Processo n.º 80/2011 Data do acórdão: 2011-04-28
(Autos de recurso penal)
Assuntos:
– Decreto-Lei n.o 5/91/M
– Lei n.o 17/2009
– tráfico ilícito de estupefaciente
– detenção de estupefaciente para consumo pessoal
– consumo ilícito de estupefaciente
– detenção indevida de utensilagem
– bem jurídico
– concurso efectivo
– punição do acto preparatório
– art.o 20.o do Código Penal
S U M Á R I O
1. Entre o crime de tráfico de estupefaciente e o crime de detenção de estupefaciente para consumo pessoal, respectivamente previstos nos art.os 8.o, n.o 1, e 23.o, alínea a), do então Decreto-Lei n.o 5/91/M, de 28 de Janeiro, não há concurso aparente, mas sim concurso efectivo (real), porquanto são diferentes os bens jurídicos que se procura tutelar com a incriminação e punição das condutas de tráfico de estupefaciente, por um lado, e, por outro, de detenção de estupefaciente para consumo pessoal.
2. De facto, o bem jurídico primordialmente em causa no tipo legal de tráfico de estupefaciente é a saúde pública, enquanto o bem jurídico em questão no tipo legal de detenção de estupefaciente para consumo pessoal é a saúde individual do próprio agente detentor e também consumidor de droga.
3. Entendimento jurídico das coisas esse que se aplica mutatis mutandis aos crimes de tráfico ilícito de estupefaciente e de consumo ilícito de estupefaciente, respectivamente previstos nos art.os 8.o, n.o 1, e 14.o da actual Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto, por a descrição destes dois tipos legais de crime ser aí feita, aliás, em termos semelhantes aos dos art.os 8.o, n.o 1, e 23.o, alínea a), do anterior Decreto-Lei n.o 5/91/M.
4. Pela mesma diferenciação do bem jurídico em causa, entre o crime de tráfico ilícito de estupefaciente e o crime de detenção indevida de utensilagem, respectivamente previstos nos art.os 8.o, n.o 1, e 12.o desse Decreto-Lei n.o 5/91/M, e actualmente, em termos homólogos, nos art.os 8.o, n.o 1, e 15.o da Lei n.o 17/2009, também não há concurso aparente, mas sim concurso efectivo (real).
5. Por fim, entre o crime de detenção de estupefaciente para consumo pessoal do art.o 23.o, alínea a), do Decreto-Lei n.o 5/91/M (ou o crime de consumo ilícito de estupefaciente do art.o 14.o da Lei n.o 17/2009) e o crime de detenção indevida de utensilagem do art.o 12.o do Decreto-Lei n.o 5/91/M (ou o crime de detenção indevida de utensílio do art.o 15.o da Lei n.o 17/2009), igualmente só há concurso efectivo (real), isto porque embora em ambos os tipos legais esteja em causa um mesmo bem jurídico, qual seja, a saúde individual do próprio agente detentor de substância estupefaciente ou de utensilagem, é letra expressa do Decreto-Lei n.o 5/91/M (ou da Lei n.o 17/2009) incriminar, de maneira autónoma ou independente, essas duas condutas – a conduta de detenção de estupefaciente para consumo pessoal e a conduta de detenção indevida de utensilagam para consumo de estupefaciente – como sendo actos preparatórios do consumo, a final, de substância estupefaciente (veja-se o art.o 20.o do Código Penal de Macau).
6. É de notar que o acto de detenção ilícita de estupefaciente para consumo pessoal também é abrangido no tipo legal de consumo ilícito de estupefaciente do art.o 14.o da Lei n.o 17/2009, pelo que esse acto de detenção para consumo também é aí punível como sendo um acto preparatório de consumo de estupefaciente, se bem que em alternativa da punibilidade do acto final de consumo.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 80/2011
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
Recorridas: A (A) (1.a arguida)
B (B) (2.a arguida)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I - RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão proferido no âmbito do Processo Comum Colectivo n.° CR2-09-0336-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, na parte em que se decidiu condenar a 2.a arguida B (B), julgada presencialmente, apenas como autora material de um crime consumado de tráfico de estupefacientes (devido ao aí entendido concurso aparente entre este crime e os crimes, inicialmente também imputados a essa arguida, de detenção de estupefaciente para consumo pessoal e de detenção indevida de utensilagem), bem como na parte em que se condenou a 1.a arguida A (A), julgada à revelia consentida, como autora material de um só crime de detenção de estupefaciente para consumo pessoal (por entendido concurso aparente entre este crime e o crime, inicialmente também imputado a essa arguida, de detenção indevida de utensilagem) (cfr. o teor original desse acórdão, a fls. 429 a 451v dos presentes autos correspondentes), veio a Digna Delegada do Procurador junto desse Tribunal recorrer para esta Segunda Instância, para rogar (nos termos vertidos nas duas motivações apresentadas a fls. 457 a 459 e 460 a 462 dos autos) a condenação das referidas arguidas também nos ditos crimes tal como originalmente acusados.
Responderam as duas arguidas ora recorridas no sentido de manutenção do julgado (cfr. as respectivas respostas de fls. 474 a 478 e 466 a 472 dos autos).
Subidos os autos, emitiu (a fls. 494 a 494v) a Digna Procuradora-Adjunta parecer, pugnando pela procedência dos recursos.
Feito subsequentemente o exame preliminar e corridos depois os vistos legais, procedeu-se à audiência em julgamento.
Cumpre, pois, decidir dos recursos interpostos pelo Ministério Público contra as 1.a e 2.a arguidas do processo.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Como questão nuclear, de natureza jurídica, unicamente posta nos seus recursos, a Digna Delegada do Procurador recorrente critica que o Tribunal a quo errou na aplicação do Direito ao ter considerado haver concurso aparente entre o crime de tráfico de estupefaciente e os de detenção de estupefaciente para consumo pessoal e de detenção indevida de utensilagem, e concurso aparente ainda entre estes dois últimos.
Nos autos, os factos acusados respeitantes a esses três crimes ocorreram à luz do Decreto-Lei n.o 5/91/M, de 28 de Janeiro, e não obstante a comprovação judicial de todos os elementos fácticos integradores desses três delitos, o Tribunal Colectivo a quo, por causa do seu entendimento sobre a questão de concurso aparente, acabou por não condenar as 1.a e 2.a arguidas ora recorridas tal como inicialmente vinham acusadas pelo Ministério Público.
É de referir, de antemão, que sobre a questão de concurso aparente, ou não, entre o crime de tráfico de estupefaciente e o crime de detenção de estupefaciente para consumo pessoal, então previstos, respectivamente, nos art.os 8.o, n.o 1, e 23.o, alínea a), do Decreto-Lei n.o 5/91/M, este Tribunal de Segunda Instância já se pronunciou especificadamente, no recente acórdão de 9 de Dezembro de 2010 do Processo n.o 861/2010, no sentido de haver concurso efectivo (real) entre estes dois tipos legais de crime, <>, uma vez que <>.
Entendimento jurídico das coisas esse que, nota-se, e conforme o já entendido no recentíssimo acórdão de 31 de Março de 2011, no Processo n.o 81/2011, deste Tribunal de Segunda Instância, se aplica mutatis mutandis aos crimes de tráfico ilícito de estupefaciente e de consumo ilícito de estupefaciente, respectivamente previstos nos art.os 8.o, n.o 1, e 14.o da actual Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto, por a descrição destes dois tipos legais de crime ser aí feita, aliás, em termos semelhantes aos dos art.os 8.o, n.o 1, e 23.o, alínea a), do Decreto-Lei n.o 5/91/M.
E agora para a questão de concurso aparente, ou não, entre o crime de tráfico de estupefaciente e o crime de detenção indevida de utensilagem (então previsto no art.o 12.o do Decreto-Lei n.o 5/91/M, e ora homologamente no art.o 15.o da Lei n.o 17/2009 com a epígrafe de “Detenção indevida de utensílio ou equipamento”), a resposta que o presente Tribunal ad quem dá é também no sentido de não poder existir concurso aparente, mas sim concurso efectivo (real), já que os bens jurídicos que se procuram tutelar nestes dois tipos legais de crime são também diferentes, sendo, a este ponto, de aplicar mutatis mutandis a análise já feita no supra dito acórdão de 9 de Dezembro de 2010 (e cfr. também o referido acórdão de 31 de Março de 2011).
Por fim, no respeitante ao concurso aparente, ou não, entre o crime de detenção de estupefaciente para consumo pessoal e o crime de detenção indevida de utensilagem, a solução também está no mesmo sentido de haver unicamente concurso efectivo (real) entre estes dois crimes, porquanto se afigura a este Tribunal ad quem que embora em ambos os tipos legais esteja em causa um mesmo bem jurídico, qual seja, a saúde individual do próprio agente detentor de substância estupefaciente ou utensilagem, é letra expressa do Decreto-Lei n.o 5/91/M, de 28 de Janeiro, incriminar, de maneira autónoma ou independente, essas duas condutas – a conduta de detenção de estupefaciente para consumo pessoal e a conduta de detenção indevida de utensilagam para consumo de estupefaciente – como sendo actos preparatórios do consumo, a final, de substância estupefaciente (veja-se o art.o 20.o do Código Penal de Macau).
É de notar, na esteira do mencionado acórdão de 31 de Março de 2011, que o acto de detenção ilícita de estupefaciente para consumo pessoal também é abrangido no tipo legal de consumo ilícito de estupefaciente do art.o 14.o da Lei n.o 17/2009, pelo que esse acto de detenção para consumo também é aí punível como sendo um acto preparatório de consumo de estupefaciente, se bem que em alternativa da punibilidade do acto final de consumo.
Assim, dura lex sed lex.
Dest’arte, hão-de proceder os recursos do Ministério Público, com o que é de passar a condenar as duas arguidas ora recorridas nos termos originalmente acusados sobretudo em face do anterior Decreto-Lei n.o 5/91/M, embora nos termos concretos correspondentes da Lei n.o 17/2009, já tidos como concretamente mais favoráveis às arguidas pelo Tribunal Colectivo a quo.
Portanto, e observando a mesma dosimetria do Tribunal recorrido na medida da pena, e consideradas todas as circunstâncias já apuradas no texto do acórdão recorrido, com relevância para efeitos de aplicação mormente dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, 65.o e também 71.o do Código Penal de Macau, é de passar a:
– condenar a 1.a arguida A também como autora material, na forma consumada, de um crime de detenção indevida de utensilagem, previsto, à data dos factos, pelo art.o 12.o do Decreto-Lei n.o 5/91/M, de 28 de Janeiro, e concretamente punido nos termos, considerados como mais favoráveis, do art.o 15.o da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto, na pena de 20 (vinte) dias de multa, à taxa diária de MOP100,00 (cem patacas), i.e., na multa de MOP2.000,00 (duas mil patacas), convertível, se não for paga nem substituída por trabalho, em 13 (treze) dias de prisão, e, em cúmulo jurídico com a pena de 20 (vinte) dias de multa, à taxa diária de MOP100,00 (cem patacas), já aplicada pelo Tribunal recorrido para o crime consumado de detenção de estupefaciente para consumo pessoal, na pena única de 30 (trinta) dias de multa, à taxa diária de MOP100,00 (cem patacas), i.e., na multa de MOP3.000,00 (três mil patacas), convertível, se não for paga nem substituída por trabalho, em 20 (vinte) dias de prisão;
– e condenar a 2.a arguida B também como autora material, na forma consumada, de um crime de detenção indevida de utensilagem, e de um crime de detenção de estupefaciente para consumo pessoal, previstos, à data dos factos, e respectivamente, pelo art.o 12.o e pelo art.o 23.o, alínea a), do Decreto-Lei n.o 5/91/M, e concretamente punidos nos termos correspondentes, e mais favoráveis, do art.o 15.o e do art.o 14.o da Lei n.o 17/2009, igualmente (por cada um destes dois crimes) na pena de 20 (vinte) dias de multa, à taxa diária de MOP100,00 (cem patacas), i.e., na multa de MOP2.000,00 (duas mil patacas), convertível, se não for paga nem substituída por trabalho, em 13 (treze) dias de prisão, e, em cúmulo jurídico com a pena de 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão já imposta pelo Tribunal recorrido para o crime consumado de tráfico de estupefaciente, na pena única de 3 (três) anos e 8 (oito) meses e 15 (quinze) dias de prisão.
Observa-se, entretanto, que a decisão ora tomada nesta sede recursória não irá afectar a decisão condenatória já feita no acórdão recorrido em relação à 3.a arguida C (C), acusada pelo Ministério Público apenas pela prática do crime de detenção indevida de utensilagem, pelo qual vinha efectivamente condenada pelo Tribunal recorrido.
III – DECISÃO
Ante o exposto, acordam em:
– julgar procedentes os recursos do Ministério Público;
– passando a condenar a 1.a arguida A (A) também como autora material, na forma consumada, de um crime de detenção indevida de utensilagem, previsto, à data dos factos, pelo art.o 12.o do Decreto-Lei n.o 5/91/M, de 28 de Janeiro, e concretamente punido nos termos, mais favoráveis, do art.o 15.o da Lei n.o 17/2009, de 10 de Agosto, na pena de 20 (vinte) dias de multa, à taxa diária de MOP100,00 (cem patacas), i.e., na multa de MOP2.000,00 (duas mil patacas), convertível, se não for paga nem substituída por trabalho, em 13 (treze) dias de prisão, e, em cúmulo jurídico com a pena de 20 (vinte) dias de multa, à taxa diária de MOP100,00 (cem patacas), já aplicada pelo Tribunal recorrido para o crime consumado de detenção de estupefaciente para consumo pessoal, na pena única de 30 (trinta) dias de multa, à taxa diária de MOP100,00 (cem patacas), i.e., na multa de MOP3.000,00 (três mil patacas), convertível, se não for paga nem substituída por trabalho, em 20 (vinte) dias de prisão;
– e passando a condenar a 2.a arguida B (B) também como autora material, na forma consumada, de um crime de detenção indevida de utensilagem, e de um crime de detenção de estupefaciente para consumo pessoal, previstos, à data dos factos, e respectivamente, pelo art.o 12.o e pelo art.o 23.o, alínea a), do Decreto-Lei n.o 5/91/M, e concretamente punidos nos termos correspondentes, e mais favoráveis, do art.o 15.o e do art.o 14.o da Lei n.o 17/2009, na pena de 20 (vinte) dias de multa por cada, à mesma taxa diária de MOP100,00 (cem patacas), i.e., na multa de MOP2.000,00 (duas mil patacas), igualmente convertível, se não for paga nem substituída por trabalho, em 13 (treze) dias de prisão, e, em cúmulo jurídico com a pena de 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão já imposta pelo Tribunal recorrido para o crime consumado de tráfico de estupefaciente, na pena única de 3 (três) anos e 8 (oito) meses e 15 (quinze) dias de prisão.
Custas dos recursos pelas 1.a e 2.a arguidas ora recorridas, respectivamente, com duas UC de taxa de justiça para aquela, e quatro UC de taxa de justiça para esta.
Fixam em mil e duzentas patacas os honorários devidos pela 1.a arguida ao seu Ilustre Defensor Oficioso nesta Segunda Instância, ora a adiantar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 28 de Abril de 2011.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
(Vencido no que toca ao segmento decisório com o qual se concedeu provimento ao recurso e se condena as arguidas como autoras de prática em concurso real dos crimes de “consumo de estupefacientes” e de “detenção de utensilagem”, p. e p. pelos art.°s 14° e 15° da Lei n.° 17/2009. Como já tive oportunidade de consignar na declaração de voto que anexei ao Acórdão deste T.S.I. de 31.03.2011, Processo n.° 981/2010, e que aqui dou como reproduzida para todos os efeitos legais, motivos não existem para não se considerar que a conduta das arguidas integra a prática de tais crimes em “concurso aparente”).
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