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Processo n.º 440/2010
(Recurso Cível)

Data: 14/Abril/2011


ASSUNTOS:
- Marcas; abuso de direito
- Abuso de direito
- Marcas livres
- Natureza constitutiva do registo de marcas
- Concorrência desleal


SUMÁRIO:
1. Com base no abuso do direito, o lesado pode requerer o exercício moderado, equilibrado, lógico, racional do direito que a lei confere a outrem; o que não pode é, com base no instituto, requerer que o direito não seja reconhecido ao titular, que este seja inteiramente despojado dele.
2. Para haver abuso tem de se ter o direito, apenas não se pode exercê-lo assim.
3. O abuso de direito é de conhecimento oficioso quando choque com regras de interesse e ordem pública, nomeadamente quando estejam em causa interesses relacionados com os bons costumes e até com o fim económico e social do direito.
4. O abuso de direito pressupõe a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que a titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito casos em que se excede os limites impostos pela boa fé.
5. Uma das vertentes em que se exprime tal actuação, manifesta-se, quando tal conduta viola o princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas geradas
6. Na configuração evolutiva dogmática do que seja o abuso de direito há que entrar com vectores que vão no sentido do exercício para além da sua finalidade.
7. No Direito marcário, salvaguardando algumas ressalvas, taxativamente previstas, quem regista primeiro tem a prioridade
8. Sempre que se pede o registo de uma marca livre, usada por outrem, que não a registou, gerou-se, em princípio, alguma confusão, e quem obtém o registo pode até beneficiar de actividade publicitária feita anteriormente, mas sem que daí se possa concluir que se esteja perante uma situação de abuso do direito pelo requerente do registo.
9. O registo da marca assume uma natureza constitutiva, donde, por norma, só o direito registado merecer protecção.
10. A lei não descreve as situações que podem configurar concorrência desleal - ao contrário do que acontece em termos de Direito Comparado -, destacando-se na Doutrina, exemplificativamente situações integrantes dessa figura.
                 O Relator,


João A. G. Gil de Oliveira
















Processo n.º 440/2010
(Recurso Cível)
Data: 14/Abril/2011
Recorrente: Compañia Industrial de Tabacos A S.A.

Recorridas: B
C Holdings B.V.
    
    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I - RELATÓRIO
    1. Vem o presente recurso da sentença proferida em 6 de Janeiro de 2010, que julgou improcedente a presente acção ordinária intentada pela Autora "Compañia Industrial de Tabacos A, SA" contra as RR. B e C Holdings B.V., absolvendo-as do pedido consistente em ver declarada a anulabilidade do título do registo da marca mista n.º N/12... (para a classe 34ª), ,, ou, pelo menos, parcialmente anulado, impedindo-se que o elemento nominativo, que consiste em XXX, integre a referida marca e, porque a lei o permite, ver ordenada a reversão a favor da Autora do título do registo da marca n.º N/13... (para a classe 34.ª) consistente em .
    
    2. Inconformada com tal decisão, a Autora Compañia Industrial de Tabacos A, SA vem recorrer, alegando em sede conclusiva:
    Embora tenha sido dada por provada a notoriedade da marca no seu país de origem - Uruguai - e, também, que as RR sabiam que a marca XXX pertencia à Autora, ora Recorrente, em vários países e que se preparava para a registar em Macau, o douto Tribunal recorrido entendeu que não se verifica nenhuma causa de invalidade dos títulos de registo das marcas objecto mediato do presente processo.
    Aqui, está em questão a anulabilidade dos títulos de registo referentes às marcas que tomaram os n.ºs N/12... e N/13... (ambas para assinalar produtos da classe 34.ª), uma vez que, conforme tem sido defendido unanimemente pela doutrina mais abalizada e, na sua esteira, pela jurisprudência, o regime de nulidade respeita apenas ao registo da marca que, por si mesma, independentemente da pessoa do respectivo titular, não seja passível de protecção ou se tiver sido concedida verificando-se o incumprimento de procedimentos ou formalidades imprescindíveis previstos na lei.
    No caso, os títulos são anuláveis porque as Rés não têm direito a ser titulares das respectivas marcas cujo registo foi obtido com abuso de direito por parte da 1ª Ré.
     Resulta da factualidade provada que a Autora/Recorrente é titular da marca registada no seu país de origem (Uruguai), que consiste em XXX e que se destina a assinalar tabaco e produtos feitos à base de tabaco, artigos e acessórios para fumadores e fósforos por si fabricados e comercializados e que entre a Autora/Recorrente e a 1ª Ré se estabeleceu uma relação de Exportador-Importador.
    A 1ª Ré, ao solicitar os registos das marcas XXX na RAEM, agiu de má fé e com o intuito de tirar indevido proveito de uma marca que sabia pertencer à Autora e com a qual, inclusivamente, negociou, por saber da aceitação que tal marca alcançou junto dos consumidores que têm acesso aos produtos com ela assinalados, nomeadamente no Japão e bem sabendo que a Autora se preparava para registar na República Popular da China, em Hong Kong e na RAEM a sua marca.
    A 1ª Ré/Recorrida, ao registar tais marcas - uma pertencente à Autora/Recorrente e outra contendo como elemento nominativo a expressão marcária da Autora/Recorrente -, e a 2ª Ré, ao aceitar a transmissão de uma marca, tinham consciência de que iriam induzir o consumidor médio em erro e confundi-lo, não podendo o consumidor deixar de associar os produtos das Rés aos produtos da Autora/Recorrente.
    Sem perder de vista que as Rés/Recorridas, com tais marcas, pretendem assinalar os mesmos produtos que são fabricados e comercializados pela Autora/Recorrente.
     A 1ª Ré/Recorrida apresentou o pedido de registo das marcas aqui em causa, com a intenção de prejudicar o pedido iminente (e não ignorado) do registo da marca por parte da Autora/Recorrente.
     A 1ª Ré agiu dolosamente e com o intuito de prejudicar a Autora/Recorrente e a sua má fé é tão evidente que, para além de ter logrado obter o registo de duas marcas, ainda se permitiu transmiti-la para a 2ª Ré, numa tentativa de impedir que a declaração de anulabilidade afectasse o título da marca.
    A 2ª Ré não podia desconhecer a actuação da 1ª Ré, pelo que, também, agiu de má fé ao aceitar a transmissão da titularidade das marcas.
    O facto da 1ª Ré ao ter apresentado o pedido de registo de duas marcas sabendo que uma delas pertence à Autora/Recorrente (a nominativa) e que a outra (mista) tem como elemento nominativo a expressão em que consiste a marca da Autora/Recorrente, fê-lo de má fé, pois tinha consciência de que estava a prejudicar a Autora/Recorrente,
    As Rés tinham conhecimento de que o sinal marcário é da titularidade da Autora/Recorrente, porque a 1ª Ré mantinha com a Autora/Recorrente uma relação comercial que existia desde 2002 e que perdurou até Setembro de 2004, data em que requereu o registo das marcas na RAEM.
    A transmissão feita pela 1ª Ré para a 2ª Ré constitui um passo mais na caminhada feita pela primeira Ré no sentido de tirar proveito das acções levadas a cabo pela Autora, tudo mostrando que ambas as Rés acordaram na referida transmissão, pelo que esta não pode ser impeditiva da declaração de anulabilidade do registo da marca n.º N/12....
    A figura do Abuso de Direito, prevista no art. 326.° do CC, é um fundamento próprio de recusa ou de anulação de direitos de propriedade industrial, apesar de não estar como tal prevista no Regime Jurídico da Propriedade Industrial.
    O facto de o abuso de direito não estar expressamente previsto no RJPI como causa de anulabilidade de um direito de propriedade industrial não obsta que a ele se recorra para lograr a anulação dos títulos de registos de marcas, uma vez que o abuso de direito é uma cláusula geral de Direito Privado que opera no âmbito de permissões normativas que redundam numa solução contrária à Ordem Jurídica.
    Por conseguinte, o abuso de direito pode verificar-se sempre que haja uma permissão normativa de aproveitamento específico, isto é, sempre que o desencadear de um efeito dependa da actuação do sujeito e não seja obrigatório. É, indubitavelmente, o caso do registo de direitos de propriedade industrial.
    Há abuso de direito, na modalidade do exercício em desequilíbrio de posições jurídicas sempre que se observe uma desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício exigido a outrem pelo exercício desse direito, sendo aqui integrada a actuação de direitos com lesão intolerável de outras pessoas.
    Da leitura das respostas dadas aos quesitos 11º, 13°, 15°, 16°, 17°, 19°, 20°, 21º, 22°, 26°, 29°, 32°, 33° e 34°, cuja matéria neles vertida foi dada como provada, resulta claramente que a Recorrente é a titular da marca "XXX" em vários países, que a 1ª Ré não desconhecia esse facto e que houve intenção, por parte das Rés, de através do registo (e da legitimidade formal que este confere) induzir em erro os consumidores, obtendo assim proveito desse erro, prejudicando propositadamente a Recorrente.
    Consequentemente, houve abuso de direito por parte da 1ª Ré, na modalidade de desequilíbrio de exercício, através do qual praticou um acto com desrespeito pela materialidade da relação jurídica subjacente e obteve formalmente uma situação de vantagem que é valorativamente censurada pelo Direito, isto é, que configura uma disfunção sistemática.
    Pese o facto de não ter sido invocado o instituto do abuso do direito, como causa de invalidade do título de registo das marcas aqui em apreciação, crê-se que, em sede de recurso, a Recorrente pode trazê-lo ao conhecimento do Venerando Tribunal de Segunda Instância, porque não se trata de alegar factos novos nem sequer de uma tentativa de obter algo que não fora pedido.
    As circunstâncias em que a 1ª Ré obteve o registo das marcas apontam para um clamoroso exercício abusivo de um direito, pois há uma desproporção entre as situações sociais típicas pré-figuradas pelas normas jurídicas que atribuem o direito e o resultado prático do exercício desse direito o qual, atendendo às exigências de interpretação sinépica, constitui uma situação incompatível com a Ordem Jurídica no seu todo. Assim, essa Alta Instância pode conhecer o abuso de direito e, em consequência, declarar a anulabilidade dos títulos de registo das marcas em causa, não permitindo que as RR mantenham na composição das marcas, cujo registo a 1ª Ré obteve de má fé, o sinal XXX.
    Nestes termos, entende dever o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por outra que declare a anulabilidade do título do registo da marca n.º N/12... (para a classe 34.ª) , ou, pelo menos, parcialmente anulado, impedindo-se que o elemento nominativo, que consiste em XXX, integre a referida marca e, porque a lei o permite, ordenada a reversão a favor da Autora do título do registo da marca n.º N/13... (para a classe 34.3ª) consistente em XXX.
    3. B e C Holdings B.V., contra-alegam, em síntese:
    A recorrente alega, em suma, que os títulos das marcas das rés são anuláveis porque os registos das mesmas foram obtidos com abuso de direito, na modalidade de exercício em desequilíbrio de posições jurídicas,
    tendo em conta que a recorrente é titular da marca em vários países e as rés, não desconhecendo esse facto, tiveram a intenção de, através do registo, induzir em erro os consumidores, obtendo proveito desse erro e prejudicando propositadamente aquela.
    De acordo com o disposto no artigo 326° do Código Civil de Macau, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
    Ora, conforme resulta dos autos, as rés não procederam ao registo de qualquer marca cuja titularidade não lhes pertencesse porquanto as marcas em causa constituíam, na altura, marcas livres nos termos e para os efeitos do artigo 202.° do Regime da Propriedade Industrial.
    Ao registarem marcas livres as rés não estão a exercer um direito mas sim a usar de uma faculdade que a lei confere a qualquer pessoa, incluindo àquelas.
    Não está em causa, portanto, um direito cujo exercício deva obedecer a limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do mesmo.
    Não se trata, com efeito, do direito do titular da marca de a usar, o qual consubstancia, esse sim, um direito passível de ser exercido com abuso.
    Até porque não consta dos autos que as rés hajam, uma única vez que seja, utilizado a marca de que são titulares.
    Trata-se sim de beneficiar da oportunidade que a todos é garantida de registar marcas livres nos termos da lei.
    O que não está naturalmente sujeito a quaisquer limites que não sejam os estabelecidos na lei que, precisamente, concede a qualquer um tal possibilidade, ou seja, o registo de marcas livres.
    O registo das marcas em si não constitui, em qualquer caso, uma actuação de direitos com lesão intolerável ou não de outras pessoas.
    Quando muito a utilização da marca ao abrigo do direito que é conferido ao seu titular para o efeito podia sê-lo, o que, de qualquer modo, também não se aceita.
    Mas para isso era necessário que as rés houvessem feito uso das marcas, o que, dos autos, não resulta, de forma alguma, ter ocorrido.
    Por outro lado, ainda que assim não fosse, é falso que, da matéria provada nos autos, resulte que as rés tiveram a intenção de, através do registo em Macau, induzir em erro os consumidores, obtendo proveito desse erro e prejudicando propositadamente a recorrente.
    Desde logo porque, não tendo as marcas sido utilizadas em Macau, não existem consumidores em Macau dos produtos designados sob as mesmas.
    E, não se tendo provado igualmente que a recorrente vendeu os seus produtos em Macau, era titular de qualquer quota de mercado em Macau e realizou em Macau qualquer campanha publicitária ou actividade de promoção das suas marcas e dos produtos que elas visam proteger, ou que a recorrente fosse actualmente ou no passado titular de quaisquer marcas em Macau e que tenha aqui comercializado produtos com a mesma designação, naturalmente que não se pode afirmar que as rés, através do registo em Macau, prejudicaram propositadamente aquela.
    Nestes termos, concluem, deverá o recurso interposto pela autora ser julgado improcedente.
    4. Foram colhidos os vistos legais.
    
    II – FACTOS
    Vem provada a factualidade seguinte:
    B requereu em 8 de Janeiro de 2004, o registo da marca mista que consiste num símbolo e expressão "XXX" para assinalar produtos incluídos na classe 34ª e que tomou o n.° N/12.... (A)
    Por despacho de 11 de Maio de 2004 foi concedido o registo a B, publicado no BO II Série, n.° …, de 2 de Junho de 2004. (B)
    Tal marca foi depois transmitida a C Holdings, BV, sendo a transmissão autorizada por despacho de 22 de Março de 2005, publicado no BO, II Série, n.° …, de 4 de Maio de 2005. (C)
    B requereu em 19 de Abril de 2004, o registo da marca nominativa que consiste na expressão "XXX" para assinalar produtos incluídos na classe 34ª e que tomou o n.° N/13.... (D)
    Tal marca foi concedida por despacho de 19 de Novembro de 2004, publicado no BO, II Série, n.° …, de 5 de Janeiro de 2005. (E)
    A A. apresentou pedido de registo da marca nominativa que consiste em "XXX", destinando-se a assinalar produtos incluídos na classe 34ª e tomou o n.º N/14.... (F)
    Tal registo foi recusado por despacho de 21 de Fevereiro de 2005, publicado no BO, II Série, n.° …, de 6 de Abril de 2005. (G)
    Por resolução estabelecida a 24 de Janeiro de 1947 pela Direcção de Propriedade Industrial da República do Uruguai, foi autorizado a favor de ...... Sociedade Colectiva o registo da marca "XXX" para distinguir produtos da classe 22. (H)
    A 14 de Setembro de 1959, pela Direcção de Propriedade Industrial de Montevideo, foi autorizada a renovação da marca com o n.° 78... a favor de ......, SC. (I)
    Por resolução datada de 11 de Dezembro de 1970 a Direcção de Propriedade Industrial de Montevideo autorizou a renovação da marca n.° 78... que de ora em diante corresponde ao n.º 120..., a favor de La XXX, sociedade Anónima, nos termos constantes do documento junto aos autos a fls. 68. (J)
    Tal renovação foi autorizada pela Direcção de Propriedade Industrial de Montevideo em 9 de Dezembro de 1980 e 23 de Março de 1992, passando a corresponder, respectivamente, ao n.º 163… e 240…. (L)
    A partir de 23 de Março de 2002 foi autorizada pela Direcção Nacional de Propriedade Industrial de Montevideo, a renovação da marca "XXX", com o n.° 240… a favor de Companhia Industrial de Tabacos A, para produtos da classe 34ª. (M)
    Desde 22 de Agosto de 1995 e com prazo de validade de dez anos, com o n.° 179… encontra-se registada a favor da A. a marca "XXX", para produtos da classe 34, na República do Paraguai. (N)
    Desde 12 de Novembro de 2001 e com prazo de validade de dez anos, com o n.° 241… encontra-se registada a favor da A. a marca "XXX e etiqueta", para produtos da classe 34, na República do Paraguai. (O)
    A marca "XXX" destina-se a assinalar tabaco e produtos feitos à base de tabaco, artigos e acessórios para fumadores e fósforos fabricados e comercializados pela A. (1º)
    ……, cidadão uruguaio, em 1880 fundou a empresa denominada "La XXX". (2º)
    "La XXX" dedicava-se ao fabrico de cigarros. (3°)
    Mantendo-se independente até 1981. (4°)
    Nessa data, várias empresas tabaqueiras, incluindo a "La XXX" fundiram-se dando origem à A. (5°)
    A Companhia Industrial de Tabacos estabeleceu-se em Montevideo, Uruguai, em 1930. (6°)
    Nessa época existiam já a "Clavier Y Compañia" e a "Barreira Hermanos", de cuja fusão, em 1962, nasceu a "A, SA". (7º)
    A A. absorveu todas as operações industriais da "La XXX", da "Companhia Industrial de Tabacos", da "Clavier Y Compañia" e da "Barreira Hermanos". (8 º)
    A A. tem assinalado com a marca "XXX" alguns dos vários produtos que comercializa, quer no mercado interno quer no mercado externo. (11º)
    A qualidade dos produtos da A. reflectiu-se no mercado externo. (13°)
    A A. fabrica cigarros, cigarrilhas e tabaco para enrolar à mão com as marcas Calvert, Broadway, Record e Donnay. (14°)
    A A. proceda a exportação de cigarros da marca "XXX". (15 °)
    Estes tratam de produto inovador dada a combinação de sabores. (16º)
    Estes vieram a ter uma aceitação muito elevada, sobretudo no Japão, desde que se iniciou a sua comercialização em 1987. (17°)
    Com a marca "XXX" a A. fabrica e comercializa cigarros que conservam o sabor e o aroma do tabaco próprio para cachimbo, a saber, "Doce", "Chocolate", "Maçã e Mentol", "Tutifruti". (19°)
    Do agrado dos consumidores de Japão e Hong Kong em Ásia. (20°)
    A A. teve conhecimento de que a R. se preparava para registar a marca "XXX", no interior de República Popular da China, Taiwan, HKSAR e RAEM. (21°)
    O que motivou troca de correspondência entre A. e R., através da qual a A. tentou demover a R. a registar tal marca . (22 °)
    As vendas efectuadas entre 1 de Janeiro de 2002 até Maio de 2005 atingiram o montante de USD$1,878,000 (um milhão oitocentos e setenta e oito mil dólares americanos). (24º)
    Num montante de 212 milhões de cigarros. (25°)
    A 1ª R. sabia que a A. tinha a titularidade da marca que consiste em "XXX", pelo menos desde 10 de Junho de 2002 em alguns países. (26°)
    A A. e a 1ª R. estabeleceram uma relação de Exportador - Importador, fazendo a 1ª R. encomendas de tabaco da marca "XXX" à A. que depois distribuía e vendia a retalho na Europa e Médio Oriente. (29º)
    A última encomenda enviada pela A. à 1ª R ocorreu em Setembro de 2004, altura em que esta já havia requerido na RAEM, o registo de duas marcas, uma nominativa e outra mista, ambas contendo a expressão "XXX". (30°)
    Tendo ainda requerido o registo de tais marcas nos países do Benelux e Israel. (31°)
    Com o registo da marca e uso a 1ª R. procurou obter proveito dessa marca junto dos consumidores, nomeadamente, no Japão. (32°)
    Tendo consciência de que iria induzir em erro e confundir o consumidor médio. (33°)
    Que passaria a associar os produtos das RR. aos produtos da A. (34 º)
    A 1ª R. assinou, em 21 de Março de 2005, uma declaração de não uso, nos países da Benelux, de marcas que contivessem a expressão "XXX" ou qualquer outra integrada por sinais coincidentes. (35º)
    A 1ª R., em 10 de Abril de 2005, requereu o cancelamento do pedido n.° 166…, j unto do Comissariado da Propriedade Industrial de Israel, pedindo que se validasse o acordo entre a A. e a 1ª R. (36º)
    Em 1587 existia um navio britânico baptizado de "XXX". (37º)
    A Manufacture de Tabacs …… é titular da marca registada "XXX" no Benelux e na Organização da Propriedade Industrial. (38º)
    A …… International, Ltd., foi até 1981, titular da marca registada "XXX", nos EUA. (39º)
    
    III - FUNDAMENTOS
    1. O objecto do presente recurso passa fundamentalmente pela análise da existência ou não de uma situação de abuso de direito por banda das Rés relativamente aos registos de marcas que se pretendem ver anulado e revertido.
    O Mmo Juiz, conforme acima visto, prendeu-se essencialmente com os requisitos materiais e formais do pedido de anulação decorrentes do RJPI (Regime Jurídico de Propriedade Industrial) para considerar a improcedência do pedido perante ele formulado.
    2. Tentemos na fundamentação do Mmo Juiz a quo:
    “A marca, como sinal distintivo, tem por função distinguir produtos ou serviços.
    Como diz Carlos Olavo, "é através da marca que o consumidor é capaz de reconduzir um determinado produto ou serviço à pessoa que o fornece".
    Quanto à sua composição, a marca pode ser nominativa, figurativa ou mista, consoante seja constituída por palavras, ou tenha carácter plástico, tendo apresentação visual própria, ou composta por palavras e formas (Direito Comercial II Vol., Prof. Oliveira Ascensão).
    Nestes termos, a marca goza, na sua composição, do chamado princípio da liberdade, salvo condicionalismos impostos por lei.
    No que respeita à propriedade da marca, esta resulta do seu registo, ou seja, este tem eficácia constitutiva ou atributiva.
    Como diz o artigo 219°, n.° 1 do Regime Jurídico da Propriedade Industrial (doravante designado por RJPI), "o registo da marca confere ao seu titular o direi to de impedir a terceiros, sem o seu consentimento, a utilização, na sua actividade económica, de qualquer sinal idêntico ou confundível com essa marca para produtos ou serviços idênticos ou afins àqueles para os quais aquela foi registada, ou que, em consequência da identidade ou semelhança entre os sinais ou da afinidade dos produtos ou serviços, cria, no espírito do consumidor, um risco de confusão que compreenda o risco de associação entre sinal e a marca".
    Assim, como diz Miguel J.A. Pupo Correia, na sua obra "Direito Comercial", 7ª edição revista e actualizada, 2001, Ediforum, pág. 345 "só a marca registada goza de protecção do direito absoluto e exclusivo, e é protegida independentemente da ocorrência de qualquer dano, para o seu titular, pelo uso de marca semelhante".
    Entretanto, na nossa lei estão previstos alguns desvios ou excepções.
    O primeiro consiste na situação de alguém utilizar marca livre ou não registada por prazo não superior a 6 meses tem, durante esse mesmo prazo, direito de prioridade para efectuar o registo da respectiva marca (artigo 202º do RJPI) , bem como qualquer cidadão de um dos países ou territórios membros da Organização Mundial do Comércio ou da União Internacional para a Protecção da Propriedade Industrial goza do direito de prioridade, durante seis meses, a contar da apresentação do pedido, para requerer o registo da mesma marca em Macau (artigo 16º do RJPI e artigo 4º da Convenção de Paris).
    O segundo desvio resulta do regime aplicável na chamada marca notória, mesmo que não seja registada. Segundo esse regime, se for apresentado um pedido de registo de uma marca, este pode ser recusado com fundamento de a marca requerida ser confundível com outra notoriamente conhecida pertencente a um cidadão abrangido pelo RJPI (artigo 214º do RJPI). Mais, o proprietário dessa marca notória pode ainda pedir a anulação do registo, se foi concedido, provando que já requereu em Macau o registo da respectiva marca notória (artigo 230°, n.° 1, alínea b) e n.° 2 do RJPI).
    Finalmente, a terceira excepção é semelhante à segunda e consiste na protecção da chamada marca de prestígio, consagrada no nosso sistema jurídico nos termos do artigo 214°, n.° 1, alínea c) do RJPI. Assim, um pedido de registo da marca pode ser recusado se esta se destina para assinalar "produtos ou serviços sem afinidade, que constitua reprodução, imitação ou tradução de uma marca anterior que goze de prestígio em Macau, e sempre que a utilização da marca posterior procure tirar partido indevido do carácter distintivo ou do prestígio da marca ou possa prejudicá-los". Tal como acontece com a marca notória, o proprietário da marca de prestígio pode ainda pedir a anulação do registo, se foi concedido, provando que já requereu em Macau o registo da respectiva marca de prestígio (artigo 230°, n.° 1, alínea b) e n.º 3 do RJPI).
    Nos presentes autos, veio a A. pedir a anulação/reversão em seu favor dos títulos de registo das marcas já concedidos às RR., alegando ser ela titular das respectivas marcas, ter as RR. agido de má fé e com o intuito de tirar indevido proveito das marcas que sabiam pertencer à A.
    Como acima se referiu, só a marca registada confere ao seu titular o direito ao seu uso exclusivo, salvo excepções acima descritas e previstas na lei.
    Quanto ao regime de anulação do registo da marca, consagra-se no artigo 230°, n.° 1 do RJPI o seguinte:
    "1. Os registos de marca são anuláveis nos casos previstos no artigo 48° e, ainda, quando o título for concedido:
    a) sem a apresentação dos documentos comprovativos e autorizações exigíveis;
    b) em violação das normas contidas nas alíneas b) e c) do n.° 1 e no n.° 2 do artigo 214°"
    Por sua vez, o artigo 48° tem a seguinte redacção:
    "1. Os títulos de propriedade industrial são total ou parcialmente anuláveis quando forem violadas as disposições que definem a quem pertence o direito de propriedade industrial e, em geral, quando tiverem sido concedidos com preterição dos direitos de terceiros, fundados em prioridade ou outro título legal.
    2. Se reunir as condições legais, o interessado pode pedir, em vez da anulação, a reversão total ou parcial do título em seu favor.
    3 …
    4 …"
    Ora, não obstante alegar a A. ser titular da marca "XXX", mas nunca chegou a pedir o registo desta marca em Macau antes da data em que as RR. apresentaram os seus pedidos de registo, nem que tal seja marca notória ou de prestígio, para além de não se vislumbrar qualquer violação das disposições que definem a quem pertence o direito de propriedade industrial, ou qualquer situação de preterição dos direitos de terceiros, fundados em prioridade ou outro título legal, pelo que não prevalece sobre as marcas registadas a favor das RR.
    Por outro lado, salvo o devido respeito por opinião contrária, e segundo as disposições acima descritas, julgo que foi manifesta intenção do legislador em afastar a aplicação da alínea a) do n.° 1 do artigo 214° do RJPI no caso da anulação do registo da marca, nos termos da qual faz remissão ao artigo 9°, n.° 1, onde se prevê que um dos fundamentos de recusa da concessão dos direi tos de propriedade industrial é "o reconhecimento de que o requerente pretende fazer concorrência desleal, ou que esta é possível independentemente da sua intenção".
    Por outras palavras, sempre que alguém apresente um pedido de registo da marca junto das autoridades administrativas para efeito de registo, e se estas reconhecerem que o requerente pretende fazer concorrência desleal, ou que esta é possível independentemente da sua intenção, aquelas terão que recusar o seu registo, nos termos do artigo 214°, n.° 1, alínea a) do RJPI, sem prejuízo de o titular da marca de facto ou não registada vir a apresentar reclamação opondo-se ao registo de marca idêntica ou semelhante, com fundamento de possibilidade de concorrência desleal (artigo 211° do RJPI) ou eventual recurso judicial em caso de necessidade, mas nunca, como vem consagrada na lei, terá direito a pedir anulação do respectivo registo, através de processo autónomo.
    Quando muito, e caso concorram os pressupostos da concorrência desleal previstas nos termos do Código Comercial, pode a A. requerer em acção própria a inibição de prática ou continuação de prática de actos de concorrência desleal, mas nunca no sentido de anular ou pedir a reversão do título de registo em seu favor, cuja matéria está regulada devidamente no próprio Regime Jurídico da Propriedade Industrial.”
    
    3. É a própria recorrente que previne para o facto de a figura do abuso de direito, prevista no art. 326° do CC, não ser um fundamento próprio de recusa ou de anulação de direitos de propriedade industrial, apesar de não estar como tal prevista no Regime Jurídico da Propriedade Industrial e apesar de não ter sido invocado tal instituto como causa de invalidade do título de registo das marcas aqui em apreciação, crê poder trazê-lo ao conhecimento deste Tribunal de Segunda Instância.
    Alega que tem sido considerado pela Jurisprudência que o facto de não ser invocado o abuso de direito na Primeira Instância, o mesmo já não deixará de poder ser apreciado na Segunda Instância, tratando-se de matéria de conhecimento oficioso por estar em causa o fim social ou económico do direito.
    4. Vejamos então esta questão.
    O princípio do dispositivo, consagrado no artigo 3º do CPC, impõe que a parte alegue os factos que integram a causa de pedir.
    No presente caso o pedido que se pretende procedente nunca foi como tal formulado nos autos.
    Importa indagar se é de acolher o desiderato do recorrente de, através de uma nova causa de pedir - o abuso de direito -, em sede de alegações de recurso, de modo a considerar procedente ou não tal pedido, o que passa pela dilucidação da natureza do seu conhecimento, isto é, se tal questão é de conhecimento oficioso.
    Como dizem P. de Lima e A. Varela, com base no abuso do direito, o lesado pode requerer o exercício moderado, equilibrado, lógico, racional do direito que a lei confere a outrem; o que não pode é, com base no instituto, requerer que o direito não seja reconhecido ao titular, que este seja inteiramente despojado dele.1
    Ou, como diz Oliveira Ascenção, de facto, para haver abuso tem de se ter direito, apenas não se pode exercê-lo assim.2
    É verdade que as consequências do exercício inadmissível são as mais variadas, podendo obrigar a indemnizar, originar a legítima defesa, a acção directa, oposição ao acto abusivo, excepção de não cumprimento, reconstituição da situação alterada, fora da invocação de perdas e danos, etc.3
Mas se se levar ao ponto de admitir a própria supressão do direito, parece que esse fundamento deve também servir para pôr em crise o acto de aquisição, sendo o vício original, e o certo é que o recorrente o não faz, podendo, face ao alegado, fazê-lo.
    Esta questão prende-se em algum aspecto com a alegação das recorridas, fazendo pender a análise para uma eventual concorrência desleal, podendo ser, eventualmente, nesse âmbito que a questão poderia ser dilucidada.
    Mas não vamos agora misturar as coisas.
    Centremo-nos no alegado abuso de direito, traduzido nos actos de registo praticados pela 1ª ré e transmitido o direito à 2ª Ré e na possibilidade do seu conhecimento.
    Muito sumariamente, na linha da melhor Doutrina e Jurisprudência, dir-se-á que o abuso de direito é de conhecimento oficioso quando choque com regras de interesse e ordem pública, nomeadamente quando estejam em causa interesses relacionados com os bons costumes e até com o fim económico e social do direito.
    Já não assim quando o que estiver primacialmente em causa seja interesses das partes, direitos de uns contra os interesses de outros, o que sobreleva em situações de má-fé. Neste casos chocaria que a matéria fosse de conhecimento oficioso.4 E a situação dos autos parece poder enquadrar-se aqui.
    Na verdade, o que releva aqui, prima facie, é a defesa de direitos de propriedade industrial, de marcas a que se arrogam diferentes entidades particulares, tendo em vista o exercício e estímulo do seu comércio de tabacos, a defesa da reputação e qualidade dos produtos comercializados.
    É certo que na defesa de tais direitos e da sã concorrência não deixa de estar subjacente um interesse público. Mas isso não deixa de acontecer sempre que uma comunidade juridicamente organizada visa tutelar e regular o exercício dos direitos mesmo estritamente de natureza privada.
    Donde o abuso de direito dever ter sido oportunamente invocado pelas partes na acção.
Somos deste modo a concluir que a concretização da causa que conduz à supressão dos direitos sobre as referidas marcas deve ser encontrada noutro fundamento, que não no pretenso abuso de direito.
    
    5. De todo o modo, a prevenir outro entendimento, nomeadamente o de que na propriedade industrial sobreleva, para lá dos interesses privados, um direito dos consumidores em geral e uma regulação sadia da economia, se se considerar estarmos perante interesses gerais e comuns à sociedade, então não nos furtaremos a tecer algumas considerações sobre eventual pretenso abuso de poder
    Sustenta a recorrente que as recorridas actuaram com abuso do direito - art. 326º do Código Civil - já que promoveram um registo, sabendo bem que os produtos criados, desenvolvidos, publicitados, comercializados, relativamente a produto de tabaco directamente ligado àquelas marcas, em diversas partes do Mundo, eram detidas pela ora recorrente, tendo sido até a 1º ré representante da A. para essa comercialização.
    Dispõe o art. 326º do Código Civil:
    É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

O instituto do abuso do direito visa obtemperar a situações em que a invocação ou exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça dominante.
    “O abuso de direito pressupõe a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que a titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito casos em que se excede os limites impostos pela boa fé.”56
    A parte que abusa do direito, actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito.
    Uma das vertentes em que se exprime tal actuação, manifesta-se, quando tal conduta viola o princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas geradas.
     Não é necessária a consciência, por parte do agente, de se excederem com o exercício do direito os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, bastando que objectivamente, se excedam tais limites.7
     Para que se possa considerar abusivo o exercício do direito que, alegadamente, afectou a Autora, importaria demonstrar que as Rés, ao exercerem um seu alegado direito, excederam, manifestamente, clamorosamente, o seu fim social ou económico, ou que, com a sua actuação, violaram sérias expectativas incutidas na contraparte, assim traindo o seu investimento na confiança, na continuidade e na estabilidade,8 violando a regra da boa-fé - art. 752º, nº2, do Código Civil- para já não falar nos actos emulativos (sem utilidade alguma).
    É preciso, como acentuava M. de Andrade, que o direito seja exercido, “em termos clamorosamente ofensivos da justiça”.9
    6. Posto isto, pareceria, pode dizer-se que as rés agiram com abuso de direito, querendo aproveitar-se de uma marca, provavelmente notória, pertencente a outrem.
    Mas é aqui que na configuração evolutiva dogmática do que seja o abuso de direito há que entrar com outros vectores, registando-se o apontamento de quem entenda que o abuso de direito pressupõe o seu exercício para além da sua finalidade.10
    É assim que, a nosso ver, deve ser visto o direito que decorre e se pretende alcançar por via do registo das marcas.
    Basta pensar nas situações em que não só no domínio da propriedade industrial, mas até da própria propriedade privada, se logra obter uma situação jurídica por via do registo contra o próprio adquirente do direito.
    É que há determinadas instituições e institutos em que por uma razão ou outra, a segurança é colocada acima da justiça e se visa assim tutelar uma determinada prioridade formal até em detrimento de uma relação jurídica aparentemente estabilizada e sedimentada.
    Projectando este raciocínio no caso vertente, afigura-se-nos que esta preocupação está bem patente no registo das marcas.
    Salvaguardando algumas ressalvas, taxativamente previstas, quem regista primeiro tem a prioridade.
    Ora, essas ressalvas não se verificam no caso vertente.
    Mesmo em situações de grande notoriedade ou prestígio a lei condiciona a protecção das marcas a uma iniciativa registral nos diversos ordenamentos.
    A não ser assim, estaria aberta a protecção de uma e qualquer marca implementada e estabelecida em qualquer lugar em todo o resto do Mundo.
    Conforme resulta dos autos, as rés não procederam ao registo de qualquer marca cuja titularidade não lhes pertencesse porquanto as marcas em causa constituíam, na altura, marcas livres nos termos e para os efeitos do artigo 202.° do Regime da Propriedade Industrial.
    Ao registarem marcas livres as rés não estão a exercer um direito mas sim a usar de uma faculdade que a lei confere a qualquer pessoa, incluindo àquelas.
    Este entendimento que vimos delineando encontra-se, aliás, consagrado na Jurisprudência comparada11, aí se colhendo igualmente que sempre que se pede o registo de uma marca livre, usada por outrem, que não a registou, gerou-se, em princípio, alguma confusão, e quem obtém o registo pode até beneficiar de actividade publicitária feita anteriormente, mas sem que daí se possa concluir que se esteja perante uma situação de abuso do direito pelo requerente do registo.
Não pode servir a invocação do abuso do direito do requerente do registo para suprir a inércia da utilizadora da marca livre na feitura do registo, e para lhe dar um direito que só tal registo poderia dar.
    O registo da marca assume uma natureza constitutiva, donde, por norma, só o direito registado merecer protecção.12

No caso em apreço não existe abuso do direito, antes sim, o recurso a um meio/expediente que assegura a legitimidade do exercício direito e que por essa via se legitima, desde logo pelo facto de a actuação das Rés naquele processo de registo da marca não se confrontarem aí com posições jurídicas das recorrentes de todo estranhas à controvérsia de carácter administrativo em que tal exercício se traduziu, com essa actuação não tendo violado qualquer confiança que pudesse ter sido incutida na Autora que pela sua inércia, não soube acautelar os seus interesses.

7. O abuso do direito sanciona, como se viu, também, a violação do princípio da boa-fé e da confiança inerentes a uma concepção ética do agir nas relações negociais.
    O Regime Jurídico da Propriedade Industrial da RAEM consagrou como fundamento de recusa o reconhecimento de que deve ser vedado ao requerente do registo de uma marca o exercício de concorrência desleal e que esta é possível independemente da sua intenção - cfr. art.º 9.º, n.º 1, alínea c), do RJPI.
    
    A lei não descreve as situações que podem configurar concorrência desleal - ao contrário do que acontece em termos de Direito Comparado com o art. 317º do CPI de Portugal -, destacando-se na Doutrina, exemplificativamente situações integrantes dessa figura.
    
    Assim, são indicadas, a título de exemplo, na Doutrina e na Lei comparadas, as seguintes: situação objectiva de concorrência desleal por confusão de produtos (mas já não confusão de marcas que é uma situação que remete para outro fundamento de recusa com pressupostos próprios); pedido de registo de uma marca de facto usada há mais de seis meses por um outro concorrente (tendo em conta que dentro do prazo de seis meses o titular da marca de facto goza do direito de prioridade para efectuar o registo); pedido de registo de uma marca cujo registo haja sido pedido num dos países da Convenção da União de Paris por um outro concorrente que tenha cumprido o prazo de prioridade de seis meses para o pedido do registo na RAEM previsto no art.º 4º C-1 da Convenção de Paris; pedido de registo de marca que contenha o nome ou insígnia, não registados, de um estabelecimento comercial muito conhecido; pedido de registo de uma marca feito com intenção malévola de evitar o pedido iminente (e não ignorado) do registo da mesma marca por parte de um concorrente; pedido de registo de uma marca que, de modo ardiloso como é apresentada, é susceptível de induzir em erro o consumidor; falsas afirmações ou indicações de qualidade, de crédito ou reputação próprios, com o fim de beneficiar do crédito e reputação alheios.13
    
    O facto as ora recorridas poder vir a beneficiar do investimento feito pela A., facto não provado, poderia consubstanciar, efectivamente, um dos requisitos do fundamento previsto na alínea c) do n.º 1 do art.º 214.º, qual seja, o de pretender tirar partido indevido do prestígio da marca, se se pudesse dar por provado que havia reprodução de marca (que, no caso, não se verifica conforme supra se alegou e provou), que se pudesse dar por provado que as marcas da recorrente são marcas de prestígio, isto é, de excepcional notoriedade, também não demonstrado.
    No caso em apreço não podem as recorrentes invocar a violação dos referidos princípios, nem sequer em nome de eventual concorrência desleal, não se tendo comprovado, por um lado que as Rés tenham comercializado o que quer que fosse em Macau, mesmo sob a designação de tais marcas, por outro, que aquelas tivessem a intenção de, através do registo em Macau, induzir em erro os consumidores, obtendo proveito desse erro e prejudicando propositadamente a recorrente, ou se tenha provado que a recorrente vendeu os seus produtos em Macau, era titular de qualquer quota de mercado em Macau e realizou em Macau qualquer campanha publicitária ou actividade de promoção das suas marcas e dos produtos que elas visam proteger.
    8. Assim se conclui no sentido de que não se verificam os fundamentos de anulabilidade e reversão, seja com base em abuso de direito ou em qualquer outro fundamento de que caiba conhecer.
    IV - DECISÃO
    Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
    Custas pela recorrente.
Macau, 14 de Abril de 2011,

João A. G. Gil de Oliveira (Relator)

Ho Wai Neng (Primeiro Juiz-Adjunto)

José Cândido de Pinho (Segundo Juiz-Adjunto)

1 - Pires de Lima e A. Varela CCA, com. ao art. 334º
2 - DCTG, III, 2002, 282
3 - Oliveira Ascenção, DCTG, III, 2002, 280
4 - Sobre a matéria e reporte de uma resenha da posição de Vaz Serra e diferentes arestos do STJ, cfr. Oliveira Ascenção, ob. cit., 282 e segs.
5 - Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.11.96, in CJSTJ, 1996, III, 117
7 – A. Varela, Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, pág. 536



8 - Menezes cordeiro, Dto civil port. 2007, tomo IV, 278
9 - Dto das Obrig., 3ª ed., 63
10 - Martins de Carvalho, Deliberações Sociais Abusivas, 26, referidos
11 - Ac. STJ, de 1/2/2000, proc. 99ª1069, http://www.dgsi.pt
12 - Ac. STJ, de 22/7/1986, BMJ 359, 751
13 - Art. 317º do CPI de Portugal e Couto Gonçalves, Dto de Marcas, 2000, 167
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