Pátio das Narcejas », por considerar o mesmo não pertencer ao domínio da propriedade privada, vem a Autora recorrer da mesma, alegando que o prédio em causa entrou no domínio da propriedade privada antes de 20/12/1999, pelo que pode ser adquirido por usucapião.
Foram colhidos os vistos legais.
II – Factos
Vêm provados os factos seguintes:
- A instituição denominada “Hospital Keng-Hu” foi fundada em Macau, no ano de 1870, pela comunidade chinesa local, tendo em vista a prática da beneficência, conforme se pode ler no artigo 1º dos Estatutos aprovados pelo Portaria nº 3.341 de 12 de Setembro de 1942, publicada no Boletim Oficial de Macau nº19 da mesma data – conforme se comprovar por cópia que adiante se junta como doc.nº1 (facto do artigo1º)
- No decurso da sua existência, o dito Hospital foi convertido na “Associação de Beneficência Hospital Keng-Hu”, ora Autora, cujos estatutos supra referidos foram aprovados pela citada Portaria n.º3.341 (facto do artigo 2º)
- O Território de Macau reconheceu, então, aquando dessa conversão, “fundos” da Associação aqui Autora “os bens móveis e imóveis presentemente na posse do Hospital Keng – Hu” cfr. Artigo 6.º, alínea b ), da Portaria n.º3.341 (vidé doc.n.º1) (facto do artigo 3º).
- A Autora é, por outro lado, uma pessoa colectiva de utilidade pública administrativa desde 31 de Dezembro de 1947, estatuto que lhe foi reconhecido através da Portaria n.º4.321, publicada no Boletim Oficial n.º52 (facto do artigo 4º).
- Encontrando-se registada como tal na Direcção dos Serviços de Identificação de Macau sob o n.º348 – cfr. se comprova pelo doc.no.º2 (facto do artigo 5º).
- O prédio com o nº43 da Rua da Palmeira se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº9620, a fls. 244 do Livro B26, e o prédio com o nº45 da Rua da Palmeira descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº9580, a fls. 236 verso do Livro B26, e, o prédio sito na Pátio das Narceja com os nºs 6 e 8 descrito sob o nº978, a fls. 243 verso do Livro B6 (cfr. docs. nºs 3, 4, e 5 ) (facto do artigo 6º).
- O prédio nº43 da Rua da Palmeira tem fins residenciais (facto do artigo 9º).
- O imóvel tem , conforme se comprova pela respectiva planta cadastral de 19/12/2006 (fls. 103 a 105), uma área de 45m2 ( facto do artigo 10).
- Confronta a NE com o prédio com o nº45 da Rua da Palmeira; a SE com a Rua da Palmeira; a SW com o nº50-50A, ainda da Rua da Palmeira e a NW com um terreno junto à citada via ( cfr. doc. No.º6) (facto do artigo 11º).
- O prédio está inscrito na mencionada Conservatória em nome de A, conforme inscrição n.º6567, a fls. 156 do Livro G6, a qual teve origem na apresentação n.º3 de 6 de Setembro de 1923 (cfr. doc. nº 3). (facto do artigo 13º).
- O prédio com o n.º45 da Rua da Palmeira é igualmente composto por uma pequena e antiga residência (facto do artigo 16º).
- Conforme a certidão de 19/12/2006 (cfr. fls. 103 a 105 ), este prédio tem área total de 43m2(facto do artigo 18º).
- As suas confrontações, que constam também da planta do documento n.º8, são as seguintes:
■ NE: Travessa do Calão n.ºs 5-7E, Pátio das Narcejas n.ºs 2A-2B e Rua da Palmeira n.º47;
■ SE: Rua da Palmeira n.º43 e Rua da Palmeira;ç
■ SW:Pátio das Narcejas n.ºs 2- 4, Rua da Ribeira do Patane n.ºs 50-50A (que no local, ainda de acordo com a planta cadastral, tem também o n.º41 da Rua da Palmeira ) e Rua da Palmeira n.º43;e
■ NW: Pátio das Narcejas ( facto do artigo 19º).
- Este prédio inscrito a favor de A, conforme inscrição n.º6436, a fls. 137 do Livro G6, inscrição que teve origem na apresentação n.º 9 de 11 de Junho de 1923 (cfr. doc. nº4) (facto do artigo 21º).
- O prédio com os nºs 6 e 8 do Pátio das Narcejas é composto por um armazém (factos do artigo 26º).
- O referido prédio tem a área de 139 ㎡ e as seguintes confrontações :
■ NE: Travessa do Calão n.ºs 5-7E, Pátio das Narcejas n.ºs 2A-2B e Rua da Palmeira n.º47;
■ SE: Rua da Palmeira n.º43 e Rua da Palmeira;
■ SW:Pátio das Narcejas n.ºs 2- 4, Rua da Ribeira do Patane n.ºs 50-50A (que no local, ainda de acordo com a planta cadastral, tem também o n.º41 da Rua da Palmeira ) e Rua da Palmeira n.º43;e
■ NW: Pátio das Narcejas (cfr.doc.nº7) ( facto do artigo 27º).
- Os prédios com os n.ºs 43 e 45 da Rua da Palmeira não são foreiros à Fazenda da Região Administrativa Especial de Macau (cfr.fls. 42) ( facto do artigo 35º).
- A certidão n.º37431/2005, emitida em 15 de Novembro de 2005 pela Repartição de Finanças de Macau, menciona que dos livros de “registo de Foros (...) deles nada constam que os prédios com os números quarenta e três e quarenta e cinco da Rua da Palmeira e o prédio com os números seis e oito do Pátio das Narcejas, descritos na Conservatória do Registo Predial de Macau respectivamente sob os números novo mil seiscentos e vinte, nove mil quinhentos e oitenta e novecentos e setenta e oito, são foreiros à Região Administrativa Especial de Macau.” (cfr. doc.nº10) (factos do artigo 38º).
- Por volta do ano de 1973, a Autora adquiriu os prédios nº43 e 45 da Rua da Palmeira por doação efectuada a seu favor pelo anterior proprietário dos mesmos o Sr. A (facto do artigo 40º).
- O referido doador, o Sr. A, assumiu com a Autora o compromisso de formalizar posteriormente a doação dos aludidos prédios o que, todavia, não veio a suceder, uma vez que faleceu pouco depois, mais concretamente no dia 19 de Janeiro de 1974 (conforme se comprova pelo doc.n.º10 que ora se junta ) ( facto do artigo 43º).
- A Autora tem possuido e fruido os imóveis doados, desde a data acima mencionada, com a convicção de ser a sua legítima e plena titular (facto do artigo 45º).
- A Autora, após o início da respectiva posse, procedeu a sua expensas e por sua vontade, a diversas obras de remodelação nos prédios com os nºs 43 e 35 da Rua da Palmeira ( facto do artigo 47º).
- A Autora passou , desde o começo da década de 80 do século passado até aos dias de hoje, a dar os citados prédios de arrendamento (conforme os contratos juntos como docs. n.ºs 11 a 15 ) ( facto do artigo 49º).
- Recebendo as respectivas rendas dos seus inquilinos (cfr. docs. Nºs 16 a 19 ) ( facto do artigo 50º).
- O mesmo sucede com o prédio com os n.ºs 6 e 8 do Pátio das Narcejas que, também desde o início dos anos oitenta tem vindo a ser objecto de arrendamento por parte da Autora ( facto do artigo 51 ).
- A Autora no referido prédio se encontra instalado o armazém, de nome “XX” que o utiliza para armazenamento de ferragens e diversa maquinaria industrial ( cfr. doc.no.º20) ( facto do artigo 52º).
- Pagando, desde então, as respectivas rendas à senhoria, a Associação de Beneficência “ Kiang Wu “, ora Autora (cfr.docs.n.ºs 21 a 23 ) (facto do artigo 53º).
- A Autora pelo menos desde 1973 vem exercendo de forma permanente e reiterada o seu poder de facto sobre os prédios com os n.ºs 43 e 45 da Rua da Palmeira e sobre o prédio com os n.ºs 6 e 8 do Pátio das Narcejas ( facto do artigo 64º).
- A Autora vem exercendo múltiplos actos materiais correspondentes ao respectivo direito real, de que se considera titular ( facto do artigo 65º ).
- Sem violência nem oposição de ninguém ( facto do artigo 67º).
- De forma ininterrupta( facto do artigo 68º).
- E com a consciência de não estar a lesar eventuais direitos de outrem ( facto do artigo 69º).
III – Fundamentos
O objecto do presente recurso consiste em saber se o prédio em causa entrou ou não na propriedade privada antes da entrada em vigor da Lei Básica da RAEM.
Para a Autora, não obstante não se encontrar registado o nome do proprietário, o prédio em causa tem a natureza da propriedade privada, por razões seguintes:
- O simples facto de o imóvel se encontrar descrito é, por si só, prova de que sobre o mesmo um direito de propriedade foi validamente constituído por outrem, pois só se pode abrir uma descrição dum prédio na dependência de uma inscrição.
- Na há qualquer inscrição de arrendamento ou aforamento, pelo que a inscrição de que dependeu a abertura da descrição do prédio, apenas pode ter sido de propriedade.
- Por outro lado, sob a descrição nº 978, foi registada, já em 1822, uma hipoteca a favor de indivíduo de nome B.
- Este registo evidencia a existência de um direito de propriedade e, naturalmente, do respectivo titular, aquele com legitimidade para hipotecar e a entrada definitiva do prédio no regime da propriedade privada, circunstância que resulta do facto de o mesmo poder ser objecto de hipoteca e, consequentemente, de alienação, faculdade que apenas era, e, é, permitida aos imóveis que estejam dentro do comércio e, entre eles, os de propriedade privada.
Quid iuris?
Nos termos da Lei de Terras (Lei nº 6/80/M, de 5 de Julho), os terrenos de Macau são classificados em terrenos do domínio público do Território (hoje RAEM), terrenos do seu domínio privado e terrenos de propriedade privada, e apenas os últimos são passíveis de aquisição por usucapião.
Dispõe o artº 5º da citada Lei de Terras, na nova redacção dada pela Lei nº 2/94/M, de 4 de Julho, que:
Artigo 5.º
(Propriedade privada)
1. Consideram-se sujeitos ao regime de propriedade privada os terrenos sobre os quais tenha sido constituído definitivamente um direito de propriedade por outrem que não as pessoas colectivas de direito público.
2. O Governo procederá à delimitação dos terrenos que, constituindo propriedade privada, confinem com o domínio público.
3. O domínio útil de prédio urbano objecto de concessão por aforamento pelo Território é adquirível por usucapião nos termos da lei civil.
4. Não havendo título de aquisição ou registo deste, ou prova do pagamento de foro, relativo a prédio urbano, a sua posse por particular, há mais de vinte anos, faz presumir o seu aforamento pelo Território e que o respectivo domínio útil é adquirível por usucapião nos termos da lei civil.
No caso em apreço, não há qualquer registo quanto à titularidade do prédio urbano em causa, apenas existe um registo da hipoteca sobre o mesmo no ano de 1822, sob a descrição nº 978.
Será o registo da hipoteca em referência suficiente para provar o terreno em causa pertencer ao domínio da propriedade privada?
Tem alguma razão a recorrente no sentido de que por natureza da hipoteca, deve pressupor uma propriedade privada já constituída, caso contrário, não é possível constituí-la legalmente.
Contudo, o contrário também é verdadeiro, no sentido de que sem o registo da titularidade do prédio, o registo da hipoteca não deveria ser considerado como válido em face do nosso sistema jurídico actual.
Pois, sem o registo da titularidade, com que base vamos certificar a legitimidade do devedor para o efeito?
Mesmo que se considerasse como uma hipoteca validamente constituída, não podemos ignorar que o registo da hipoteca em referência foi feito no ano de 1822, altura em que os terrenos titulados por “papel de seda”, também conhecidos por “Sá Chi Kai”, ainda eram reconhecidos ou tolerados.
Daí que a existência do registo da hipoteca não pode implicar necessariamente, tal como querida pela recorrente, a existência de um direito de propriedade validamente constituído, pois o terreno em causa pode ser um terreno de “papel de seda”, face à falta do registo da sua titularidade.
Como é sabido, a propriedade dos terrenos baseada em “papel de seda” não é hoje reconhecida, pois com a entrada em vigor da Lei nº 2/94/M, de 4 Julho, que introduziu alterações para o artº 5º da Lei de Terras, o legislador afastou a propriedade privada dos terrenos com base neste tipo de documento particular.
O nº 4 do artº 5º da Lei de Terras, introduzido pela Lei nº 2/94/M, estabelece que “não havendo título de aquisição ou registo deste, ou prova do pagamento de foro, relativo a prédio urbano, a sua posse por particular, há mais de vinte anos, faz presumir o seu aforamento pelo Território e que o respectivo domínio útil é adquirível por usucapião nos termos da lei civil.”
Com isto, evidencia a intenção legislativa no sentido de que os terrenos sem titularidade registada pertencem ao então Território de Macau, sem prejuízo da possibilidade da adquisição do domínio útil dos mesmos por usucapião.
Após a entrada em vigor da Lei Básica da RAEM, a usucapião do domínio útil dos terrenos sem titularidade registada já não é legalmente permitida face ao disposto do artº 7º do citado diploma legal, a não ser que o domínio útil do mesmo tenha transitado para o regime da propriedade privada antes da entrada em vigor do citado diploma legal (Cfr. Acórdão do TUI, de 16/01/2008, Proc. nº 41/2007).
No caso em apreço, como não foi feita prova de o terreno em causa ter a natureza de propriedade privada, ou o seu domínio útil ter integrado naquele regime, o mesmo não é passível de aquisição por usucapião face ao disposto do artº 7º da Lei Básica da RAEM.
Improcede-se assim o recurso interposto.
IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam os Juízes que compõem o Colectivo deste Tribunal, em conferência, em negar provimento ao recurso interposto, mantendo a sentença recorrida.
Sem custas por a recorrente gozar da isenção subjectiva.
Notifique e registe.
RAEM, aos 14 de Abril de 2011.
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
1
Proc. nº 438/2007