Processo nº 837/2010
Data do Acórdão: 16JUN2011
Assuntos:
Contrato a favor de terceiro
SUMÁRIO
Tendo sido celebrado um contrato de prestação de serviços entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda., em que se estipula, entre outros, o mínimo das condições remuneratórias a favor dos trabalhadores que venham a ser recrutados por essa sociedade e afectados ao serviço da Ré, estamos em face de um contrato a favor de terceiro, pois se trata de um contrato em que a Ré (empregadora do Autor e promitente da prestação) garante perante a sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda.(promissória) o mínimo das condições remuneratórios a favor dos trabalhadores estranhos ao contrato (beneficiários).
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 837/2010
I
Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM
No âmbito dos autos da acção de processo do trabalho nº CV2-09-0034-LAC, do 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, proposta por A, devidamente id. nos autos, foi na fase de saneamento proferido o seguinte saneador-sentença:
I - RELATÓRIO
O autor pediu a condenação da ré a pagar-lhe a quantia global de MOP.246,531,00, acrescida de juros à taxa legal, contados desde data que não refere até integral pagamento.
Como fundamentos do seu pedido, em síntese, o autor alegou que:
- É trabalhador não residente em Macau.
- Desde 1993 que a ré tem sido sucessivamente autorizada pela autoridade competente da RAEM a contratar trabalhadores não residentes em Macau para aqui trabalharem.
- Desde 1992 que a ré, no âmbito do processo conducente à autorização governamental para recrutamento no estrangeiro de trabalhadores para virem trabalhar em Macau, celebrou com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Limitada vários contratos de teor idêntico.
- A apresentação de tais contratos foi condição prévia para a ré ser autorizada pela autoridade competente a contratar trabalhadores não residentes e foi ao abrigo de um deles que o autor foi contratado pela ré.
- Nos referidos contratos a ré acordou com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Limitada, entre outras coisas, que os trabalhadores aufeririam salário idêntico ao nível médio dos salários praticados para desempenho equivalente, num mínimo de $90,00 patacas diárias, acrescida de $15,00 patacas diárias por pessoa, a título de subsídio de alimentação; que o salário seria pago pela ré directamente a cada trabalhador; que cada trabalhador teria direito a um subsídio mensal de efectividade igual ao salário de 4 dias, sempre que no mês anterior não tenha dado qualquer falta ao serviço e que o horário de trabalho seria de 8 horas diárias, sendo a prestação de trabalho extraordinário remunerada de harmonia com o disposto na legislação do trabalho em vigor em Macau para os operários residentes.
- A ré celebrou um contrato de trabalho com o autor onde foi acordado salário inferior a 90,00 patacas diárias e onde não foi estipulado o subsídio de alimentação nem o de efectividade.
- No âmbito de tal contrato, o autor esteve ao serviço da ré, como guarda de segurança, desde 06/01/1996 até 31 de Maio de 2008 (art. 9º da p.i.).
- E recebeu da ré nos meses de Janeiro de 1996 a Junho de 1997, inclusive, o salário mensal de MOP. 1 700,00 (art. 46º da p.i.).
- E nos meses de Julho de 1997 a Março de 1998 recebeu o salário mensal de MOP. 1 800,00 (art. 49º da p.i.).
- E nos meses de Abril de 1998 a Fevereiro de 2005 recebeu o salário mensal de MOP. 2 000,00 (art. 52º da p.i.).
- E nos meses de Março de 2005 a Fevereiro de 2006 recebeu o salário mensal de MOP. 2 100,00 (art. 55º da p.i.).
- E nos meses de Março de 2006 a Dezembro de 2006 recebeu o salário mensal de MOP. 2 288,00 (art. 58º da p.i.).
- Entre 6 de Janeiro de 1996 e 30 de Junho de 1997 o autor trabalhou 12 horas por dia, tendo a ré remunerado as 4 horas diárias de trabalho extraordinário a MOP 8,00 por cada hora (arts. 62º e 63º da p.i.).
- Entre 1 de Julho de 1997 e 30 de Junho de 1999 o autor trabalhou 12 horas por dia, tendo a ré remunerado as 4 horas diárias de trabalho extraordinário a MOP 9,30 por cada hora (arts. 67º e 68º da p.i.).
- Entre Agosto e Dezembro de 2002 o autor prestou 517 horas de trabalho extraordinário que a ré lhe retribuiu a MOP 10,00 por cada hora (arts. 72º e 73º da p. i.).
- Entre Janeiro de 2003 e Fevereiro de 2005 o autor prestou 5355 horas de trabalho extraordinário que a ré lhe retribuiu a MOP 11,00 por cada hora (arts. 77º e 78º da p. i.).
- Entre Março de 2005 e Fevereiro de 2006 o autor prestou 1725 horas de trabalho extraordinário que a ré lhe retribuiu a MOP 11,30 por cada hora (arts. 82º e 83º da p. i.).
- Entre Março de 2006 e Dezembro de 2006 o autor prestou 1824 horas de trabalho extraordinário que a ré lhe retribuiu a MOP 11,50 por cada hora (arts. 86º e 87º da p. i.).
- Durante os 4530 dias que trabalhou para a ré, nunca esta lhe pagou qualquer quantia a título de subsídio de alimentação (art. 93º da p.i.).
- O autor nunca deu qualquer falta ao serviço sem conhecimento e autorização prévia da ré, durante a relação laboral, não lhe tendo a ré pago qualquer quantia a título de subsídio de efectividade.
Em contestação, a ré, na parte que aqui releva, bateu-se pela improcedência da acção e, em suma:
Reconheceu que o autor foi seu trabalhador no período que referiu na petição inicial e que como trabalhador não residente foi contratado nas condições que alegou;
Reconheceu que celebrou com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Limitada, o contrato que o autor alegou na petição inicial e reconheceu que apresentou tal contrato na Direcção dos Serviços de Trabalho e Emprego;
Reconheceu que pagou os salários e os montantes a título de trabalho extraordinário que o autor alegou;
Quanto ao número de horas de trabalho extraordinário que o autor diz ter prestado, a ré no art. 33º da sua contestação diz que, juntamente com outras partes da petição inicial, “constituem meras considerações pessoais, interpretações de factos ou de direito, ou conclusões manifestamente infundadas, que ... impugna para os devidos efeitos legais, designadamente para efeitos do disposto no nº 3 do art. 410º do CPM ...”.
O autor respondeu relativamente à intervenção de terceiros e à preterição do tribunal arbitral, questões que já não relevam agora.
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II – QUESTÕES A DECIDIR
Em face das posições das partes atrás relatadas são as seguintes as questões a decidir:
a) - Efeitos jurídicos do acordo celebrado entre a ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Limitada na relação jurídica existente entre o autor e a ré.
a) 1. - Caso se conclua que o referido acordo tem efeitos na relação do autor com a ré, haverá que apurar qual a concreta eficácia ao nível do montante do salário, do montante do pagamento do trabalho extraordinário e do direito aos subsídios de alimentação e efectividade.
a) 2. - Caso se conclua que o referido acordo não tem efeitos na relação autor/ré, ou não os tem relativamente a alguns dos aspectos que o autor pretende (salário, subsídios e trabalho extraordinário), haverá que apurar se a lei, e já não o contrato, confere ao autor o que este peticiona.
b) - Da indemnização moratória.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
i) – Motivação de facto
Por não terem sido impugnados pela parte contra quem foram alegados, estão assentes os factos com relevo para a decisão que a seguir se referem. Com efeito, nos termos do disposto nos arts. 410º e 424º do Código de Processo Civil, aplicáveis por força do art. 1º do Código de Processo do Trabalho, as partes têm de tomar posição definida sobre os factos articulados pela parte contrária. Posição definida é posição clara e firme. Além disso, se uma parte afirmar que desconhece se é verdadeiro ou falso um facto pessoal seu que outra parte alega, isso equivale a confissão do referido facto, o qual deve ser tomado como provado se for admissível a confissão. Assim, os factos em relação aos quais a parte contrária não tomou posição clara e firme ficam provados por não terem sido eficazmente impugnados, excepto se: 1- estiverem em oposição com a posição que, considerada em conjunto, a parte tomou; 2 – forem insusceptíveis de confissão; só puderem ser provados por documento. E os factos pessoais que a parte diz desconhecer ficam provados por confissão se em relação a eles for admissível tal meio de prova.
Ora, a ré reconheceu que o autor foi seu trabalhador no período que referiu na petição inicial e que como trabalhador não residente foi contratado nas condições que alegou; que celebrou com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Limitada, o contrato que o autor alegou na petição inicial; que apresentou tal contrato na Direcção dos Serviços de Trabalho e Emprego; que pagou os salários e os montantes a título de trabalho extraordinário que o autor alegou. Por outro lado, quanto ao número de horas de trabalho extraordinário que o autor diz ter prestado, a ré, no art. 28º da sua contestação diz que, juntamente com outras partes da petição inicial, “constituem meras considerações pessoais, interpretações de factos ou de direito, ou conclusões manifestamente infundadas, que ... impugna para os devidos efeitos legais, designadamente para efeitos do disposto no nº 3 do art. 410º do CPM ...”, pelo que não poderão tomar-se por eficazmente impugnados os factos em causa, por falta de posição definida e por se tratar de facto pessoal da ré ou de que deva ter conhecimento (ter tido o autor ao seu serviço fora do horário normal de serviço).
São pois os seguintes os factos provados com relevo para a decisão:
a) O autor é trabalhador não residente.
b) A ré, com vista à contratação do autor como seu trabalhador, acordou com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Limitada o seguinte:
“Considerando que o Governo de Macau, por Despacho do SAEF. autorizou a Guardforce (Macau) Limitada (adiante designada por 1.ª outorgante) a admitir novos trabalhadores vindos do exterior;
Nos termos do Despacho acima mencionado e do Despacho no. 12/GM/88, a 1.ª outorgante e Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Ltd. (adiante designada por 2.ª outorgante), celebram o presente contrato que integra as seguintes cláusulas e termos que ambas as partes se obrigam reciprocamente a cumprir pontual e integralmente:
1. Recrutamento e cedência de trabalhadores.
A pedido da 1.ª outorgante, a 2.ª contratou a prestação de mão-de-obra oriunda da ... num total de ... trabalhadores, com idade compreendida entre os 18 e os 60 anos, boa saúde e bom comportamento, os quais são por este contrato cedidos à 1.ª outorgante, por um período de 1 ano ... .
2. Despesas relativas à admissão.
A 2.ª outorgante responsabiliza-se pelas despesas de selecção e inspecção médica dos trabalhadores a contratar, assim como pelas formalidades relativas à sua saída dos países acima referidos por seu turno a 1.ª outorgante fica responsável pelas despesas relativas á obtenção dos correspondentes títulos de identificação de trabalhadores não-residentes, bem como pelas despesas com a vinda daqueles para Macau.
3. Remuneração dos trabalhadores.
3.1. Os trabalhadores a que se refere o presente contrato auferirão salário idêntico ao nível médio dos salários praticados para desempenho equivalente, num mínimo de $90,00 patacas diárias, acrescida de $15,00 patacas diárias por pessoa, a título de subsídio de alimentação.
3.2. O salário será pago pela 1.ª outorgante directamente a cada trabalhador.
3.3. ... .
3.4. Além das retribuições já mencionadas, cada trabalhador terá direito a um subsídio mensal de efectividade igual ao salário de 4 dias, sempre que no mês anterior não tenha dado qualquer falta ao serviço.
4. Horário de trabalho e alojamento.
4.1. O horário de trabalho é de 8 horas diárias, a prestar durante o período fixado pela 1.ª outorgante, sendo a prestação de trabalho extraordinário remunerado de harmonia com o disposto na legislação do trabalho em vigor em Macau para os operários residentes.
4.2. Os trabalhadores terão direito a faltar durante dez dias por ano para poderem visitar os seus familiares nos países acima referidos.
4.3. Se a 1.ª outorgante interromper a laboração por um período superior a 5 dias, por falta de encomendas ou de energia, será obrigada a pagar ao trabalhador a partir do 6º dia, a remuneração base diária de $90,00 pelo período que durar aquela interrupção.
4.4. ... .
4.5. ... .
5. Assistência.
5.1. ... .
5.2. ... .
5.3. ... .
6. Deveres dos trabalhadores.
Os trabalhadores objecto do presente contrato estão sujeitos aos seguintes deveres:
a) ... .
7. Serão causas de cessação do trabalho e imediato repatriamento:
a) ... .
8. Outras obrigações da 1.ª outorgante.
... .
9. Provisoriedade.
9.1. A 1.ª outorgante declara que a autorização de permanência ao seu serviço dos trabalhadores objecto do presente contrato foi concedida a título precário, podendo ser cancelada a qualquer tempo pelo Governo de Macau, caso em que devolverá à 2.ª outorgante, no prazo que lhe for indicado, o número de trabalhadores para o qual deixe de ter autorização bastante ou aquele cuja permanência no Território seja pela via competente declarada como indesejável.
9.2. ... .
10. Repatriamento.
10.1.Verificando-se que, por qualquer motivo, alheio ao 1.ª outorgante, não é possível a continuação da prestação do serviço por parte dos trabalhadores, a 2.ª outorgante responsabiliza-se pelo repatriamento dos mesmos para os países acima referidos suportando a 1.ª outorgante as despesas relacionadas com a deslocação e, bem assim, o pagamento do subsídio de compensação cujo montante será reciprocamente acordado entre ambos os outorgantes.
10.2.O repatriamento a que se refere o presente contrato será da responsabilidade da 2.ª outorgante que se compromete a efectivá-lo imediatamente.
11. Prazo do Contrato
11.1. Sem prejuízo do disposto no precedente no n.º 9.1., o presente contrato terá duração de 1 ano renováveis por igual período, mediante acordo das partes interessadas e precedendo acordo do Governo do Território, a obter até 30 dias antes do seu termo.
11.2. Não se verificando a sua renovação, o presente contrato caduca no seu termo ficando a 2.ª outorgante responsável pelo repatriamento para os países acima referidos dos trabalhadores, e sendo as despesas com essa deslocação suportadas pela 1.ª outorgante.
11.3. Este contrato vigorará desde a data da sua aprovação e até à data em que se extinguir a primeira validade do título de identificação de trabalhador não-residente, emitido pelas Forças de Segurança de Macau (Corpo de Polícia de Segurança Pública de Macau).
12. Disposições Finais.
12.1. Quaisquer litígios ou questões emergentes da sua execução, serão decididos por uma comissão arbitral, composta por 3 membros, sendo dois escolhidos por cada um das partes e o 3.º designado pelos árbitros de parte, a qual decidirá de acordo com a equidade.
12.2. ... .
c) Por assim terem acordado, entre 6 de Janeiro de 1996 e 31 de Maio de 2008, o autor esteve ao serviço da ré, exercendo funções de guarda de segurança.
d) Trabalhando sob as ordens, direcção e fiscalização da ré.
e) Nos termos e condições entre ambas acordados e que constam dos documentos juntos com a petição inicial sob os nºs 5 a 11, os quais se dão aqui por reproduzidos (facto provado por acordo e nos termos do disposto nos arts. 368º e 370º do Código Civil).
f) Entre Janeiro de 1996 e Junho de 1997, como contrapartida da actividade prestada, a ré pagou ao Autor, a título de salário, a quantia de MOP. 1 700,00.
g) Entre Julho de 1997 e Março de 1998, como contrapartida da actividade prestada, a ré pagou ao autor, a título de salário, a quantia mensal de MOP.1 800,00.
h) E nos meses de Abril de 1998 a Fevereiro de 2005 a ré pagou ao autor o salário mensal de MOP. 2 000,00.
i) E nos meses de Março de 2005 a Fevereiro de 2006 a ré pagou ao autor o salário mensal de MOP. 2 100,00.
j) E nos meses de Março de 2006 a Dezembro de 2006, a ré pagou ao autor o salário mensal de MOP. 2 288,00.
k) - Entre 6 de Janeiro de 1996 e 30 de Junho de 1997 o autor trabalhou 12 horas por dia, tendo a ré remunerado as 4 horas diárias de trabalho extraordinário a MOP 8,00 por cada hora.
l) - Entre 1 de Julho de 1997 e 30 de Junho de 1999 o autor trabalhou 12 horas por dia, tendo a ré remunerado as 4 horas diárias de trabalho extraordinário a MOP 9,30 por cada hora.
m) - Entre Agosto e Dezembro de 2002 o autor prestou 517 horas de trabalho extraordinário que a ré lhe retribuiu a MOP 10,00 por cada hora
n) - Entre Janeiro de 2003 e Fevereiro de 2005 o autor prestou 5355 horas de trabalho extraordinário que a ré lhe retribuiu a MOP 11,00 por cada hora.
o) - Entre Março de 2005 e Fevereiro de 2006 o autor prestou 1725 horas de trabalho extraordinário que a ré lhe retribuiu a MOP 11,30 por cada hora.
p) - Entre Março de 2006 e Dezembro de 2006 o autor prestou 1824 horas de trabalho extraordinário que a ré lhe retribuiu a MOP 11,50 por cada hora.
q) - Durante os 4530 dias que trabalhou para a ré, nunca esta lhe pagou qualquer quantia a título de subsídio de alimentação.
r) - O autor nunca deu qualquer falta ao serviço durante a relação laboral, sem conhecimento e autorização prévia da ré, não lhe tendo a ré pago qualquer quantia a título de subsídio de efectividade.
ii) - Motivação de direito
a) Dos efeitos jurídicos do acordo celebrado entre a ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Limitada na relação jurídica existente entre o autor e a ré.
a) 1. – Efeitos quanto ao salário e aos subsídios de alimentação e efectividade.
Para apurar tais efeitos é necessário encontrar o regime jurídico daquele acordo. Para encontrar tal regime jurídico é necessário qualificar o mencionado acordo de vontades celebrado entre a ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Limitada. Quanto a esta qualificação jurídica nada mais se adianta do que já se disse no despacho de fls. 115 a 120, concluindo-se, pois, que, na parte que respeita ao autor se trata de um contrato a favor de terceiro, na medida em que lhe garante um salário mínimo, um subsídio de alimentação, um subsídio de efectividade1, ainda que se entenda que a promessa fica sujeita à condição tácita de ser contratado e trabalhar. Qualificado o contrato, encontramos no seu regime jurídico a respectiva eficácia jurídica que se repercute na relação jurídica laboral2 existente entre autor e ré. Com efeito, como também já se disse no despacho de fls. 115 a 120, o art. 438º, nº 1 do Código Civil é claro no sentido de que o beneficiário da promessa adquire o direito a ela independentemente de aceitação. Assim, o autor tem direito ao salário igual ou superior a MOP90,00 por dia e aos subsídios de efectividade e alimentação que reclama.
No que respeita ao subsídio de efectividade, o que acaba de se concluir é independente de se reconhecer que o autor não alegou com clareza que fez verificar a condição de que dependia a atribuição de tal subsídio, isto é que não deu qualquer falta ao serviço (cláusula 3.4 do contrato – al. b) dos factos provados). Com efeito, além de se poder considerar que a não verificação da condição seria matéria de excepção a alegar pela ré, não tendo sido alegada, sempre haverá que entender o modo como se alegou no art. 96º da petição inicial como afirmação que o autor nunca deu qualquer falta ao trabalho, o que é diferente de ter sido dispensado pela ré com perda de retribuição.
No que diz respeito às diferenças salariais há que considerar os factos provados nas als. c), d) e e) antecedentes para concluir que no(s) contrato(s) individual(is) de trabalho (documentos nº 5 a 11 juntos com a petição inicial) foi acordado um salário mensal considerando períodos de 30 dias.
Assim, o autor tem direito:
- Ao subsídio de alimentação de MOP.15,00 por cada um dos 4530 dias que trabalhou para a ré (al. q) dos factos provados), o que totaliza MOP.67 950,00:
- Ao subsídio de efectividade de MOP.360,00 (90,00x4 – al. b), ponto 3.4 dos factos provados) por cada um dos 148 meses em que trabalhou para a ré (de 6 de Janeiro de 1996 a 31 de Maio de 2008 – al. c) dos factos provados), o que totaliza MOP.53 280,00.
- Às diferenças salariais de MOP.33,3 (arredondado às décimas) por dia nos meses de Janeiro de 1996 a Junho de 1997; de MOP.30,00 por dia nos meses de Julho de 1997 a Março de 1998; de MOP.23,3 (arredondado às décimas) por dia nos meses de Abril de 1998 a Fevereiro de 2005; de MOP.20,00 por dia nos meses de Março de 2005 a Fevereiro de 2006; de MOP.13,70 (arredondado às décimas) por dia nos meses de Março de 2006 a Dezembro de 2006, no total de MOP.95 409,003.
a) 2. – Efeitos do contrato a favor de terceiro relativamente ao trabalho extraordinário.
Quanto ao pagamento do trabalho extraordinário.
O contrato a “favor de terceiro” diz que será remunerado de acordo com o disposto na legislação do trabalho em vigor em Macau para os operários residentes. E a referida lei dispõe que “nos casos de prestação de trabalho extraordinário, o trabalhador terá direito a um acréscimo de salário, do montante que for acordado entre o empregador e o trabalhador”4. Ora, o autor não alegou que não tivesse sido pago de acordo com o acordado, nem que acordou com a sua vontade viciada por erro e que se não estivesse em erro seria outra a sua vontade negocial, pelo que há que concluir que não procede a sua pretensão quanto ao pagamento do trabalho extraordinário, por inexistir fonte geradora da obrigação que o autor atribui à ré.
b) - Da indemnização moratória.
O autor pediu a condenação da ré no pagamento de juros de mora à taxa legal até efectivo e integral pagamento. Porém não disse a partir de quando devem contar-se os referidos juros. A ré também nada disse sobre a questão.
A mora no cumprimento das obrigações puras ocorre no momento da citação, salvo se o crédito já for líquido desde data anterior ou se a falta de liquidez se deve ao lesante (art. 794º, nº 4, do CC). A mora nas obrigações com prazo certo de vencimento ocorre no fim do prazo respectivo (art. 794º, nº 1, al. a) do Código Civil), salvo se o crédito for ilíquido, caso em que a mora ocorre com a liquidação, a não ser que a falta de liquidez seja imputável ao devedor, caso em que a mora ocorre com a interpelação nas obrigações puras e com a superveniência do prazo de vencimento nas demais.
No caso presente a obrigação da ré é ilíquida, não sendo imputável à ré devedora a falta de liquidez. Assim, a mora da ré ocorre quando a sua obrigação se tornar líquida. E qual é esse momento? A data da notificação da presente sentença à ré, caso da mesma não seja interposto recurso ou caso apenas pela ré seja interposto e venha a ser julgado improcedente ou não a venha a condenar a pagar quantia inferior. Com efeito, em todas as hipóteses referidas a dívida da ré que nesta sentença se fixa ou é líquida ou a sua iliquidez é da responsabilidade da ré, pelo que, nos termos do disposto no art. 794º, nº 4 do Código Civil ocorre mora da ré com a notificação referida. Nos demais casos, a mora ocorrerá quando a obrigação da ré se tornar líquida por decisão futura e nos termos em que esta venha a decidir.
Terá pois a ré de ser condenada na indemnização moratória (art. 787º e 793º CC), que no caso das obrigações pecuniárias, como é a dos autos (art. 543º e segs. CC), corresponde aos juros legais, salvo se o lesado demonstrar que a mora lhe causou prejuízos superiores aos juros referidos (art. 795º CC). A taxa de juro aplicável à mora é aquela que vigorar como taxa de juros legais durante o período em que decorre a situação moratória. Assim, se houver alteração da taxa é a nova aplicável sucessivamente.
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Em resumo, o autor tem direito a:
- MOP.95 409,00 de diferenças salariais;
– MOP.67 950,00 de subsídio de alimentação;
– MOP.53 280,00 de subsídio de efectividade;
- Juros de mora à taxa legal.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência, decide-se condenar a ré a pagar ao autor a quantia de MOP.216 639,00 (duzentos e dezasseis mil, seiscentas e trinta e nove Patacas), acrescida de juros de mora contados à taxa legal, sobre aquela quantia, desde a data supra referida até integral pagamento.
Custas por autor e ré na proporção do respectivo decaimento.
Registe e notifique.
Não se conformando com esse saneador-sentença, veio a ré GUARDFORCE (MACAU) – Serviços e Sistemas de Segurança Limitada, recorrer dela concluindo e pedindo que:
I. Vem o presente Recurso interposto do “Despacho Saneador Sentença” proferido pelo douto Tribunal a quo, que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, decidiu “condenar a ré a pagar ao autor a quantia de MOP$216 639.00 (duzentas e dezasseis mil seiscentas e trinta e nove patacas), acrescida de juros de mora contados à taxa legal, sobre aquela quantia, desde a data supra referida até integral pagamento.”
II. O Recurso ora interposto versa sobre matéria de facto e de direito.
III. Os factos alegados pelo Autor nos artigos 49.º, 52.º, 55.º e 58º da sua petição inicial e aceites pela Recorrente no artigo 30.º da sua contestação e, por conseguinte, confessados, não têm correspondência com os factos constantes das alíneas g) a j) da motivação de facto.
IV. O Autor naqueles artigos da petição inicial não afirma que o salário que auferia era um salário mensal, mas sim que auferia “a título de salário, a quantia de MOP…, mensal”
V. É diverso falar-se em salário mensal e em pagamento de um salário num determinado valor mensal que pode ser fixado ou de acordo com o resultado efectivamente produzido ou com o período de trabalho efectivamente prestado.
VI. Tendo em conta que o douto tribunal a quo deu como provados os factos constantes das alíneas g) a j) em virtude de os mesmos terem sido aceites pelas partes, os mesmos deverão ter a exacta redacção dada pelo Autor nos artigos 49º, 52º, 55º e 58º da petição inicial e aceites pela Ré no artigo 30º da sua contestação.
VII. Face ao supra exposto resulta que os factos constantes das alíneas g) a j) da matéria provada foram incorrectamente julgados.
VIII. O douto Tribunal a quo, remetendo para a fundamentação constante do despacho proferido a fls. 115 a 120 dos autos, qualificou o contrato de prestação de serviços celebrado entre a Recorrente e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau como um contrato a favor de terceiros, e com base nesta qualificação, condenou a Ré, ora Recorrente, a pagar ao Autor a quantia global de MOP$216 639.00
IX. No contrato a favor de terceiros o benefício do terceiro nasce directamente do contrato e não de qualquer acto posterior, ao que acresce que a obrigação do promitente é a de efectuar uma prestação e não celebrar outro contrato.
X. O que resulta do contrato celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau é que esta se comprometia a recrutar determinado número de pessoas para virem a ser contratadas pela Ré para lhe prestarem determinada actividade manual ou intelectual mediante o pagamento de determinada retribuição e outras condições.
XI. Para que o contrato celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau pudesse ser qualificado como um verdadeiro contrato a favor de terceiro, sempre seria necessário que resultasse dos autos a intenção dos contratantes de atribuir directamente ao Autor (terceiro beneficiário) um crédito ou uma vantagem patrimonial, de tal modo que este adquirisse o direito à prestação prometida de forma autónoma, por via directa e imediata do contrato, podendo, por isso, exigi-la do promitente.
XII. O contrato de prestação de serviços celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Limitada, não produz quaisquer efeitos na esfera jurídica do Autor, que do mesmo não é parte, e por não o conhecer nunca lhe criou qualquer expectativa de vir a ser beneficiário do mesmo.
XIII. Veja-se entendimento do douto Tribunal de Segunda Instância proferido no Acórdão 1026/2009 de 15 de Dezembro de 2009, processo em tudo semelhante ao dos presentes autos: “[…] Voltando ao caso dos autos a Ré/Recorrente é parte do referido contrato de prestação de serviços, mas o Autor (...) desta acção não é parte do mesmo, como tal o contrato não o vincula, por força do disposto no artigo 400º/2 do CCM (correspondente ao artigo 406º/2 do CC de 1996), que prescreve: “2. Em relação a terceiros o contrato só produz efeitos nos casos e termos especialmente previstos na lei.” (...) tal contrato não é convenção colectiva de trabalho, muito menos acordo tipo que vincula os trabalhadores (...) Aliás, o contrato de trabalho individual assinado pelo Autor, em lado nenhum remete para o contrato de prestação de serviços celebrado entre a Ré e o terceiro [...]”
XIV. Não sendo o Autor parte do contrato de prestação de serviços celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, para que o mesmo pudesse produzir efeitos na sua esfera jurídica havia que afastar o princípio “res inter alios acta aliis neque nocet neque prodest”, enquadrando-o num dos “casos especialmente previstos na lei” (artigo 400º, nº 2 do CC), como seja, o contrato a favor de terceiros, o que como se alegou não poderá proceder.
XV. Afastada que está a figura do contrato a favor de terceiro, a pretensão do Autor terá necessariamente que falecer, conforme argumentação expedida no despacho proferido a fls 115 a 120 dos autos, donde resulta claro que “[...] Adianta-se, conclusivamente embora, que se entende que quer por eficácia ao despacho, quer por eficácia do contrato de trabalho a pretensão do autor não pode proceder […] E não se vê outra hipótese de procedência da pretensão do autor que não passe pela figura do contrato a favor de terceiros. Com efeito, o despacho enquanto acto administrativo, não obriga a ré nos termos que autor pretende; o contrato de trabalho muito menos (...) Por outro lado, o ponto 9, alínea e) por referência à alínea d) d.2 do Despacho 12/GM/88 não configura a disposição legal de carácter imperativo que, nos termos do artigo 287.º fere de nulidade o contrato que a autora celebrou com a ré. (...)”
XVI. O despacho nº 12/GM/88 não tem uma natureza normativa e de cariz imperativo e as suas disposições não afectam a relação laboral estabelecida entre Recorrente e Recorrido porquanto o mesmo cuida, tão somente, do procedimento administrativo conducente à obtenção de autorização para a contratação de trabalhadores não residentes, e não do conteúdo concreto da relação laboral a estabelecer entre os trabalhadores não residentes e as respectivas entidades patronais.
XVII. Atenta a natureza jurídica do Despacho não poderá o mesmo coarctar a liberdade contratual das partes, e gerar na esfera jurídica de qualquer delas direitos ou deveres que não tenham sido livre e reciprocamente acordados.
XVIII. Assim como, não o pode, pelas mesmas razões, o Despacho do Secretário para a Economia e Finanças emitido ao abrigo e no seguimento das normas procedimentais estabelecidas no referido Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro.
XIX. Das condições administrativas exigidas pela Região Administrativa Especial de Macau, relativamente à contratação de mão-de-obra estrangeira não resulta a imposição de contratar nestes ou noutros termos, não tendo qualquer reflexo na relação contratual de trabalho celebrada entre o Autor e o Recorrente, pois dali não resultam imperativos legais para a entidade patronal e/ou empregador de contratar em determinados termos.
XX. Só com base no contrato de trabalho celebrado entre as partes é que o Autor poderia reclamar da Recorrente quaisquer eventuais direitos, mas esse contrato foi integralmente cumprido pela Recorrente.
XXI. Nestes termos, a sentença recorrida incorre no vício de erro na aplicação do direito, por violação do disposto nos artigo 400º e 437º do Código Civil.
Nestes termos
E nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que julgue a presente acção improcedente por não provada e absolva a Ré, ora Recorrente do pedido, assim se fazendo a costumada
JUSTIÇA!
Notificado o Autor ora recorrido, contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso (vide as fls. 252 a 268 dos p. autos).
II
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
De acordo com o sintetizado nas conclusões do recurso, são as seguintes questões que constituem o objecto do presente recurso:
1. Da falta da correspondência entre os factos confessados e os dados provados; e
2. Da qualificação jurídica do acordo celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Limitada.
Passemos então a apreciá-las.
1. Da falta da correspondência entre os factos confessados e os dados provados
Alega a recorrente que os factos alegados pelo Autor nos artigos 49º, 52º, 55º e 58º da petição inicial e aceites pela Ré no artigo 30º da sua contestação e, por conseguinte, confessados, não têm correspondência com os factos constantes das alíneas g) a j) da motivação de facto.
A fim de facilitar a apreciação da questão colocada, passamos a transcrever a seguir os factos alegados pelo Autor nos artigos acima identificados:
49º - Entre Julho de 1997 e Março de 1998, como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou ao Autor, a título de salário, a quantia de MOP$1.800,00 mensais.
52º - Entre Abril de 1998 e Fevereiro de 2005, como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou ao Autor, a título de salário, a quantia de MOP$2.000,00 mensais.
55º - Entre Março de 2005 e Fevereiro de 2006, como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou ao Autor, a título de salário de MOP$2.100,00 mensais.
58º - Entre Março de 2006 e Dezembro de 2006, como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou a Autor, a título de salário de MOP$2.288,00 mensais.
Perante esses factos articulados na petição inicial, a Ré diz na sua contestação que “Por corresponderem à verdade, a Ré aceite os factos alegados pelo Autor nos artigos.... 49º, 52º, 55º, 58º, .... todos da p. i.;”
Face à postura assumida pelas partes na fase do articulado, o Exmº Juiz a quo julgou que “é já possível conhecer do mérito da causa porquanto a respectiva decisão não depende de matéria de facto ainda controvertida, permitindo o estado dos autos, sem necessidade de mais provas, a decisão do litígio. Com efeito, as partes, como mais à frente melhor se verá, não divergem quanto aos factos, apenas divergindo quanto ao direito aplicável aos mesmos.”.
Foi neste contexto que o Exmº Juiz a quo deu como provados, inter alia, os seguintes factos:
g) Entre Julho de 1997 e Março de 1998, como contrapartida da actividade prestada, a ré pagou ao autor, a título de salário, a quantia de MOP.1 800,00.
h) E nos meses de Abril de 1998 a Fevereiro de 2005 a ré pagou ao autor o salário mensal de MOP. 2 000,00.
i) E nos meses de Março de 2005 a Fevereiro de 2006 a ré pagou ao autor o salário mensal de MOP. 2 100,00.
j) E nos meses de Março de 2006 a Dezembro de 2006 a ré pagou ao autor salário mensal de MOP. 2 288,00.
Factos esses que foram agora postos em causa pela Ré.
Entende a Ré ora recorrente que os factos alegados pelo Autor e por ela aceites não são aqueles que foram dados provados, uma vez que o Autor naqueles artigos da petição inicial não afirma que o salário que auferia era um salário mensal, mas sim que auferia “a título de salário a quantia de MOP...., mensal” . e que É diverso falar-se em salário mensal e em pagamento de um salário num determinado valor mensal que pode ser fixado ou de acordo com o resultado efectivamente produzido ou com o período de trabalho efectivamente prestado.
Quid juris?
Ora, admitimos que, lexical e sintaxicamente falando, não há uma coincidência total entre a oração descritiva dos factos alegados pelo Autor e aceites pela Ré e a dos dados por assentes nos termos prescritos no artº 405º/1 do CPC pelo Exmº Juiz a quo.
Todavia, tanto os factos alegados pelo Autor e aceites pela Ré, como os factos dados por assentes pelo Exmº Juiz a quo, referem-se no fundo à mesma realidade.
Ou seja, os valores de salário concretamente alegados pelo Autor, pelo contexto da petição inicial em que foram inseridos e pela lógica das coisas, não podem deixar de ser interpretados como referentes aos valores de um salário mensal.
Ora, in casu, os vários valores mensalmente pagos respeitam aos vários períodos de tempo sucessivos, quais são: de JUL1997 a MAR1998, de ABR1998 a FEV2005, de MAR2005 a FEV2006 e de MAR2006 a DEZ2006.
Isto é, aos vários espaços de tempo, uns mais longos outros mais curtos, todos temporalmente quantificados em mês no calendário dos correspondentes anos civis.
Nota-se que durante toda a extensão de cada um desses espaços de tempo, o autor auferia sempre um salário num constante valor de dinheiro (MOP$1.800,00, MOP$2.000,00, MOP$2.100,00 e MOP$2.288,00).
E entende-se por mês cada uma das 12 divisões do ano solar, sete com 31 dias, quatro com 30 dias e uma com 28 dias ou (nos anos bissextos) 29 dias.
Pergunta-se será possível que num espaço de tempo mais ou menos longo, por exemplo o compreendido entre ABR1998 e FEV2005, o Autor auferia, a título de salário, em todos os meses, sempre o mesmo constante valor de MOP$2.000,00, se este valor mensal fosse determinado de acordo com as horas de trabalho efectivamente prestadas pelo Autor?
Ou seja, será possível que, num período de 83 meses (de ABR1998 a FEV2005), o Autor e a Ré, conseguiram engendrar o número das horas de trabalho efectivamente prestadas, em cada um dos 83 meses de duração variada (uns com 31 dias, outros com 30, 28 ou 29 dias), por forma a corresponder exactamente a um salário no valor sempre igual de MOP$2.000,00, nem mais nem menos uma pataca?
Naturalmente as regras da experiência da vida levam-nos a responder negativamente a essa interrogação.
Uma vez que, não tendo todos estes meses o mesmo número de dias, uns com 31, outros com 30, 28 ou 29, só através de uma variação intencionalmente manipulada e bem calculada do número das horas de trabalho é que se torna possível manter sempre inalterado o quantum salarial (MOP$2.000,00) durante tantos meses.
Não cremos que foi o que aconteceu.
Antes pelo contrário, cremos que o facto de ter sido sempre no mesmo valor o salário mensalmente auferido pelo autor durante todo o período de tempo em causa deve-se à circunstância de o Autor ter auferido um salário mensal, independente do número dos dias em cada mês.
Assim, cai por terra toda a argumentação deduzida pela Ré, à luz da qual, não obstante a periodicidade do pagamento do salário ao Autor ser mensal, a verdade é que o seu quantum era determinado de acordo com as horas de trabalho efectivamente prestadas pelo Autor, portanto, in casu, a expressão auferir um salário mensal não é a mesma coisa que auferir a título de salário a quantia de MOP$... mensais.
As mesmas razões valem igualmente para os restantes períodos de tempo em causa.
Assim, não podemos deixar de admitir que no contexto dos factos articulados pelo Autor na petição inicial, as expressões descritivas dos factos articulados sob os nºs 49º, 52º, 55º e 58º são sinónimas das descritivas dos factos dados por assentes no saneador-sentença.
Improcede o recurso neste primeira questão.
2. Da qualificação jurídica do acordo celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Limitada.
A propósito dessa mesma questão de direito, o Tribunal de Segunda Instância já se pronunciou, de forma unânime, em vários processos congéneres, sobre a natureza jurídica do negócio celebrado entre a ora Ré Guardforce e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Limitada – cf. e.g. os Acórdãos do TSI tirados em 12MAIO2011, 19MAIO2011 e 02JUN2011, respectivamente nos proc. 574/2010, 774/2010 e 876/2010.
Não se vê razão para não manter a posição já por este Tribunal assumida de forma unânime.
Ora sinteticamente falando, in casu, o Autor veio reivindicar os direitos com base num contrato de prestação de serviços celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda..
Ficou provado nos autos que no contrato de prestação de serviços celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda., foram definidas as condições de trabalho, nomeadamente o mínimo das remunerações salariais, os direitos ao subsídio de alimentação e ao subsídio mensal de efectividade, e o horário de trabalho diário, que deveriam ser oferecidos pela Ré aos trabalhadores a serem recrutados pela Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda. e a serem afectados ao serviços à Ré.
E o Autor é um desses trabalhadores recrutados pela Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda. e afectados ao serviço da Ré que lhe paga a contrapartida do seu trabalho.
O Tribunal a quo qualifica o contrato de prestação de serviços, celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda. como um contrato a favor de terceiro, regulado nos artºs 437º e s.s. do Código Civil.
Ao passo que a Ré, ora recorrente, não concorda a tal qualificação, sustentando antes que o Autor não poderia reivindicar mais do que o estipulado no contrato individual de trabalho celebrado entre o Autor e a Ré.
Então vejamos.
Reza o artº 437º do Código Civil que:
1. Por meio de contrato, pode uma das partes assumir perante outra, que tenha na promessa um interesse digno de protecção legal, a obrigação de efectuar uma prestação a favor de terceiro, estranho ao negócio; diz-se promitente a parte que assume a obrigação e promissário o contraente a quem a promessa é feita.
2. Por contrato a favor de terceiro, têm as partes ainda a possibilidade de remitir dívidas ou ceder créditos, e bem assim de constituir, modificar, transmitir ou extinguir direitos reais.
O Prof. Almeida Costa define o contrato a favor de terceiro como “aquele em que um dos contraentes (promitente) se compromete perante o outro (promissário ou estipulante) a atribuir certa vantagem a uma pessoa estranha ao negócio (destinário ou beneficiário)” – Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 7ª ed., p.297 e s.s..
In casu, foi celebrado um contrato de prestação de serviços entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda., em que se estipula, entre outros, o mínimo das condições remuneratórias a favor dos trabalhadores que venham a ser recrutados por essa sociedade e afectados ao serviço da Ré.
Assim, estamos perante um contrato em que a Ré (empregadora do Autor e promitente da prestação) garante perante a sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda.(promissória) o mínimo das condições remuneratórios a favor do Autor (trabalhador) estranho ao contrato (beneficiário), que enquanto terceiro beneficiário, adquire, por efeito imediato do contrato celebrado entre aquelas duas contraentes, o direito ao “direito a ser contratado nessas condições mínimas remuneratórias”.
Reunidos assim todos os requisitos legais previstos no artº 437º/1 do Código Civil, obviamente estamos em face de um verdadeiro contrato a favor de terceiro, pois é imediata e não reflexamente que a favor do trabalhador foi assumida pela Ré a obrigação de celebrar um contrato de trabalho em determinadas condições com o Autor.
Finalmente nem se diga o sufragado no Acórdão do TSI tirado em 15DEZ2009 no processo nº 1026/2009 contraria o acima preconizado por nós, pois nesse Acórdão o Colectivo se limitou a dizer que a cláusula compromissória de competência do tribunal arbitral abrange apenas a relação entre o promitente (a Guardforce) e o promissário (a sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda,) e não já a relação entre o promitente e o terceiro (o trabalhador), uma vez que este, o trabalhador enquanto terceiro beneficiário da prestação promitida, tem o direito à prestação que nasce imediatamente na sua esfera jurídica, naturalmente beneficia da autonomia na escolha do meio de tutela, judicial ou arbitral, que lhe se mostra mais conveniente, para o defender, quando o seu direito tiver sido violado ou estiver posto em perigo. Portanto, a cláusula compromissória nunca poderia vinculá-lo.
O que em nada se mostra incompatível com a circunstância de o Autor, enquanto terceiro beneficiário no âmbito do contrato a favor de terceiro celebrado entre a Ré e aquela Sociedade, poder adquirir, por efeito desse contrato, o direito a ser contratado nas condições que a Ré se comprometeu garantir.
Tirando as duas únicas questões acima por nós apreciadas, a recorrente não impugnou as restantes partes da decisão recorrida.
Não havendo mais questões a apreciar, resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência negar provimento ao recurso interposto pela Ré, mantendo na íntegra a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Notifique.
RAEM, 16JUN2011
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan
João A. G. Gil de Oliveira
1 À qualificação como contrato a favor de terceiro não se opõe a existência de cláusulas sobre condição e termo nem a existência de cláusulas modais, assim como não se opõe a inserção da promessa a favor de terceiro num qualquer contrato típico ou atípico ou em contratos mistos ou uniões de contratos. Sobre a diversidade dos contratos a favor de terceiro, Diogo Leite de Campos, Contrato a Favor de Terceiro, vg. pgs. 10 e 46.
2 Não é discutido que se trata de um contrato de trabalho o celebrado entre autor e ré. E não tem qualquer relevância, para a solução desta particular questão da eficácia jurídica, qualificar a relação contratual entre autor e ré, pois que, seja ela qual for, os efeitos do contrato a favor de terceiro seriam exactamente os mesmos.
3 = [90-(1700:30)]x30x18+[90-(1800:30)]x30x9+[90-(2000:30)]x30x83+[90-(2100:30)]x30x12+[90-(2288:30)]x30x10
4 Art. 11º, nº 2 do DL nº 24/89/M, de 3 de Abril. Não é aplicável ao presente caso e ao trabalho prestado até 31 de Dezembro de 2008 a Lei nº 7/2008 de 12 de Agosto, nos termos do art. 93º, nº 1 desta Lei.
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Ac. 837/2010-1