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Processo nº 998/2010(/) Data: 14.04.2011
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “ofensa à integridade física por negligência”, (negligência médica).
Contradição insanável da fundamentação.
Reenvio do processo para novo julgamento.



SUMÁRIO

1. O vício de “contradição insanável da fundamentação” apenas ocorre quando se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.

2. Existe contradição quando se dá como provado que “durante o internamento do lesado, as 1ª e 2ª arguidas tinham considerado que o lesado sofreu de outras doenças, tais como obstrução intestinal, intussuscepção e pancreatite”, e, simultaneamente, como “não provado” que “as duas arguidas previram que o lesado podia sofrer de intussuscepção”.

3. Sendo tal contradição insanável, impõe-se o reenvio do processo nos termos do art.418° do C.P.P.M..

O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo













Processo nº 998/2010(()
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão do T.J.B. decidiu-se absolver as (1ª e 2ª) arguidas A e B do imputado crime de “ofensas à integridade física por negligência”, p. e p. pelo art. 142º nº 1 e art. 14º al. a) do C.P.M..

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Quanto ao pedido de indemnização civil enxertado nos autos, julgou-o o Colectivo parcialmente procedente, condenando as 3 demandadas cíveis – A, B e “ASSOCIAÇÃO DE BENEFICÊNCIA DO HOSPITAL KIANG WU” (澳門鏡湖醫院慈善會) – a pagar aos demandantes e assistentes – C, D e E uma indemnização no total de MOP$85,000.00; (cfr., fls. 667 a 682 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformados com o decidido, do mesmo vieram recorrer os demandantes (assistentes) e as demandadas.
Na sua motivação de recurso assim concluem os demandantes:
“1. Estão apurados os seguintes factos:
- Por volta das 15h00m da tarde do dia 18 de Outubro de 2002 o menor E queixou-se de dores intensas. Um familiar seu levou-o para consulta médica junto das Consultas Externas do Hospital Kiang Wu. Aí, foi medicado e mandado à casa para repouso.
- Por volta das 18h00m da tarde desse mesmo dia, uma vez que as intensas dores do menor persistiam, foi novamente levado a consulta externa do Hospital Kiang Wu. Novamente submetido a consulta e medicado, não careceu de baixa hospitalar.
- Na madrugada do dia seguinte, devido às dores permanentes, o menor é mais uma vez levado para consulta junto do Hospital Kiang Wu. Observado, foi mandado para casa.
- Até que na manhã do dia 19 de Outubro de 2002, o menor regressa a consulta junto do Hospital Kiang Wu, e, aí, é aconselhado o internamento hospitalar do menor, no que foi aceite pelos recorrentes.
- Logo após o internamento do menor, este é submetido a diversos exames e análises, tendo em vista o correcto diagnóstico da doença subjacente àquelas intensas dores.
- Pouco depois, a primeira arguida, na qualidade de médica-chefe de pediatria, em face dos resultados dos exames, afirma, em tom conclusivo, que o diagnóstico está feito, e que o menor sofre da doença de gastro-enterite.
- E assim começou o tratamento médico e medicamentoso do menor tendo por ponto de referência o diagnóstico de gastro-enterite, tendo sido ministradas injecções e medicamentos que, no essencial, serviam para o alívio das dores do paciente.
- Mau grado o diagnóstico feito e o tratamento a que vinha sendo submetido, a situação clínica do menor permanecia no essencial inalterada, com queixas de cíclicas e intensas dores.
- No início da noite e na madrugada do dia 24 de Outubro de 2002, as dores do menor subiram de intensidade e frequência, alertados para tal, os médicos do Hospital Kiang Wu limitaram a ministrar injecções e medicamentos de redução de dores, não promovendo ou realizando quaisquer outros exames ou análises.
- No dia 24 de Outubro de 2002, os recorrentes, em face da ineficácia do tratamento médico e medicamentoso feitos, decidem pela imediata alta hospitalar do menor, e nesse mesmo dia é transportado de urgência para Hong Kong e ali internado no Hospital Santa Teresa. Nessa mesma noite, os médicos do hospital de Hong Kong conseguem o correcto diagnóstico do menor; o menor sofria da doença de intussuscepção. Aí, o menor é operado de urgência, e a sua situação e saúde melhoram dramaticamente, tendo alta hospitalar após alguns dias.
2 - Dos relatórios apresentados pelos peritos médicos e pelos médicos do Centro de Avaliação das Queixas Relativas a Actividades de Prestação de Cuidados de Saúde, ressaltam-se os seguintes factos tidos por apurados:
- Logo no início do internamento do menor no Hospital Kiang Wu os médicos que tiveram contacto inicial e participaram no estudo da situação clínica do menor suscitaram a hipótese de os sintomas de dores em causa do menor poderem ter por base uma situação clínica de intussuscepção, a qual deverá merecer a melhor atenção e diligências de rastreio por parte da equipa médica que está a tratar do menor. No entanto, tal rastreio, no sentido de apurar ou definitivamente excluir a hipótese de intussuscepção nunca foi feito ou ordenado pelas duas arguidas médicas;
- Durante os dias em que o menor esteve internado no Hospital Kiang Wu, o mesmo foi submetido a 2 Exames de Raio-X, ambos efectuados nos intervalos em que o menor não se queixava de dores. Paradoxalmente, provou-se (documentalmente) que durante os momentos em que o menor se queixava de intensas dores, nunca foi submetido ou ordenado que fosse feito Exame de Raio-X. A realização do Exame de Raio- X no preciso momento de dores é de extrema utilidade e essencial para um correcto e atempado diagnóstico, e não em momento anterior ou posterior às dores cíclicas.
- Durante o período de permanência hospitalar, o menor apenas foi submetido a uma única sessão de Exame de Ecografia (exame "ultra-sound"). No entanto, o exame de ecografia feito ao menor, na presença e sob a direcção da segunda arguida, cingiu-se apenas na parte abdominal (上腹), e não na parte intestinal (下腹) donde advinham as intensas dores.
- Decorrido o intervalo de tempo em que os medicamentos ministrados deviam começar a surtir os seus efeitos, as intensas dores do menor permaneciam inalteradas ou reduzidas, mas, as duas médicas arguidas não tomaram a precaução de encararem com seriedade a possibilidade de o diagnóstico inicial feito de gastro-enterite ser erróneo, e, daí, começarem a estudar outras hipóteses de doenças, nomeadamente, a de intussuscepção tal como os médicos inicialmente referiram como sendo uma hipótese a não descartar dada a similitude dos sintomas. As duas arguidas assim não o fizeram porém, teimando em continuar a considerar o menor como sofrendo apenas de uma mera gastro-enterite.
- Os peritos médicos nos seus respectivos relatórios da especialidade junto aos autos, e em depoimentos prestados, referem expressamente a tal, concluindo pela existência de postura consubstanciadora de negligência médica.
- Durante o período de tempo em que o menor esteve internado e sob tratamento médico supervisionado pelas duas arguidas, estas pouco mais fizeram do que ministrar injecções e medicamentos no sentido de alívio de dores, partindo sempre do pressuposto erróneo de que estariam a lidar com uma situação clínica de gastro-enterite que, com o tempo, o corpo e o organismo de defesa do menor se encarregaria de resolver.
- E, quando, a partir do 3.° ou 4.° dias de internamento, a situação de dores do menor não melhorava, as duas arguidas não se deram ao trabalho, sua obrigação aliás, de convocar um colégio de médicos de especialidade a fim de novamente procederem ao estudo da situação clínica do menor e, numa postura aberta, admitir outras hipóteses de doença ou tratamentos alternativos.
3 - Assim, a partir do momento em que o tratamento médico e medicamentoso inicial se mostrou inútil, dada a permanência das dores intensas e cíclicas do menor, as duas arguidas deveriam ter tido uma postura aberta, científica e receptiva de questionar sobre a validade do seu diagnóstico inicial de gastro-enterite, e, daí, de começar a encarar, estudar e realizar exames alternativos no sentido de apurar ou afastar outras tantas hipóteses patológicas, nomeadamente, a de doença de intussuscepção inicialmente encarada pelos médicos.
4 - Não o fizeram, porém. Insistiram, sob sacrifício do menor, pela correcção do seu diagnóstico inicial de gastro-enterite.
5 - A possibilidade de encarem outras hipóteses patológicas e tomarem as devidas precauções necessárias estavam bem ao alcance das duas arguidas.
6 - E, assim, a partir desse momento, quando podiam e deviam ter agido diversamente mas não o fizeram, as duas arguidas médicas agiram de forma negligente, e em negligência grosseira, pondo em causa e risco a integridade física e a saúde do menor de 2 anos.
7 - Razão pela qual, a partir do momento em que deixaram de seriamente descartar da hipótese patológica de intussuscepção e de agir, as duas arguidas cometeram o crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 142.° do Código Penal.
8 - Ou então, poderiam ter alertado os ora recorrentes pela limitação técnica do Hospital Kiang Wu no apuramento da doença de intussuscepção e aconselhado a consulta imediata junto de outros estabelecimentos hospitalares com domínio técnico da doença em causa.
9 - Agindo diversamente, o Tribunal Colectivo em sua decisão recorrida, nessa parte, errou, e assim, eivou o acórdão recorrido dos vícios de erro notório na apreciação da prova e de contradição insanável na fundamentação, previstos no artigo 400.°, n.° 2, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal de Macau em vigor.
10 - Perante a factualidade apurada, forçoso é de concluir que, na procedência da pronúncia, o pedido de indemnização civil oportunamente formulado nos autos deveria ter merecido um outro epílogo.
11 - Assim, o Tribunal Colectivo, na sua decisão recorrida, na parte que julgou o pedido de indemnização civil apenas parcialmente procedente, está eivado dos vícios de erro notório na apreciação da prova e de contradição insanável na sua fundamentação. Violou, ainda, as normas legais contidas nos artigos 477.° , n.° 1, e 480.° do Código Civil de Macau em vigor, que assim interpretou e aplicou incorrectamente.
12 - Provado o facto ilícito, estabelecido o nexo de causalidade adequada, provados os danos e a culpa, deveria o Tribunal “a quo” ter julgado procedente o pedido de indemnização, condenando os demandados civis a pagarem aos autores as quantias exactamente peticionadas.
13 - Na eventualidade de se entender que a decisão recorrida não merece qualquer reparo, ainda assim, o que se diz por mera hipótese de raciocínio sem conceder, sempre se dirá que os valores monetários arbitrados a título de indemnização pelos danos morais sofridos pecam por serem minimalistas, em nada se reflectindo as enormes dores, sofrimento e angústia sofridos pelos demandantes durante todo esse Calvário que percorreram há 8 anos atrás.
14 - Ora, considerando as enormes dores, sofrimento e angústia sofridas pelos demandantes durante todo este infeliz e trágico acontecimento, o grosseiro ataque à saúde e integridade física do menor, os montantes arbitrados a título de danos morais sofridos deveriam ser aqueles que foram peticionados no pedido de indemnização civil.”

A final, pedem que seja:
“a) revogado o acórdão recorrido, na parte que julgou improcedente a pronúncia contra as duas arguidas, substituindo-o por um outro que as condene, em co-autoria material, e na forma consumada, na prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 142.° do Código Penal de Macau;
b) revogado o acórdão recorrido, na parte que julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado, substituindo-o por um outro que, julgando provados os factos alegados, condene os demandados civis a pagarem, solidariamente, aos demandantes civis os montantes peticionados no pedido de indemnização civil formulado, (…)”; (cfr., fls. 701 a 715).


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Por sua vez, e em sede da sua motivação, assim concluem as demandadas:
“1 - Vem o recurso a que ora se responde interposto do douto Acórdão proferido em 13 de Outubro do corrente ano, o qual, absolveu as oras Respondentes do crime de ofensa à integridade física por negligência¬ – p.p. pelo artigo 142° n°1 do Código Penal-, cuja prática lhes era imputada, e, bem assim, julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil, e, consequentemente, condenando as demandadas civis no pagamento de uma indemnização
2. Para tanto, alegam os Assistentes que o Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, incorreu em erro notório na apreciação da prova e, bem assim, em contradição insanável na fundamentação, nos termos do disposto nas alíneas b) e c) do n.° 2 do artigo 4000 do Código de Processo Penal, que, no seu entender, conduzem à revogação do acórdão recorrido e, consequentemente, à condenação das Arguidas pela prática do crime que lhes são imputado, e condenar as demandadas civis o pagamento dos montantes peticionados no pedido cível formulado pelos Assistentes.
3. Sucede, porém, que, como infra se demostrará detalhada e exaustivamente, não assiste qualquer razão aos Assistentes, pelo que deve ser negado provimento ao seu recurso e, consequentemente, manter-se o decidido na parte que absolveu as arguidas do crime de ofensa à integridade física por negligência, e revogar o acórdão recorrido na parte que julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil, substituindo por uma absolvição das demandadas civis, nos termos do recurso por estas interposta.
Vejamos porquê.
4. Em causa está, tão só e apenas, uma alegada demora no diagnóstico de um intussuscepção intestinal.
5. De acordo com os Assistentes não obstante o Ofendido continuar a ter dores (derivadas de uma gastro-enterite), as Arguidas não realizaram exames no sentido de apurar a situação de doença de intussuscepção numa fase posterior, pelo que cometeram o crime de ofensa à integridade física por negligência.
6. Alegam os Assistentes que, a partir do momento em que o tratamento médico incial se mostrou (a partir do 4° dia de internamento), dada a permanência de dores, as duas Arguidas deveriam questionar sobre a validade do seu diagnóstico inicial de gastro-enterite, e daí realizar outros exames no sentido de apurar ou afastar outras doenças, nomeadamente a situação de doença de intussuscepção, e como não o fizeram, as duas Arguidas agiram com negligência grosseira.
7. Não assiste qualquer razão aos Assistentes. Senão vejamos.
8. Com base nos factos provados, concluiu o tribunal a quo que:
- Quando o ofendido deu entrada no Hospital Kiang Wu, este sofria de gastro-enterite;
- A intussuscepção intestinal terá ocorrido depois da noite do dia 23 ou da madrugada do dia 24.
9. Ora, tais factos demonstram que o ofendido sofria de gastro-enterite no momento que deu baixa no Hospital Kiang Wu, sendo correctos o diagnóstico e o tratamento efectuados pelas Arguidas.
10. Por outro lado, revelam também que a intussuscepção intestinal surgiu só numa fase posterior, e, com base na matéria de facto provada, não foi possível determinar o momento exacto em que surgiu tal doença.
11. Em todo o caso, tendo em conta que o tribunal a quo concluiu que a intussuscepção intestinal tinha surgido na noite de 23 ou madrugada de 24, conlusão esta também reconhecida pelos Assistentes, a não detecção da referida doença ainda no Hospital Kiang Wu não deve ser imputada qualquer responsabilidade às Arguidas.
12. Ora, ficou provado que logo no dia 24, os pais pediram alta do Ofendido, tendo o levado para um hospital de Hong Kong.
13. Com efeito, com a saída do Ofendido, as Arguidas deixaram de poder agir, questionar, estudar, analisar, acompanhar e realizar novos exames no sentido de diagnosticar a intussuscepção intestinal que o Ofendido eventualmente sofria.
14. Foi precisamente nesse momento crítico que os pais do Ofendido decidiram deixar o Hospital Kiang Wu, assim, as Arguidas não podiam fazer mais nada, senão concordar com a decisão de alta do Ofendido, pelo que a não detecção da intussuscepção intestinal não deveu-se a nenhuma conduta negligente das Arguidas.
15. Só poderia ter havido negligência por parte das Arguidas no caso em que, tendo o Ofendido continuado a internar no Hospital Kiang Wu, as Arguidas não tivessem detectado a intussuscepção por algo que lhe fosse imputável, optando por não realizar mais exames e estudos. Mas não foi isso o que aconteceu.
16. Por outro lado, ficou também provado que a intussuscepcão que o ofendido sofreu foi atípica.
17. Ora, por definição, o atípico é aquilo que foge ao normal das circunstâncias.
18. Isto é, a razão da não detecção da doença em causa (se é que apareceu durante o internamento no Hospital Kiang Wu) prende-se com o facto da mesma não ter apresentado os sintomas normais. E, se não apresentou os sintomas normais, a conclusão lógica é que demoraria mais tempo a ser detectado.
19. Ou seja, até o momento em que o arguido sai do Hospital Kiang Wu, não é possível determinar a tal "teimosia" das Arguidas, que de facto não existiu.
20. Conclui-se pois, com base nos factos provados, que não existiu qualquer lesão ou ofensa resultante de um acto ou omissão das Arguidas, requisito essencial para o preenchimento do crime de ofensa à integridade física.
21. Sobre a verificação do crime em causa, ensina o Professor Figueiredo Dias que, "A lesão da integridade física terá que ser objectivamente imputada à conduta (ou omissão) do agente. O que supõe, pelo menos no caso de comportamentos negligentes. a violação de um dever objectivo de cuidado. Com o que se coloca a questão da existência de um tal dever, da sua medida, e da relação causal que tem que existir entre a sua violação e o resultado produzido."(Código Penal Anotado, pág. 261).
22. In casu, não se determinou qualquer resultado produzido, isto é, com as condutas das Arguidas não resultou qualquer ofensa ou lesão ao Ofendido.
23. A doença de intussuscepção intestinal resultou de uma evolução patológica do Ofendido, e não de uma conduta negligente das Arguidas, como claramente concluiu o tribunal.
24. Pelo exposto, não ficou provado nenhuma relação de causalidade entre a suposta violação do dever de cuidado e a doença do Ofendido.
25. Ora, mais uma vez é bom recordar que, segundo o próprio tribunal a doença, a ter aparecido só ocorreu entre 23 e 24, e 24 foi precisamente o dia em que o ofendo abandonou as instalações do Hospital Kiang Wu, tendo nesse mesmo dia, a doença sido detectada noutro hospital, que por sua vez, já estava munido de toda a história clínica do doente, o que lhe terá facilitado a imediata detecção, sem contar o facto de dispor equipamentos mais modernos.
26. Assim, a detecção ocorreu no momento exacto, ou seja, mesmo que no dia 23 ou 24 - data que o tribunal considera ter ocorrido a doença - ¬tivessem sido feitos novos exames ou se tivesse aconselhado o recurso a um hospital com mais condições, tal não evitaria as dores físicas e psicológicas sofridas pelo ofendido nem as dores psicológicas sofridas pelos pais, ofensas que alegadamente terá sido causadas pelas Arguidas. Com efeito, tais dores têm o seu nexo de causalidade na doença sofrida pelo ofendido e na atipicidade dos sintomas apresentados e não em qualquer atraso no diagnóstico.
27. Por outro lado, as dores sofridas e as preocupações sofridas durante o tempo de deslocação do Hospital Kiang Wu para Hong Kong não podem nunca ser imputados às demandadas.
28. Também aqui, não existem elementos para estabelecer, com certeza, um nexo causalidade entre os factos imputados às Arguidas e as dores sofridas pelo ofendido e pelos seus pais, como ainda, os factos de que dispunha e ficaram provados impunham uma decisão contrária.
29. Pelo que, das condutas das Arguidas, não resultou qualquer ofensas ao Ofendido, elemento necessário para o preenchimento do crime em causa.
30. Por fim, importa realçar que, na matéria de facto provada, com referência aos relatórios médicos, foram provados os seguintes factos:
- "Durante todo o processo de tratamento médico do doente, o pessoal médico da Ortopedia do Hospital Kiang Wu foi realmente cuidadoso, e efectuou um registo pormenorizado da situação do doente, revelando a atenção a nível profissional desse pessoal";
- "Devido à alta incerteza técnica e resultado do tratamento da medicina, e como no presente caso, os sintomas de intussuscepção intestinal do doente são atípicos e recorrentes, ainda que tivesse verificado insuficiência no tratamento, não é científico e objectivo exigir ao médico um diagnóstico correcto dentro de um prazo concreto".
31. Ora, os factos provados acima referidos demonstram que, desde o momento da entrada do Ofendido no Hospital Kiang Wu, os diagnósticos e tratamentos foram sempre tempestivos e adequados, segundo os conhecimentos médicos que o hospital possuía e com a utilização dos instrumentos médicos disponíveis.
32. Isto é, ficou provado que as 1ª e 2ª RR. efectuaram os exames físico, raio-x e ecografia adequados ao diagnóstico, entre outras doenças, da intussuscepção intestinal, tendo feito as análises às fezes, vómitos, sangue urina etc. Ficou ainda provado que apesar de todos os exames realizados ao longo do internamento do A., não foi detectado a existência da intussuscepção, conforme resulta do relatório médico de fls. 419.
33. Assim, o Tribunal a quo decidiu de forma correcta, ao concluir que no presente processo não existem elementos suficientes que constituem requisitos de negligência subjectiva para a verificação da responsabilidade criminal.
34. Acrescenta-se que, nem sequer chegou a haver ofensa à integridade física resultante de acto ou omissão das Arguidas.
35. Pelo exposto, ao absolver as duas Arguidas do crime de que vinham pronunciadas, o Tribunal a quo não incorreu em erro notório na apreciação da prova, nem na contradição insanável na fundamentação, vícios previstos no art° 400° n° 2 alíneas b) e c) do Código de Processo Penal.
36. Quanto à parte cível, alegam os Assistentes que foram provados o facto ilícito, estabelecido o nexo de causalidade adequada, provados os danos, e tendo os Assistentes provado a culpa, deveria o Tribunal "a quo" ter julgado procedente o pedido de indemnização no montante peticionado.
37. Porém, os Assistentes limitaram-se apenas a fazer tal afirmação, sem oferecer argumentos válidos para fundamentar a verificação de tais requisitos constitutivos da responsabilidade civil.
38. E pelo contrário, tal como ficou acima exposto, como as Arguidas agiram de forma tempestiva e adequada, não se tendo verificado conduta negligente das Arguidas, nem foi produzido nenhum resultado, não existindo relação causal entre a conduta das Arguidas e a doença do Ofendido, e sendo os danos sofridos próprios da doença e não resultante da actuação das Arguidas.
39. Importa realçar sobre o nexo de causalidade, uma vez que, ainda que tivesse havido algum atraso imputáveis ao Hospital Kiang Wu na detecção da intussuscepção, não ficou provado um verdadeiro nexo de causalidade entre o tal atraso e os danos.
40. As dores sofridas e as preocupações sofridas durante o tempo de deslocação do Hospital Kiang Wu para Hong Kong não podem nunca ser imputados às demandadas.
41. Também aqui, não existem elementos para estabelecer, com certeza, um nexo causalidade entre os factos imputados às demandadas e as dores sofridas pelo ofendido e pelos seus pais, como ainda, os factos de que dispunha e ficaram provados impunham uma decisão contrária.
42. Assim, as demandadas civis entendem que, salvo o devido respeito, o acórdão recorrido violou os artigos 477° n° 1 e 480° do Código Civil, mas pelo facto de não estarem verificados os requisitos de responsabilidade civil aí previstos, não devendo as demandadas serem condenadas no pedido de indemnização civil.
43. Sem prescindir, ainda que concluísse pela existência de responsabilidade civil das demandadas, que só por mera cautela de patrocínio se admite, os montantes indemnizatórios arbitrados pelo Tribunal a quo são adequados.
44. Os Assistentes, nos seus artigos 21° a 24° do recurso, alegam que sofreram danos pelas dores, sofrimento e angústia, pelo facto de o ofendido sofrer dores e dos pais do mesmo tivessem ficado preocupados com a situação do filho.
45. Porém, mesmo que tivesse sido diagnosticado a intussuscepção durante o internamento no Hospital Kiang Wu, o A. E teria de receber os mesmos tratamentos que recebeu no Hospital de Hong Kong.
46. Ou seja, teria na mesma de ser submetido ao tratamento de redução através de enema, e por outro lado, a operação efectuada no dia 26 de Outubro de 2002, e as respectivas consequências, não têm nada a ver com as RR.,
47. Pelo exposto, os danos respeitantes às tais dores do ofendido não podem ser imputadas às RR..”; (cfr., fls. 716 a 789).

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Admitidos os recursos vieram os autos a este T.S.I..

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Em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador-Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Está em causa, relativamente à parte criminal, o recurso interposto pelos assistentes (sendo que apenas nessa parte nos cumpre emitir parecer).
E os mesmos insurgem-se contra a decisão que absolveu as arguidas do crime de ofensa à integridade física por negligência que lhes era imputado na pronúncia.
Vejamos.

A questão suscitada na motivação inscreve-se na área do diagnóstico clínico, que corresponde, naturalmente, a um aspecto crucial da actividade típica do profissional médico.

E qualquer diagnóstico comporta, necessariamente, uma avaliação com um grau mais ou menos elevado de subjectividade.
Daí, também, que um juízo de negligência médica assuma, nesse domínio, um particular melindre.
Sintomaticamente, aliás, não faltam vozes a proclamar, aí, um tratamento diferenciado em relação às demais modalidades de erro médico (cfr. Álvaro da Cunha G. Rodrigues, Responsabilidade Médica em Direito Penal, 293 e segs.).
No caso “sub Júdice”, face aos elementos disponíveis, não repugna aceitar a conclusão do douto acórdão de que “na noite de 23 de Outubro e na madrugada do dia 24 ou mais cedo o lesado já tinha sintomas de intussuscepção”.
E tal conclusão emerge, além do mais, dos meios da prova produzidos e, designadamente, das perícias médicas efectuadas.
Subsistem, de qualquer forma, “in casu”, as hipóteses de erro ou demora do diagnóstico em foco (sendo certo que a diagnose inicial se manteve até á saída do Hospital).
Pode ter-se como verificada a violação do dever objectivo de cuidado que a negligência pressupõe?
Propendemos pela negativa.

Desde logo, na verdade, há que ter em conta a similitude dos sintomas da mencionada enfermidade com a gastroenterite - sendo esta “uma das causas normais” da mesma (cfr. relatório da segunda perícia).
Acresce, ainda, o facto de o ofendido ter abandonado as instalações do Hospital logo no dia 24, para ser examinado e tratado em Hong Kong.
É certo que no Hospital da Região vizinha a doença foi rapidamente diagnosticada.
Como se frisa na resposta á motivação, no entanto, esse Hospital “já estava munido de toda a história clínica do doente, o que lhe terá facilitado a imediata detecção, sem contar o facto de dispor de equipamentos mais modernos”.
Pode questionar-se, em especial, nas circunstâncias do caso, o facto de não se haver investigado a intussuscepção.
O Tribunal Colectivo pronunciou-se, de facto, por uma “insuficiência” de diagnose.

As arguidas ter-se-ão baseado, a propósito, na sua experiência médica.
E o chamado “olho clínico”, conforme se sabe, é um elemento importante de qualquer diagnóstico.
Há quem defenda, por isso, que “só uma ignorância indesculpável ou o esquecimento das mais elementares regras profissionais, que se revelem de modo evidente, poderão determinar a responsabilização do médico por erro de diagnóstico” (A. S. Henriques Gaspar, A Responsabilidade Civil do Médico, C.J., III, 1,347).

Tudo ponderado, enfim, afigura-se-nos pertinente a intervenção do princípio “in dubio pro reo”.
Conforme sublinha Figueiredo Dias, “a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido” (D.P.P.,.I, 215).
Não se divisa, em suma, no âmbito da matéria de facto, qualquer dos vícios invocados pelos assistentes e, nomeadamente, qualquer erro – que possa ter-se como notório – na apreciação da prova.

Deve, pelo exposto, quanto à parte criminal, o recurso ser julgado improcedente”; (cfr., fls. 859 a 863).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Vem dados como provados os factos seguintes:
“Em 18 de Outubro de 2002, pelas 3 horas da tarde, o lesado E, que tinha 2 anos na altura, disse que sentiu dor intensa no abdómen em casa da sua avó F.
O pai do lesado C e a avó F levaram o lesado ao serviço de urgência do Hospital Kiang Wu, e o lesado foi atendido por um médico que segundo os sintomas do lesado na altura e o exame físico, fez a diagnose de que o lesado sofreu de transtorno da função gastrointestinal ou de gastrite aguda, e deu tratamento correspondente aos sintomas.
No mesmo dia (18 de Outubro de 2002), pelas 6 horas da tarde, o lesado disse em sua casa que ainda sentiu dor intensa no abdómen e não parou de chorar, pelo que o pai do lesado C levou o lesado ao serviço de urgência do Hospital Kiang Wu mais uma vez.
No referido serviço de urgência, o lesado foi atendido pelo mesmo médico que o tinha atendido na tarde. O médico fez um exame físico ao lesado e manteve a diagnose feita na manhã (sic.), sugerindo ao pai do lesado que não desse leite ao lesado nos próximos dias (porque o leite podia causar vómito ao lesado) e não acrescentando mais.
Na noite daquele dia, a dor no abdómen do lesado ainda não parou.
Em 19 de Outubro de 2002, pelas 3 horas da madrugada, o lesado alegou em casa que ainda sentiu dor intensa no abdómen, chorando, e o seu rosto era pálido, pelo que o pai do lesado levou o ao serviço de urgência do Hospital Kiang Wu de novo.
Desta vez, o lesado foi atendido por um outro médico que através de observação do lesado e de exame físico, também manteve a diagnose feita pelo médico que tinha atendido o lesado no dia 18 de Outubro.
Em 19 de Outubro de 2002, pelas 9 horas de manhã, o pai do lesado C decidiu levar o lesado ao serviço de consulta de pediatria do Hospital Kiang Wu, dirigido pela médica A, ou seja a 1ª arguida.
Os médicos assistentes do lesado são a médica A, ou seja a 1ª arguida, e a sua assistente, a médica B, ou seja a 2ª arguida.
Segundo o prontuário médico de urgência e os sintomas do lesado, a médica A fez a diagnose de que o lesado sofreu de transtorno da função gastrointestinal e transferiu o lesado para a enfermaria de 1ª classe.
Após o internamento, o lesado recebeu tratamento de medicamente e transfusão de fluido.
Porém, o lesado não deixou de sentir dor intensa.
O pai do lesado C acompanhou o filho no hospital dia e noite, e a condição do lesado preocupava ele e os membros da família.
Em 20 de Outubro de 2002, o lesado ficou hospitalizado. Apesar de ter tomado medicamento por mais de 48 horas, o lesado ainda sofreu cólica periódica em volta do umbigo, e a dor abdominal durou cerca de dez minutos cada vez.
No mesmo dia (20 de Outubro de 2002), ao tratar o lesado, a 1ª arguida manteve a diagnose de infecção intestinal, deu a mesma prescrição e transfusão de fluido e disse que conforme a situação clínica da infecção intestinal, o período em que o lesado precisava de observação e de tomar remédios podia chegar até uma semana. Os pais do lesado acompanharam-no no hospital todos os dias.
Em 21 de Outubro de 2002, ao fazer inspecção nas enfermarias, a 1ª arguida continuou a usar o mesmo medicamento e a mesma transfusão de fluido.
Nos primeiros dois dias do internamento, o lesado não defecou e só no dia 21 de Outubro de 2002 é que defecou, e as fezes foram submetidas ao exame laboratorial. Mais tarde, a 1ª arguida notificou o pai do lesado C do resultado do exame laboratorial, mantendo a diagnose de infecção intestinal e entendendo que a situação do lesado era normal.
Porém, o lesado ainda sofreu de dor abdominal periódica.
Em 20 de Outubro de 2002 (o dia anterior), o hospital fez um exame de radiografia de abdómen ao lesado para excluir a possibilidade de obstrução intestinal.
O parecer do exame de radiografia é: no abdómen superior esquerdo do doente há muito ar, mas a expansão intestinal não é óbvia e não se vê o nível líquido-aéreo nem sinais de obstrução intestinal na radiografia.
Na noite do dia 21 de Outubro de 2002, por o lesado alegar sentir dor aguda por toda a noite, o pai do lesado chamou o médico de turno no dia seguinte (22 de Outubro de 2002), este deu injecção ao lesado para lhe aliviar a dor, e não fez outros tratamentos.
No mesmo dia (22 de Outubro de 2002), a 1ª arguida fez inspecção nas enfermarias e, a pedido do pai do lesado C, mandou extrair sangue do lesado e fezes para exame laboratorial, e efectuou ao lesado exame de ultrassonografia. Mais tarde, a 1ª arguida disse que tudo era normal.
Porém, o referido exame realizado não era exame de ultrassonografia de intestino.
A 2ª arguida era responsável pelo exame de ultrassonografia. Na altura, a 2ª arguida disse na sala de ultrassonografia que o resultado do exame era absolutamente normal, mas o lesado ainda sentiu dor.
No dia seguinte (23 de Outubro de 2002), a 1ª arguida fez mais uma vez exame de rotina ao lesado e decidiu dar-lhe injecção para aliviar a sua dor. E a 1ª arguida manteve a diagnose de infecção intestinal, dizendo que a doença do lesado não era intussuscepção.
Em 24 de Outubro de 2002, da meia-noite às 7 horas da manhã, o lesado continuou a sentir dor intensa e a 1ª arguida deu injecção ao lesado para aliviar a sua dor de novo. De manhã, a 1ª arguida extraiu sangue do lesado e a seguir, fez exame físico ao lesado, apertou no abdómen do lesado e alegou que o abdómen do lesado não tinha problema por não ser “duro”.
A 1ª arguida disse que o resultado do exame de sangue do lesado era normal.
Durante o internamento do lesado, as 1ª e 2ª arguidas tinham considerado que o lesado sofreu de outras doenças, tais como obstrução intestinal, intussuscepção e pancreatite. Mas segundo os sintomas clínicos e a inspecção de radiografia do abdómen, não foi a situação de obstrução intestinal, pelo que as 1ª e 2ª arguidas não realizaram exames correspondentes à intussuscepção (exame de ultrassonografia do tipo B da massa abdominal e clister do ar) nem uma consulta de cirurgião.
Em 24 de Outubro de 2002, pelas 4 horas da tarde, o lesado ainda sentiu dores. O pai do lesado C decidiu tratar das formalidades de saída do hospital para levar o filho ao Hong Kong a receber tratamento.
A 1ª arguida alegou que o lesado podia ser tratado em Hong Kong, mas tinha certeza de que o lesado não sofreu de intussuscepção repetida.
Para o filho poder sair do hospital, o pai do lesado C teve de assinar uns documentos.
Em 24 de Outubro de 2002, pelas 9 horas da noite, o pai do lesado C levou o filho para St. Teresa’s Hospital situado em 327 Prince Edward Road, Kowloon, Hong Kong.
Os médicos do referido hospital fizeram de imediato várias inspecções e mais tarde, o especialista de pediatria G disse ao pai do lesado C que, conforme a diagnose clínica, o lesado sofreu obviamente e sem dúvida de intussuscepção repetida.
Na noite daquele dia, os médicos do St. Teresa’s Hospital fizeram uma inspecção de ultrassonografia ao lesado, e o resultado mostrou que o lesado sofreu de intussuscepção repetida, e a seguir, fizeram uma operação de cirurgia emergente ao lesado.
Em 26 de Outubro de 2002, o lesado recebeu uma segunda operação cirúrgica intestinal no St. Teresa’s Hospital, o cirurgião H presidiu a respectiva operação e o lesado ficava sob anestesia geral por 1 hora.
Em 2 de Novembro de 2002, o lesado saiu do hospital e voltou para Macau.
O pai do lesado C impugnou a omissão em diagnose dos médicos ao Hospital Kiang Wu, mas este hospital não admitiu a impugnação e disse que não iria indemnizar o lesado.
Em 13 de Novembro de 2002, o pai do lesado C apresentou queixas ao Centro de Avaliação das Queixas Relativas a Actividades de Prestação de Cuidados de Saúde, abrindo o processo n.º 50/CAQ/2.
O Chefe do supracitado Centro Dr. I responsabilizou-se pelo tratamento das queixas e através de investigação, elaborou relatório de encerramento. O pai do lesado C foi notificado do respectivo relatório através de cartas.
O relatório alegou que existiu a situação de omissão em diagnose por parte dos médicos do Hospital Kiang Wu, mas o Centro de Avaliação das Queixas Relativas a Actividades de Prestação de Cuidados de Saúde tem competência limitada, pelo que não procedeu aos processos de punição às médicas vinculadas.
Encarregados pelo Ministério Público, os Serviços de Saúde designaram médicos e formaram uma comissão de perícia médica para o presente processo. A comissão apresentou relatório de perícia médica.
O supracitado relatório de perícia fez as seguintes análises médicas:
1). De acordo com as condições de doença, durante o internamento no Hospital Kiang Wu, o doente sofreu de cólica periódica e de vómito, não excretou fezes anormais (fezes em forma de geleia e sangue nas fezes), não teve resultados anormais no exame rectal e não teve inchação em forma de chouriço ou outros sintomas de obstrução intestinal ou intussuscepção típica, apresentando comportamentos clínicos duma intussuscepção atípica.
2). Nos autos não consta qualquer registo de tratamento do doente no Hospital Kiang Wu, e de acordo com apenas o registo do estado do doente e o registo de enfermagem, divisa-se que durante o internamento, o doente tomou várias vezes anódino antiespasmódico intestinal e tranquilizante (os nomes dos remédios, as doses e o número de vezes são desconhecidos), mas os efeitos não eram óbvios; quanto à dor abdominal periódica, o uso repetido dos supracitados remédios para doença abdominal aguda sem apurar a causa da doença pode ocultar as condições da doença, pelo que a comissão não está de acordo com os médicos do Hospital Kiang Wu.
3). Nos 2º, 3º e 4º dias do internamento (20 a 22 de Outubro) do doente, revelou-se no registo do estado do doente que as respectivas médicas tinham considerado a necessidade de exclusão de obstrução intestinal cirúrgica ou incompleta, mas não há registo posterior de consulta de cirurgião ou de acompanhamento do estado cirúrgico do doente.
4). Durante o internamento no Hospital Kiang Wu, o doente sentiu dor abdominal periódica, mas só tirou uma radiografia abdominal no dia 20 de Outubro e recebeu um exame de ultrassonografia do tipo B do abdómen no dia 22 de Outubro, e:
 A radiografia abdominal mostra que há muito ar no abdómen superior esquerdo do doente, mas parece-se que a médica não combinou plenamente o resultado da radiografia com o estado do doente, não considerou um exame radiográfico de perseguição do abdómen quando a dor abdominal do doente ocorreu ou fez de imediato um exame de ultrassonografia do tipo B do intestino para excluir a intussuscepção ou obstrução intestinal.
Também o exame de ultrassonografia do tipo B do abdómen realizado ao doente no dia 22 de Outubro não incluiu o intestino, pelo que não ajudou a diagnose de intussuscepção ou obstrução intestinal.
Ao mesmo tempo, o relatório de perícia médica tem a seguinte conclusão:
I. O pessoal médico e de enfermagem do Hospital Kiang Wu observou e examinou o doente com cuidado e elaborou registo de tratamento detalhado, mostrando a sua diligência profissional.
II. Mas as respectivas médicas tiveram insuficiência na diagnose, não conheceram o desenvolvimento prático da doença e não realizaram activamente exames de apoio nem consulta médica.
III. A saúde do doente não sofre de influência ou dano de longo prazo.
Os assuntos do pedido de indemnização civil são parcialmente provados:
De 19 de Outubro de 2002 a 24 de Outubro de 2002, C levou o lesado E ao Hospital Kiang Wu, ao qual pertence a 3ª requerida de indemnização civil, tendo pago MOP$12.096,00.
Em 24 de Outubro de 2002, C levou o lesado E ao St. Teresa’s Hospital, onde o lesado recebeu tratamento e duas operações. O lesado saiu do hospital em 2 de Novembro de 2002, e o pai pagou HKD$508230 (sic.), equivalente a MOP$52.347,60.
Em 26 de Novembro de 2002, o lesado ainda teve de comprar remédios no St. Teresa’s Hospital no valor de HKD$50, equivalente a MOP$51,50.
Em 21 de Fevereiro de 2003, o lesado dirigiu-se ao St. Teresa’s Hospital para ser reexaminado e pagou as chapas médicas e os duplicados no valor de HKD$770, equivalente a MOP$793,10.
No supracitado dia (21 de Fevereiro de 2003), os autores foram a Hong Kong de barco, tendo pago MOP$524.
E no mesmo dia, os autores voltaram para Macau de barco, tendo pago HKD$520, equivalente a MOP$535,60.
Para fornecer provas, precisou-se de tirar fotos das cicatrizes de operação do lesado E e pagou-se MOP$70 para a impressão das fotos.
Os 1º e 2ª requerentes de indemnização civil prestaram requerimentos para ser assistente, a fim de apresentar a denúncia penal, tendo pago o imposto de justiça no valor de MOP$1.100,00.
O lesado E ficou hospitalizado no Hospital Kiang Wu por 6 dias, recebeu várias injecções, mas sentia frequentemente dor abdominal.
O lesado E recebeu duas operações no St. Teresa’s Hospital, e as operações deixaram cicatrizes.
No início, o lesado E preocupou-se muito com as cicatrizes.
Durante o período em que o lesado E foi tratado no Hospital Kiang Wu e foi a Hong Kong a receber tratamento e operações, os 1º e 2ª requerentes de indemnização civil sentiram-se esgotados devido à dor do filho, ao acompanhamento e ao desenvolvimento do tratamento médico.
O St. Teresa’s Hospital, através de exame de ultrassonografia ao intestino, fez a diagnose de que o lesado sofreu de intussuscepção. Por ainda estar na fase inicial de intussuscepção, o lesado foi tratado por forma de clister do ar.
Mais se provou:
De acordo com o CRC, as duas arguidas não têm registo criminal.
A 1ª arguida é médica, aufere mensalmente cerca de MOP$40.000,00 e tem a seu cargo a mãe; tem como habilitações literárias o ensino universitário.
A 2ª arguida é médica, aufere mensalmente MOP$30.000,00 e tem a seu cargo os pais e um filho; tem como habilitações literárias o ensino universitário.
O exame de ultrassonografia realizado ao lesado em 22 de Outubro era exame de abdómen, com o objectivo de verificar se o lesado E sofreu de doenças de vesícula biliar ou de pâncreas.
Em relação ao relatório de perícia médica constante das fls. 168, a comissão de perícia médica fez uma perícia de apoio constante das fls. 419 dos autos:
1. Durante o período entre 18 de Outubro de 2002 e 24 de Outubro de 2002, quando o doente E ficou hospitalizado no Hospital Kiang Wu, os sintomas do doente revelaram que este já sofreu de intussuscepção?
Resposta: Não há provas objectivas de que existiram condições de intussuscepção.
2. Os exames físicos realizados pelo Hospital Kiang Wu ao lesado durante o tratamento são suficientes para excluir a necessidade de consulta cirúrgica?
Resposta: Nos 2º, 3º e 4º dias do internamento (20 a 22 de Outubro) do doente, revelou-se no registo do estado do doente que as respectivas médicas tinham considerado a necessidade da exclusão de obstrução intestinal cirúrgica ou incompleta, mas não há registo posterior de consulta de cirurgião ou de acompanhamento do estado cirúrgico do doente.
Entendemos que era necessária mais uma consulta cirúrgica.
3. Conforme o conhecimento médico, se o doente sofreu de intussuscepção (inclusiva intussuscepção atípica) durante o internamento no Hospital Kiang Wu, os exames feitos pelo hospital eram suficientes para descobrir a condição de intussuscepção do doente?
Resposta: Não.
Suplemento:
Durante o tratamento do doente no referido hospital, parece que os médicos não dominam plenamente as características e técnicas da medicina moderna, não juntaram todas as forças profissionais para organizar uma consulta médica, não usaram meios adequados (objectivo e frequência) de exame para aumentar a oportunidade de diagnose correcta e não ofereceram ao doente o tratamento mais adequado.
Mas por causa do alto nível de exigência técnica da medicina, da incerteza dos efeitos de tratamento, e da natureza atípica e repetida das manifestações clínicas da intussuscepção do doente neste processo, mesmo que não existir insuficiência do tratamento, não é científico nem objectivo obrigar os médicos a fazer a diagnose correcta num prazo indicado.
Em 10 de Maio de 2009, a pedido dos requerentes de indemnização civil e com a autorização do tribunal, os Serviços de Saúde designaram especialistas para formar uma outra comissão e realizar uma outra perícia, tendo o seguinte relatório de perícia:
III. Respostas às perguntas sujeitas à perícia
1. Quais são os meios mais rápidos e simples para curar a intussuscepção?
Resposta: O clister do ar é a primeira escolha e é o meio mais rápido e simples na fase inicial da intussuscepção.
2. Se a situação de intussuscepção for descobrida no início, então não será necessária a operação cirúrgica ao doente?
Resposta: Não. Mas na medicina, a definição da “fase inicial” ou da “fase avançada” de intussuscepção não se refere a tempo em que é feita a diagnose correcta, mas depende de se é possível a restauração do intestino e se existe tendência de necrose intestinal.
3. Descreva as influências directas (a influência menor ou a influência pior) a uma criança de 2 anos quando a intussuscepção não for diagnosticada ou quando a diagnose for atrasada, por favor.
Resposta: A influência menor é a auto-restauração do intestino e a recuperação completa. E a pior possibilidade é a necrose da respectiva parte do intestino, com infecção e distúrbio eletrolítico, e finalmente a morte.
4. Neste caso concreto, a diagnose atrasada de intussuscepção pode pôr em perigo a vida da criança de 2 anos? É preciso realizar operação para a ressecção da parte danificada do intestino por causa da diagnose atrasada de intussuscepção, isso pode afectar as funções fisiológicas da criança, tais como incontinência de urina e de fezes, problemas do sistema digestivo e doenças gastrintestinais?
Resposta: Isto é uma pergunta hipotética, porque
a. “A diagnose atrasada de intussuscepção neste caso concreto” não é conclusão desta comissão de perícia.
b. Neste caso concreto, não há provas de que a criança de 2 anos tinha perigo de vida;
c. Neste caso concreto, não há provas da operação de ressecção de intestino necrosado. A comissão de perícia nota que a operação é apenas “dar três pontos para fixar o íleo do lado remoto no cólon ascendente” (vide o registo de operação constante das fls. P77 dos autos).
Se a pergunta não se limita na discussão sobre o presente processo, mas discute de forma geral as compilações de operação de intussuscepção, normalmente tal operação não resulta na incontinência de urina e de fezes. E a disfunção do sistema digestivo também não é provável, salvo no caso de ressecção duma parte relativamente grande do intestino e de grave aderência intestinal após operação.
5. Uma criança recebeu operação cirúrgica aos 2 anos por causa da diagnose atrasada de intussuscepção, agora tem 8 anos e a cicatriz da operação ainda existe, será tal cicatriz perpétua, óbvia e pode causar dores?
Resposta: Todos os três médicos notaram uma cicatriz clara e bem curada na parede abdominal do lesado E. Esta cicatriz é perpétua do ponto de vista de histologia, mas agora já não é óbvia e vai tornar-se clara ao longo do tempo. A cicatriz não deixa sequela de dor.
6. Esta cicatriz pode provocar compilações por causa de idade avançada e tratamento inadequado?
Resposta: Como é referido na resposta à supracitada pergunta n.º 5, o lesado recuperou bem e não há provas de compilações após a operação.
7. Se a diagnose de intussuscepção for atrasada, causará compilações à criança após a operação?
Resposta: Neste caso não há provas de compilações após a operação.
8. Qual é a possibilidade de existência de compilações?
Resposta: Como é referido na resposta acima referida, neste caso não há provas de compilações após a operação. A possibilidade de compilações após operação de intussuscepção não tem um parâmetro de referência concreto, mas depende da qualidade médica em regiões diferentes e do grau de complicação da condição da doença na altura de operação.
9. As compilações podem afectar a saúde e as funções fisiológicas da criança no futuro?
Resposta: Não há provas de compilações após a operação. Se precisar de discutir esta questão mais profundamente, faça favor de indicar quais as compilações após a operação de intussuscepção. Porque as compilações após operação de intussuscepção podem ser a obstrução intestinal repetida causada pela grave aderência intestinal, a má absorção de nutrientes a longo prazo causada pela ressecção de grande parte do intestino, até a infecção grave após operação ou morte causada pela disfunção múltipla de órgãos.
10. Foi realizada operação desnecessária (tornou-se necessária mais tarde) de ressecção do intestino por causa da diagnose errada e omissão em diagnose, o facto de ressecção do intestino constitui crime de ofensas graves à integridade física previsto pelo art.º 138.º do Código Penal de Macau?
Resposta: Não. Neste caso não existe o facto de ressecção do intestino; mesmo que haja ressecção de pequena parte do intestino, deve-se fazer avaliação de acordo com a gravidade dos danos causados.
11. A dor intensa sofrida pela criança (que tinha 2 anos na altura) pode causar irritabilidade, tensão e outros sintomas a esta? É de longo prazo ou perpétuo?
Resposta: A criança doente pode apresentar comportamentos como disforia, irritabilidade e choro devido ao desconforto físico e à dor, mas tais comportamentos não são de longo prazo ou perpétuos. Quando a situação da doença melhora ou a criança recupera completamente, o estado de disforia e de irritabilidade da criança melhora ou desaparece completamente.
12. A operação após diagnose atrasada de intussuscepção pode afectar o descanso e o sono da criança? Pode causar perturbação e medo? É perpétuo e grave?
Resposta: A realização de operação visa aliviar de forma eficaz as dores. Antes e depois da operação tem-se medicamento adequado para guiar o processo da operação e a enfermagem posterior. A doença pode afectar o descanso e o sono do doente e causa perturbação e medo por um período curto. Mas o dano não é perpétuo.
13. O uso errado e múltiplo de anódino antiespasmódico intestinal e tranquilizante por 6 dias a uma criança de 2 anos pode afectar o desenvolvimento mental, físico e celebral desta no futuro? Pode ter outras sequelas?
Resposta: Não. O uso de remédios dentro do limite da dose é seguro.
Respostas às perguntas constantes das fls. 526 dos autos
1) A segunda intussusção ao ocorrida em 26 de Outubro de 2009, pode ter sido consequente da evolução da doença?
Resposta: É possível porque “após a operação de intussuscepção, a taxa de compilação é de 10% e a taxa de recaída é de 2-5%” (vide “prognóstico” na citação dos dados médicos constante das fls. P170 dos autos). Mas por falta de registo da segunda intussuscepção ocorrida em 26 de Outubro de 2009, não se pode fazer mais avaliação.
2) Os sintomas da gastro-enterite são semelhantes aos da intussuscepção?
Resposta: Sim, são semelhantes.
3) A intussuscepção pode surgir na sequência de uma gastro-enterite?
Resposta: Sim. A gastro-enterite é uma das causas normais da intussuscepção de crianças.
Factos não provados:
Assuntos penais não provados: Deram-se como não provados os factos não correspondentes aos factos provados constantes da acusação, nomeadamente:
Em 20 de Outubro de 2002, a dor abdominal do lesado durou cerca de 40 minutos por cada vez, parou por 5 minutos e continuou. Esta situação repetiu-se por todo o dia;
Em 21 de Outubro de 2002, o lesado continuou a sentir dores periódicas, cada vez a dor durou cerca de 40 minutos, parou por um momento e recomeçou;
O pai do lesado C exigiu que efectuasse exame de radiografia ao seu filho;
As duas arguidas previram que o lesado podia sofrer de intussuscepção, mas ainda estiveram profundamente convencidas de que essa situação não iria acontecer, e não fizeram tratamento adequado, causando o lesado a sentir dor intensa no abdómen e sofrer danos físicos e mentais, pelo que as duas arguidas tinham negligência consciente.
As duas arguidas sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Assuntos cíveis não provados: Deram-se como não provados os factos não correspondentes aos factos provados constantes da petição de indemnização civil e da contestação, nomeadamente:
As 1ª e 2ª requeridas não acompanharam e trataram de forma adequada o lesado segundo a prática médica;
As 1ª e 2ª requeridas têm experiências profissionais suficientes para saber que o uso múltiplo de anódino antiespasmódico intestinal e tranquilizante para doença abdominal aguda sem apurar a causa da doença pode ocultar as condições da doença.
Sendo especialistas profissionais, é impossível que as 1ª e 2ª requeridas não saibam este senso comum médico e processo de tratamento.
Juízo dos factos:
A 1ª arguida prestou declarações na audiência de julgamento, negando a prática dos factos acusados.
A 2ª arguida prestou declarações na audiência de julgamento, negando a prática dos factos acusados.
O registo do caso de doença do lesado E anota as condições da doença e o processo de tratamento, nomeadamente:
- fls. 135 a 164 e fls. 527 a 547: cópia do prontuário médico do E no Hospital Kiang Wu;
- fls. 234 a 243 dos autos: conselho médico do Hospital Kiang Wu para o menor E;
- fls. 14, 15, 17 e 639 a 640: relatório médico do St. Teresa’s Hospital para E, e fls. 43 a 93: registo médico do E no St. Teresa’s Hospital.
Relatórios de investigação e perícias da responsabilidade pelos erros médicos:
- fls. 18 a 20: relatório de investigação elaborado pelo Centro de Avaliação das Queixas Relativas a Actividades de Prestação de Cuidados de Saúde;
- fls. 167 a 171 dos autos: relatório de perícia elaborado pela comissão de perícia médica formada especialmente para o presente processo (os teores importantes já constam dos factos provados acima referidos);
- fls. 419 a 420: perícia de apoio feita pela supracitada comissão de perícia médica (os teores importantes já constam dos factos provados acima referidos);
- fls. 603 a 608: parecer pericial da segunda perícia médica (os teores importantes já constam dos factos provados acima referidos).
As testemunhas dos requerentes de indemnização civil prestaram declarações na audiência de julgamento, contando objectivamente a angústia e a preocupação do lesado E e dos seus pais trazidas pelo processo de tratamento.
O juízo dos factos foi feito com base nas declarações prestadas pelas duas arguidas, pelos peritos e pelas testemunhas na audiência de julgamento, junto com as provas documentais examinadas na audiência de julgamento e outras provas.”; (cfr., fls. 823 a 843).

Do direito

3. Dois são os recursos trazidos à apreciação deste T.S.I..

O primeiro, interposto pelos assistentes e demandantes, que entendem padecer a decisão que absolveu as arguidas dos vícios de “erro notório na apreciação da prova” e “contradição insanável na fundamentação”, considerando também que com o segmento decisório que apreciou o pedido civil que deduziram se terá violado as normas contidas nos art.°s 477°, n.° 1 e art. 480° do C.C.M., pugnando assim pela condenação das arguidas pela prática do imputado crime de “ofensa à integridade física por negligência” assim como pela total procedência do referido pedido civil.

Por sua vez, no seu recurso, (e para além de entenderem que se deve manter a decisão absolutória), entendem as demandadas civis que se deve revogar a “decisão civil”, absolvendo-se as mesmas da condenação no pagamento de MOP$85.000.00, pois que consideram inexistir base factual e legal para tal decisão.

Vejamos então de que lado está a razão.

–– Comecemos pelo segmento decisório que apreciou a “acção crime”.

Aqui, assim ponderou o Colectivo do T.J.B.
“In casu, acordo com os factos provados, o pessoal médico e de enfermagem do Hospital Kiang Wu observou e examinou o doente com cuidado e elaborou registo de tratamento detalhado, mostrando a sua diligência profissional. Mas as respectivas médicas tiveram insuficiência na diagnose, não conheceram o desenvolvimento prático da doença e não realizaram activamente exames de apoio nem consulta médica.
Daí se pode ver que as duas arguidas não violaram os processos e as
regras profissionais do tratamento médico. Além disso, as duas arguidas divisaram que o lesado podia sofrer de intussuscepção e realizaram exames de rotina, fazendo a diagnose de exclusão desta doença. Do ponto de vista médico, também não é científico nem objectivo exigir que os meios diagnósticos utilizados pelo pessoal médico sejam completamente adequados, e que a diagnose feita num certo prazo seja completamente correcta. É verdade que as duas arguidas tiveram insuficiência nas suas diagnoses, mas tal insuficiência não constitui' o requisito de negligência subjectiva exigido pela responsabilidade penal.
Face a isto, segundo o princípio de in dúbio pro reo, o Tribunal Colectivo decide absolver as duas arguidas do crime de ofensas à integridade física por negligência”.

Será de confirmar o assim decidido?

Cremos que de sentido negativo deve ser a resposta.

Vejamos.

Como repetidamente temos afirmado, o vício de “contradição insanável da fundamentação” apenas ocorre quando “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão; (cfr., v.g. o Acórdão deste T.S.I. de 27.01.2011, Proc. n° 634/2010).

Na situação dos autos, atenta a factualidade provada e não provada e sem prejuízo do muito respeito por opinião diversa, cremos que incorreu o Colectivo a quo no dito vício de contradição insanável.

De facto, deu o mesmo Colectivo como “provado” que:

“Durante o internamento do lesado, 1ª e 2ª arguidas tinham considerado que o lesado sofreu de outras doenças, tais como obstrução intestinal, intussuscepção e pancreatite”; (cfr., pág. 32, último parágrafo).

E, simultaneamente, como “não provado” que:

“As duas arguidas previram que o lesado podia sofrer de intussuscepção”; (cfr., pág. 49, último parágrafo).

E perante isto, cremos que patente é a “contradição” entre tal matéria “provada” e “não provada”.

Não se nega que provado também está que:

- que os sintomas da “gastro-enterite”, doença diagnosticada ao menor, (ofendido dos autos), são semelhantes aos da “intussuscepção”;
- que a “gastro-enterite” é uma das causas normais da “intussuscepção das crianças”;
- que durante o período de 18.10.2002 a 24.10.2002, no período em que o menor E foi assistido e esteve hospitalizado no Kiang Wu, não foram apuradas provas objectivas de que existiam condições de “intussuscepção”, e,
- que aquando do diagnóstico efectuado ao menor no Hospital Santa Teresa de Hong-Kong, necessariamente, após as 10:00 da noite do dia 24.10.2002, se apurou que o mesmo menor estava na “fase inicial de intussuscepção”.

Porém, o certo é que se se deu como “provado” que as “arguidas consideraram que o ofendido sofria de…intussuscepção”, não se podia dar como “não provado” que as mesmas “arguidas previram que o mesmo ofendido podia sofrer de intussuscepção”.

E, como é bom de ver, para a matéria em questão, irrelevante é a “semelhança de sintomas”, ou que a “gastro-enterite” é uma das causas normais da “intussuscepção das crianças”, ou que não foram apuradas provas objectivas de que existiam condições de “intussuscepção”, pois que se não foram feitos os testes e exames adequados, evidente é que não haviam tais “provas”.

Por sua vez, é também igualmente irrelevante que no Hospital de Hong-Kong se tenha (tão só) apurado que o menor estava na “fase inicial de intussuscepção”.

É que, como da matéria de facto provada também consta, em medicina, a definição da “fase inicial” ou da “fase avançada” de intussuscepção não se refere a tempo em que é feita a diagnose correcta, mas depende de se é possível a restauração do intestino e se existe tendência de necrose intestinal; (cfr., pág. 43, terceiro parágrafo).

Nesta conformidade, sendo a contradição evidente, e sendo esta insanável, outra solução não se vislumbra que não seja a consagrada no art. 418° do C.P.P.M., ou seja, o reenvio do processo para novo julgamento (da matéria em questão), o que não deixa de prejudicar a apreciação das questões pelas demandadas recorrentes colocadas no seu recurso.

Dest’arte, e outra questão não havendo a apreciar, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos que se deixou exposto, acordam julgar procedente o recurso dos demandantes, determinando-se o reenvio dos autos para novo julgamento nos termos do art. 418° do C.P.P.M., prejudicadas ficando a apreciação das questões pelas demandadas colocadas no seu recurso.

Custas pelas demandadas, (pois que não deixaram de pugnar pela improcedência do recurso dos demandantes), fixando-se a taxa de justiça individual de 8UCs.

Macau, aos 14 de Abril de 2011

José Maria Dias Azedo (Relator)
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa

T Processo redistribuído ao ora relator em 10.01.2011.
. Processo redistribuído ao ora relator em 10.01.2011.
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Proc. 998/2010 Pág. 60

Proc. 998/2010 Pág. 1