Processo nº 440/2009
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 23 / 06 / 2011
Descritores: Regulamentos administrativos
Reserva de lei
SUMÁRIO:
I- O Governo da RAEM, através do Chefe do Executivo, tinha competência para “por si próprio”, intervir na elaboração de regulamentos administrativos no âmbito da matéria contida no art. 129º, 1º parágrafo, da Lei Básica, nomeadamente para alterar o quantum da multa referente à infracção administrativa prevista nos arts. 68º, nºs 1 e 2, al. a) e 87º do DL nº 48/98/M, de 3/11, a respeito da actividade dos guias turísticos.
II- Neste sentido, o Regulamento nº 42/2004, de 30/12, que estabelece alteração àquele decreto-lei, não padece de ofensa ao princípio da legalidade por atentado à reserva de lei.
Processo nº 440/2009
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I- Relatório
A, com os demais sinais dos autos, recorreu contenciosamente para o Tribunal Administrativo do despacho Ex.mo Director dos Serviços de Turismo, datado de 4 de Março de 2008, que lhe aplicou duas multas, por infracção a disposições legais do DL nº 48/98/M, de 3/11.
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Nesse tribunal foi proferida sentença, datada de 3/02/2009, que julgou a) ilegais os arts. 87º, nº1 e 85º, nº1 do referido diploma, com as alterações introduzidas pelo Regulamento Administrativo nº 42/2004 (rejeitando a sua aplicação no processo), e b) procedente o recurso (com a declaração de nulidade do acto impugnado).
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É dessa sentença que ora vem interposto o presente recurso jurisdicional apresentado pelo Ex.mo Director de Serviços de Turismo, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
I. O tribunal a quo entende que o Regulamento Administrativo n.º 42/2004, de 30 de Dezembro é, na sua totalidade, ilegal;
II. Por entender que o Chefe do Executivo da RAEM não detém poder legislativo e que a criação de infracções administrativas novas ou o agravamento de infracções existentes, constituem matéria sujeita a reserva de lei;
III. Diferentemente, entende a entidade Recorrida que o Chefe do Executivo (Governo da RAEM) detém, nalgumas matérias, poder legislativo originário e que, no âmbito das mesmas, pode criar uma regulamentação nova ou alterar um Decreto-Lei preexistente;
IV. Pois a LB, ao permitir ao Chefe do Executivo emanar Regulamentos Administrativos, reconhece-lhe competência para regulamentar determinadas matérias, de forma independente, desde que as mesmas não estejam reservadas à Assembleia Legislativa;
V. Esse poder do Chefe do Executivo caracteriza-se por ser um poder normativo independente, originário e directamente emergente da LB;
VI. A matéria regulada pelo Regulamento Administrativo n.º 42/2004 não constitui matéria reservada à Assembleia Legislativa nem cabe, sequer, no âmbito das matérias de competência concorrencial entre os dois órgãos do poder;
VII. Mas constitui uma matéria que cabe na exclusiva competência do Governo porque decorre do artigo 129.º da LBM, onde se estabelece, no parágrafo 1.º que “O Governo da Região Administrativa Especial de Macau determina, por si próprio, o sistema relativo às profissões ( .. .);
VIII. Pelo que o Governo podia regular sobre a mesma, quer criando um regime novo, quer alterando um regime preexistente aprovado por Decreto-Lei;
IX. O sistema tal como delineado pela LB também não se compadeceria de uma limitação ao poder regulamentar do Executivo, sob pena deste se ver incapaz de dar cumprimento dos seus objectivos e salvaguardar de forma rápida e eficiente os interesses públicos que tem por missão prosseguir;
X. O Tribunal de Última Instância (TUI) também já entendeu, em acórdão proferido em processo diferente, que um Regulamento Administrativo pode criar um regime legal sancionatório materialmente novo;
XI. Por entender que o Chefe do Executivo e o Governo podem aprovar regulamentos apenas com fundamento na Lei Básica, fora das matérias reservadas à lei pela Lei Básica (princípio da reserva de lei) e sem prejuízo do princípio da prevalência da lei;
XII. A entidade Recorrida não concorda, igualmente, com o entendimento do tribunal a quo segundo o qual no n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 52/99/M, de 4 de Outubro, a expressão “regulamentos” não abarca os actuais (pós 20 de Dezembro de 1999) Regulamentos Administrativos;
XIII. Uma vez que também tal norma legitima a intervenção legislativa do Governo em matérias do foro sancionatório;
XIV. Mas, mesmo que assim não se entenda, não existe qualquer norma na Lei Básica que impeça os regulamentos administrativos de criar deveres ou restrições sobre os particulares;
XV. Pois de harmonia com o estabelecido no artigo 40.º da LB, os regulamentos não podem é impor restrições aos direitos fundamentais, a que se refere o Capítulo III da Lei Básica e aos direitos previstos nos Pactos mencionados nesse artigo 40.º, matéria essa que deve constar de lei;
XVI. O RA n. º 42/2004 que veio alterar as normas reguladoras da actividade de agência de viagens e da profissão de guia turístico é, por tudo isto, legal e plenamente válido no ordenamento jurídico de Macau;
XVII. A entidade Recorrida também não aceita que o acto recorrido enferme de erro nos pressupostos de facto;
XVIII. Uma vez que o acto recorrido continha as razões de facto que determinaram a sua prática porque do processo constam provas das circunstâncias de facto que demonstravam que o Recorrente induziu os turistas a efectuar compras em estabelecimentos certos e determinados;
XIX. E da própria matéria de facto, dada como provada pelo tribunal a quo, se infere que houve indução, por parte dos guias, para que os turistas fizessem compras em lojas certas e determinadas;
XX. E por esse motivo, reitera a D8T que o Recorrente deve ser punido ao abrigo da alínea a) do n.º 2 do artigo 68.º do Decreto-Lei n.º 48/98/M, com a redacção que lhe foi dada pelo Regulamento Administrativo n.º 42/2004;
XXI. Por último, não concorda a entidade Recorrida com a interpretação que o douto tribunal faz da expressão “induzir” utilizada na lei;
XXII. Para se verificar a indução, no presente caso, basta ter existido a persuasão, a sugestão, a insistência, a instigação, numa palavra “levar alguém a...”, não sendo necessário o recurso a meios ilegítimos para consumar a indução;
XXIII. E resulta de todo o processado e provado que o Recorrente induziu os turistas a fazer compras naqueles estabelecimentos certos e determinados, escolhidos por si e pelas suas colegas, o que lhe estava vedado por lei;
XXIV. A situação fáctica também é subsumível à norma constante do n.º 1 do artigo 68.º do Decreto-Lei n.º 48/98/M pois o dever de informação foi violado pelo Recorrente em mais de uma situação no decurso da permanência do respectivo sub-grupo em Macau;
XXV. Pelo que deve o Recorrente ser punido nos exactos termos em que o fez o acto administrativo indevidamente anulado.
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O recorrente também alegou, formulando, por seu turno, as seguintes conclusões:
1. Seja por as alterações ao Decreto-Lei n.º 48/98/M, de 3 de Novembro, não terem sido introduzidas por via legislativa, seja por a matéria do Regulamento Administrativo nº 42/2004 ser da competência exclusiva da Assembleia Legislativa, os artigos 85º, nº 1, e 87º, nº 1, do Decreto-Lei n.º 48/98/M, de 3 de Novembro, nas redacções introduzidas pelo Regulamento Administrativo nº 42/2004, são necessariamente ilegais.
2. Logo, nunca ao recorrente poderia ter sido aplicada qualquer multa nos termos daqueles preceitos por a mesma ter faltado à verdade aos turistas e haver induzido estes a efectuar compras em estabelecimentos certos e determinados.
3. Não há dúvida que o despacho recorrido padece do vício de erro nos pressuposto de facto ou de insuficiência da matéria de facto para a decisão.
4. Os factos de o recorrente haver levado os turistas a determinadas lojas e de ter recebido, como parte do seu rendimento, uma comissão em função das quantias gastas por aqueles, não permitem um juízo seguro de que o mesmo haja efectivamente levado os turistas a comprar nas lojas através de meios ilegítimos ou, inclusivamente, os haja persuadido ou instigado a esse fim através de sugestões' e insistências.
5. Da matéria assente nos autos, não consta também que o recorrente tenha pressionado os turistas a participar nas excursões facultativas, afirmado que, da participação nas mesmas, dependia o jantar e a dormida, ou permitido que a sua colega B cometesse quaisquer dos referidos actos.
6. Pelo que, mais uma vez, nunca ao recorrente poderia ter sido aplicada qualquer multa por haver induzido os turistas a efectuar compras em estabelecimentos certos e determinados ou por ter faltado à verdade aos mesmos.
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O digno Magistrado do M.P., em seu douto parecer de fls. 213/221, opinou no sentido de que o recurso não merece provimento, impondo-se a anulação da decisão punitiva por erro sobre os pressupostos de facto.
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Cumpre decidir.
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II- Os Factos
A sentença sob escrutínio deu por assente a seguinte factualidade:
Em 4 de Dezembro de 2007, pelas 10h30 da manhã, chegou ao Terminal Marítimo do Porto Exterior de Macau um grupo turístico proveniente da Província de Hebei, composto por 130 turistas, incluindo l26 turistas e 4 acompanhantes turísticos.
O referido grupo turístico foi dividido em 4 sub-grupos que respectivamente foram recebidos por 4 guias turísticos da “Agência de Viagens XXX, Lda.”, guias esses eram C (C), B (B), D (D) e A(A), ora recorrente do presente processo.
Como houve divergência entre o programa que os turistas tinham e o programa que os 4 guias turísticos de Macau tinham, o recorrente e os outros três guias turísticos optaram por seguir o programa que os turistas tinham, ou seja, o programa fixado por “XX Aviation Internacional TraveI Service Co., Ltd.”, ora constante de fls. 570 e 570v do Processo Administrativo.
No que diz respeito à “visita à joalharia, mercadoria e loja de produtos locais” que constava do programa, o recorrente e os outros três guias levaram os turistas à “Jóias de Relógios ……”, “...... Fashion Square” e “Pastelaria ......” para fazer compras.
O recorrente, os outros três guias e a Agência de Viagens XXX, Lda. receberam, como parte do seu rendimento, as retribuições pecuniárias dadas pelas lojas em função das quantias de consumo gastas pelos turistas.
Durante a visita, o recorrente e os outros três guias promoveram aos turistas duas excursões facultativas, pelo preço de MOP$120,00 e MOP$400,00, respectivamente.
No trajecto para a Praia Hác Sá, um dos guias turísticos, B (B), disse aos turistas que o jantar e o alojamento daquela noite só poderiam ser garantidos sob condição de os turistas participarem nas excursões facultativas, mas isso levou a que os turistas manifestassem insatisfação.
Pelas 17h00 daquele dia, na Mercearia ......, situada na Estrada Nova de Hac Sa, em Coloane, o recorrente e os outros três guias turísticos tiveram uma disputa com os acompanhantes turísticos e turistas, o que levou à intervenção de um agente da PSP para tentativa de conciliação, mas, ambas as partes acabaram por entrar em altercações (cfr. 490 a 519 do Processo Administrativo e Relatório do CPSP n.º 7876/2007).
Quanto ao incidente acima referido, a Direcção dos Serviços de Turismo elaborou, em 6 de Dezembro, o auto de audiência do recorrente (cfr. fls. 564 do Processo Administrativo).
Em 15 de Dezembro, a Direcção dos Serviços elaborou o auto de notícia do recorrente n.º 195/DI/2007 (cfr. 452 a 457 do Processo Administrativo).
Em 8 de Janeiro de 2008, o recorrente apresentou à Direcção dos Serviços de Turismo a audiência escrita (cfr. fls. 363 a 365 elo Processo Administrativo).
Em 3 de Março, o jurista da Direcção dos Serviços ele Turismo elaborou o parecer n.º 05/DLI-P/2008, que se dá aqui por integralmente reproduzido (cfr. fls. 33 a 50 do Processo Administrativo).
Em 4 de Março, o Director dos Serviços ele Turismo exarou despacho no referido parecer, tendo concordado com os factos provados e a aplicação da lei, e em consequência, decidiu aplicar ao recorrente, nos lermos dos artigo 87.º n.º 1 e artigo 85.º n.º 1 do Decreto Lei n.º 48/98/M, com as alterações introduzidas pelo Regulamento Administrativo n.º 42/2004, nas multas de MOP$7.000,00 e de MOP$20.000,00, respectivamente, sendo na totalidade de MOP$27.000,00 pela violação do artigo 68.º n.ºs 1 e 2 alínea a) do mesmo Decreto-Lei.
Em 12 de Março, o Director elos Serviços de Turismo notificou ao recorrente o despacho acima referido através do mandado de notificação n.º 17/2008 (cfr. fls. 31 do Processo Administrativo).
O recorrente veio interpor o presente recurso contencioso do aludido despacho.
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III- O Direito
1- Pelo mesmo acto sancionatório foram aplicadas ao recorrente, guia turístico, duas multas: uma no valor de Mop$ 7.000,00, por infracção ao disposto no art. 68º, nº1, do DL nº 48/98/M, de 3/11, outra, no valor de Mop$ 20.000,00, nos termos do art. 85º, nº1, por infracção ao disposto no art. 68º, nº2, al. a), do mesmo diploma, na redacção que aos preceitos indicados fora dada pelo Regulamento Administrativo nº 42/2004, de 30/12.
Na petição de recurso fora imputado ao acto o vício de erro sobre os pressupostos de facto, o que a entidade recorrida na sua contestação prontamente negou. A sentença, porém, denotando um trabalho de estudo e empenhamento assinaláveis, seguiu um caminho diferente. Decidiu que o acto sancionatório era inválido: nulo porque assente em disposições (as referidas) que considerou ilegais (e cuja aplicação, por isso, rejeitou) em virtude de derivarem de regulamento administrativo ofensivo do princípio da legalidade em razão da violação do subprincípio da reserva de lei; inválido, ainda, por erro sobre os pressupostos de facto.
Eis-nos perante uma das mais sensíveis matérias a que o tribunal é chamado a pronunciar-se: o da competência do Governo e do Chefe do Executivo da RAEM em matéria de produção normativa. Sensível e difícil, na medida em que a Lei Básica não nos diz em norma própria quais as matérias podem ser sujeitas ao exercício do poder regulamentar ou quais as que só podem ser reguladas por lei1, da mesma maneira que não fornece um quadro único e bem definido de competências atribuíveis em exclusivo à Assembleia Legislativa2, mas simplesmente nos aponta em momentos diferentes do seu articulado alguns temas que devem ser submetidos à lei3. Então é caso para perguntar se podia o Ex.mo Chefe do Executivo produzir o Regulamento Administrativo nº 42/2004, de 30/12 a respeito do exercício da actividade das agências turísticas e dos guias turísticos?
Olhemos com atenção para o panorama legislativo.
O Chefe do Executivo é o órgão dirigente máximo da estrutura política e executiva da RAEM: art.45º da LB. Pode dizer-se também que é o dirigente máximo do Governo: art.2º, da Lei n. 2/1999, de 20/12/1999 (Lei de Bases da Orgânica do Governo)4.
Mas a função legislativa, essa, pertence à Assembleia Legislativa, através da elaboração de leis: arts. 67º e 71º, n.1), da LB, o que não acontecia antes da transferência da soberania para a República Popular da China, pois, então, o Governo detinha poderes legislativos, como se sabe.
E assim é que o Chefe do Executivo, que é o órgão executivo da RAEM (art. 1º, da Lei 2/1999, de 20/12), apenas assina projectos e propostas de lei aprovadas pela AL e manda publicar as leis: art. 50º, n.3), LB (ver também arts. 60º e 67º da LB), embora disponha do poder de emitir regulamentos (art. 50º, al. 5), da LB; ver também art. 15º da Lei de Bases da Orgânica do Governo: Lei nº 2/99 cit.)).
Também ao Governo foi reconhecido esse poder regulamentar (art. 64º, al. 6), da LB).
Estes dois casos de poder regulamentar inscrevem-se no âmbito da competência para a emissão de regulamentos complementares e independentes5.
Ora, os regulamentos, de um modo geral, têm que estar sujeitos ao princípio da legalidade, o qual se densifica através daquilo a que poderíamos designar subprincípios: o primado da lei, a precedência da lei e a reserva de lei.
O primeiro é destinado a prevenir a hipótese de em caso nenhum o regulamento poder ofender ou contrariar actos legislativos, sejam eles quais forem.
Quanto aos segundo, um dos exemplos que podemos apontar é o de as normas regulamentares excederem o conteúdo da lei prévia de que dependem e que visam regular e concretizar, violando assim o princípio da precedência da lei. Na verdade, o princípio da legalidade aqui também implica que a norma regulamentar não ultrapasse os limites substantivos da lei que visa regulamentar. Poderíamos citar, aqui, o exemplo que vem do art. 118º da LB (O Governo só pode intervir em matéria de protecção de ambiente “nos termos da lei”), ou o que deriva do art. 90º, parágrafo 4º (A organização, competência e funcionamento do Ministério Público são regulados por lei”). Quer dizer, aí já não é o Governo a definir o regime aplicável, e por isso qualquer intervenção regulamentar nesse sentido só pode assentar em lei prévia.
Outras vezes a ilegalidade deriva da circunstância de a norma regulamentar não poder ter sido emitida pelo seu autor, por tratar de assunto da exclusiva competência do órgão legislativo próprio, isto é, de matéria do foro reservado da Assembleia Legislativa. Diz-se, nesse caso, que a norma violou o princípio da reserva da lei.6
A dificuldade que surge em relação à precedência da lei ou à reserva da lei avoluma-se no tocante aos regulamentos independentes do Chefe do Executivo e do Governo, em especial devido à forma menos clara e específica pela qual a Lei Básica neles deposita os poderes respectivos, sem que a Lei de Bases da Orgânica do Governo forneçam melhores subsídios de interpretação para alem dos que resultam expostos nos arts. 15º e 16º7.
Daí que, no que a estes regulamentos independentes diz respeito, ela só pode ser superada se detectarmos na Lei Básica, pelo menos em termos amplos e genéricos, o reconhecimento expresso desse poder ao Governo, qua tale8, como se pode entrever no art. 14º, parágrafo 2º, ao prescrever que “O Governo da Região Administrativa e Especial de Macau é responsável pela manutenção da ordem pública na Região”). E, por outro lado, se tais regulamentos não dependem de lei prévia habilitadora e se permitem estabelecer pela primeira vez a disciplina de certas relações, a verdade é que as matérias sobre que versam não podem estar reservadas ao órgão legislativo único, que é a Assembleia Legislativa. Essa é a tarefa que o intérprete tem que realizar a cada passo.
Mas se bem atentarmos, a Lei Básica, foi mais além de que caucionar uma mera atribuição genérica de poderes regulamentares. Acabou, através de uma fórmula subtil (e por isso até pode passar despercebida), embora suficientemente dirigida ao propósito que lhe subjaz, por conferir ao Governo ou ao Chefe do Executivo poderes de intervir na definição e na regulação de certo tipo de relações. Essa fórmula está traduzida na expressão “por si próprio” incluída em inúmeras disposições do seu articulado.
Assim é que reconhece ao Governo o poder de definir por si próprio os vários sistemas de gestão da aviação civil (art. 117º, da LB), a política respeitante à promoção dos serviços de medicina e saúde (art. 123º), a política cultural (art. 125º), a política referente à imprensa e à edição (art. 126º) ou a política para o desporto (art. 127º). Nestes e noutros casos ali previstos, o legislador da Lei Básica transmite, não só a ideia, como a sua expressão, de que ao Governo era reconhecido poder regulamentar originário, no sentido de que a normação que daí derivasse era independente e sem qualquer atinência a lei (ordinária) prévia (precedência de lei). Simultaneamente, deixava pensar que essa competência regulamentar não era reservada à Assembleia Legislativa, nem sequer concorrencial com a deste órgão legislativo.
Só que enquanto assim preceituava, o mesmo legislador, em diferentes normas, mais do que simples impressão, deixou que o intérprete apreendesse uma certeza: a de que quando quis que o Governo ou o Chefe do Executivo agissem sob a égide de um poder regulamentar não independente, afirmou-se de um modo mais do que claro. Exemplos disso avistamo-los no art. 119º: “O Governo da Região Administrativa e Especial de Macau protege o meio ambiente, nos termos da lei” (negro nosso) ou no art. 124º: “ O Governo …define, por si próprio, a política relativa às ciências e à tecnologia e protege, nos termos da lei, os resultados da investigação científica e tecnológica, patentes, descobertas e invenções”. O Governo pode elaborar regulamentos administrativos nessa matéria, mas terão que obedecer à lei pré-existente, terão que ser regulamentos complementares, é o que nos transmite o dispositivo.
Ora, no caso que nos ocupa, somos a considerar que a Lei Básica não atribui à Assembleia Legislativa competência exclusiva sobre esta matéria. E por outro lado, na linha do raciocínio que vimos empreendendo, entendemos que ela depositou no Ex.mo Chefe do Executivo competência regulamentar independente e no âmbito de um poder de normação primário. A origem da nossa afirmação encontra-se no art. 129º referente ao “sistema relativo às profissões” e, bem assim, à “avaliação e à atribuição de qualificação profissional” e à “qualificação” para o seu exercício”. Dito por outras palavras, a Lei Básica conferiu ao Governo a faculdade de, para esta matéria, intervir “por si próprio” naquilo a que poderíamos designar de reserva regulamentar.
Aqui chegados, parte da fundamentação da sentença, com o devido respeito, não colhe o nosso aplauso.
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1.2- Importa, porém, discutir duas ou três coisas mais.
A primeira consiste em saber se da norma do art. 129º da Lei Básica, que ao Governo confere tais poderes regulamentares, se retira a possibilidade de eles poderem ser aplicados em concreto pelo Chefe do Executivo. A questão, que não entendemos de todo despicienda - uma vez que noutras ocasiões a mesma lei se refere directamente ao Chefe do Executivo - deve colocar-se em virtude se ser comummente aceite a noção de que a competência não se infere ou não se presume, antes deve estar outorgada de forma expressa ou claramente implícita na norma jurídica de forma a que ela se tenha por legalmente existente9. Consideramos, contudo, que a outorga ao Governo de tais poderes se mostra suficiente para que o seu dirigente máximo o possa exercitar. Na verdade, até da própria Lei nº 3/1999 resulta que os regulamentos administrativos, mesmo quando emanam de um poder depositado ao Governo, são “decretados” pelo Chefe do Executivo, por quem são, de resto, subscritos (ver art. 13º). Damos desta maneira por respondida a primeira questão.
A segunda, porventura, mais difícil, é a de saber se, naquela matéria concreta do art. 129º da Lei Básica e ao abrigo dos poderes que acabamos de reconhecer-lhe, poderia o Chefe do Executivo estabelecer sanções administrativas.
A douta sentença disse que não, por entender que o Regulamento Administrativo nº 42/2004, ou criou novas sanções, ou agravou as que estavam previstas no DL nº 48/98/M. Vejamos o que está em causa.
As normas em apreciação são basicamente as dos arts. 68º, 85º e 87º, do referido D.L. nº 48/98/M, ao abrigo das quais o recorrente fora punido. Elas tinham a seguinte redacção inicial:
“Artigo 68.º
(Norma deontológica)
1. O guia turístico deve rigoroso respeito à verdade nas informações que preste aos clientes das agências .
2. É vedado ao guia turístico induzir os turistas a:
a) Entrar nos casinos e outros recintos de jogos, quando tal não constar dos itinerários das viagens turísticas;
b) Participar em qualidade modalidade de jogo de fortuna ou azar;
c) Efectuar compras em estabelecimentos certos e determinados. (...)
Artigo 83.º
(Guias não titulados)
1. A infracção ao disposto no n.º 1 do artigo 66.º é punida com multa de 5.000,00 a 10.000,00 patacas, aplicável ao infractor.
2. Caso o infractor se encontre ao serviço de agência, é esta punida com multa de igual montante. (...)
Artigo 85.º
(Acções não autorizadas)
1. A infracção ao disposto no n.º 2 do artigo 68.º é punida com multa de 1.000,00 a 5.000,00 patacas, aplicável ao infractor.
2. É aplicável a este tipo de infracção o disposto no n. o 2 do artigo 83.º. (...)
Artigo 87.º
(Informações erróneas)
A prestação de informações por guias turísticos que deturpem grosseiramente a realidade dos factos é punida com multa de 1.000,00 a 5.000,00 patacas, aplicável ao infractor.”
Repare-se agora na redacção final após o Regulamento Administrativo nº 42/2004:
Artigo 68.º
(Norma deontológica)
1. O guia turístico e o transferista devem rigoroso respeito à verdade nas informações que prestem aos turistas.
2. No exercício das suas funções, é vedado ao guia turístico e ao transferista:
a) Induzir os turistas a efectuar compras em estabelecimentos certos e determinados;
b) Solicitar ou receber dinheiro, vantagem patrimonial ou qualquer outro benefício de um outro guia pela prestação de serviços no âmbito do presente diploma;
c) Participar em qualquer modalidade de jogo de fortuna ou azar;
d) Promover e comercializar bens.
Artigo 83.º
(Exercício ilegal das profissões de guia turístico e de transferista)
1. A infracção ao disposto no n.º 2 do artigo 64.º e no n.º 3 do artigo 67.º-B é punida com multa de $ 20 000,00 (vinte mil patacas) a $ 30 000,00 (trinta mil patacas), aplicável ao infractor.
2. A agência é punida pelo dobro do valor da multa aplicada ao infractor.
Artigo 85.º
(Acções não autorizadas)
1. A infracção ao disposto no n.º 2 do artigo 68.º é punida com multa de $20 000,00 (vinte mil patacas) a $30 000,00 (trinta mil patacas), aplicável ao infractor.
2. É aplicável a este tipo de infracção o disposto no nº2 do artigo 83º.
Artigo 87.º
(Informações erróneas)
1. A prestação de informações por guias turísticos, transferistas ou agências que deturpem grosseiramente a realidade dos factos é punida com multa de $5000,00 (cinco mil patacas) a $10 000,00 (dez mil patacas), aplicável ao infractor, desde que se verifiquem cumulativamente os seguintes pressupostos:
a) Ser-lhes exigível o conhecimento desses factos, em virtude das suas funções;
b) Ser o correcto esclarecimento desses factos inerente ao exercício normal das suas funções; e
c) Ser a prestação daquelas informações susceptível de causar dano considerável ao cliente ou feita no intuito de obter, para si ou para terceiro, um benefício ilegítimo.
2. Se o facto previsto no número anterior, embora cometido pelo guia ou transferista, for imputável a acto ou omissão da agência, esta é punida com multa dentro dos limites no mesmo fixados.
Se bem se reparar, os ilícitos pelos quais o recorrente (guia turístico) fora punido (por não ter tido rigoroso respeito à verdade nas informações prestadas aos turistas: arts. 68º, nº1 e 87º; e por ter induzido os turistas a efectuar compras em estabelecimentos certos e determinados: arts. 68º, nº2, al. a) ) estavam já previstos nos mesmos normativos na primitiva redacção (a diferença é que no Decreto-Lei contemplava o segundo ilícito no art. 68º, nº2, al. c)). Portanto, neste sentido, o Regulamento Administrativo não chegou a introduzir qualquer inovação, porque os elementos do tipo são os mesmos (as diferenças são praticamente inexistentes ou imperceptíveis).
Diferença, sim, apenas houve no que concerne à moldura sancionatória. Efectivamente, enquanto a “informação errónea” era punida com a multa de 1000,00 a 5000,00 patacas, com o Regulamento passou a ser de 5000,00 a 10.000,00 patacas; e por outro lado, se a “acção não autorizada” de induzir os turistas a efectuar compras nos estabelecimentos era punida primeiramente com a multa de 1000,00 a 5000,00 patacas, com o Regulamento em causa ela passou a ser de 20.000,00 a 30.000,00.
Configurará esta acção regulamentar, em virtude da alteração do quadro abstracto punitivo, alguma ofensa ao princípio da reserva de lei? Estaremos nós perante uma restrição de direitos e liberdades de que fala o art. 40º da Lei Básica?10
A questão não é de fácil resposta. Na verdade, admitimos a plausibilidade da defesa de um certo ponto de vista que encontra no agravamento de penas mais do que o exercício de uma mera actividade regulamentar enquadrada nos seus precisos limites. De modo que, na medida em que a actividade em causa iria para além do que o permitiria o referido art. 40º, então ele seria ilegal por tratar de matéria que só a lei poderia regular.
Todavia, para se chegar a tal conclusão seria preciso concluir que o Regulamento em causa estaria efectivamente a restringir direitos e liberdades. Na verdade, se de restrição de direitos e liberdades pudéssemos falar aqui, ela teria sido estabelecida no Decreto-lei e não no Regulamento, pois foi aí que se criou o ilícito-tipo, se declarou a natureza da ilicitude e se previu o seu sancionamento.
Todavia, de restrição de direitos e liberdades não cremos que possamos falar com pleno rigor nesta matéria, porque nunca antes havia sido estabelecida a favor dos guias turísticos ampla liberdade de acção que incluísse o direito de não falar verdade ou de induzir os clientes turistas a comprar nas lojas comerciais que eles muito bem escolhessem. Pelo contrário, a actividade, como outra qualquer, está regulada desde o início e nessa regulação sempre lhes foi proibido agir daquela maneira. Esta proibição faz parte do quadro normativo regulador da actividade e sobre isso não se pode ter dúvida. Neste sentido, não podemos falar em ablação em relação ao status quo ante.
O aumento de pena, por outro lado, não pode ser encarado numa pura perspectiva ablativa de direitos e liberdades (é preciso lembrar que não estamos a falar de perda de liberdade em sentido estrito, como é o caso da prisão11). Ele é, simplesmente, o modo de passar para a norma aquilo que a sociedade reclama no âmbito da dinâmica evolutiva das relações sociais e económicas. A sanção administrativa perdera actualidade e urgia agravá-la por influência do decurso do tempo e das novas realidades que impunham maior controlo para evitar destempero ou descalabro da actividade dos guias em prejuízo da imagem que daí adviria para a RAEM.
Mais difícil é encontrar nesta situação algo que se costuma traduzir em identidade do modelo normativo, convertível no possível brocardo só a lei pode alterar o que ela própria criou. E assim sendo, o que o Decreto-Lei 48/98/M criou12 só por diploma legislativo de idêntica força podia ser alterado.
Mas também aqui, a solução não pode ser a que um quadro de estabilidade de competências obrigaria a ter. Com efeito, só assim deveria ser se a alteração da situação histórica de Macau não tivesse sido acompanhada de uma modificação do quadro de competências dos diversos órgãos do poder. É que, enquanto anteriormente este poder legislativo também estava conferido ao Governador (e foi ao abrigo dele e do art. 13º, nº1 do Estatuto Orgânico de Macau que o DL 48/98/M foi decretado), com a Lei Básica o Chefe do Executivo passou a ter apenas competência regulamentar, como se viu já. Isto quer dizer que qualquer alteração ao referido diploma nunca podia ser feita formalmente pela mesma via do decreto-lei (impossibilidade jurídica), tendo até em conta que a alteração que a Assembleia Legislativa pode efectuar obedece à identidade da forma: esse órgão pode alterar por lei o que estiver estipulado na lei (é o que se depreende do art. 71º, al. 1), da LB).
Eis-nos, pois, perante um panorama normativo criado com alguma coerência. Repare-se: o Decreto-lei em apreço versava sobre determinada matéria para a qual o Governador detinha competência legislativa. Não obstante a perda desses poderes pela entidade que politica e administrativamente lhe sucedeu, o Chefe do Executivo, a verdade é que a Lei Básica nele depositou poder semelhante de intervenção normativa sobre a mesma matéria (ver citado art. 129º). Portanto, como se vê, há uma certa linha de continuidade e de harmonia no plano da intervenção material, que só cede no da adequação formal. Substantivamente são os mesmos poderes, o que muda é o carácter formal do modelo de intervenção.
Logo, sob pena de quebra da mesma coerência que entrevimos na tábua de matérias sobre as quais o Chefe do Executivo pode intervir pela via regulamentar, faz sentido que se lhe reconheça o poder de alterar aquilo que o decreto-lei tinha estipulado. Seria, aliás, um paradoxo que, pudesse dispor de competência para elaborar um regulamento independente sobre o assunto e não a pudesse exercer para introduzir modificações num diploma pré-existente.
Em suma, mesmo concedendo que as questões equacionadas podem ser vistas por diferente ângulo (a sentença seguiu outro, como se viu), somos a entender que não estamos perante uma situação que atente contra o direito fundamental previsto no art. 40º, nº2, da Lei Básica, nem, em consequência, perante caso de ofensa a reserva de lei13. O que vale por dizer que, salvo melhor opinião, o Regulamento em causa não é ilegal por esse motivo.
Com esta fundamentação, somos em parte a concordar com as conclusões I a XVI das alegações do recurso.
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1.3- Mas, para terminar este ponto, talvez valha a pena meditar um pouco sobre a Lei que instituiu o Regime jurídico de enquadramento das fontes normativas internas (Lei nº 13/2009, de 27/07). Trata-se de apurar se este diploma apresenta modificações de vulto que urja destacar em favor de alguma das posições em debate.
Sem dúvida que ela trouxe a luz que faltava para a clarificação de dúvidas sobre a repartição das competências legislativa e regulamentar da Assembleia Legislativa e do Chefe do Executivo, respectivamente, e, nesse sentido, portanto, para a compreensão mais firme e precisa sobre o fenómeno material da reserva legal. É a opinião que desde já manifestamos. Com efeito, esta lei veio agora definir qual o limite da lei e do regulamento (art. 3º), qual a competência da A.L. e o âmbito substantivo das suas leis (arts. 5º e 6º), bem como quais as matérias que podem ser objecto de regulamento complementar e independente (art. 7º). Tudo ficou agora bem com este diploma, mais explícito, com toda a certeza.
Mas, como é evidente, ao fazê-lo, a lei admite que possa ser lida com dois sentidos:
- Um, para se extrair a ideia de que até à sua publicação existia um vazio legal e que, por conseguinte, nada permitia inferir que o Governo tivesse poderes regulamentares em determinadas áreas, como por exemplo, na área das infracções administrativas.
- Outro, para se concluir precisamente o contrário, isto é, no sentido de confirmar o que já antes existia, embora sob a suspeita de pouca clareza.
Como adiantámos acima, inclinamo-nos para a segunda das possíveis leituras. Em primeiro lugar, porque de acordo com esta Lei a competência regulamentar serve propósitos de desenvolvimento, implementação e execução de políticas governativas (art. 7º, nº1, al.1)). Ora, estas matérias já antes estavam cometidas de forma esparsa na Lei Básica, no sentido de que, nas diversas políticas a seu cargo, o Governo podia actuar “por si próprio” (v.g. art. 121º, 125º, 130º, da Lei Básica). Em segundo lugar, a circunstância de a referida lei estabelecer que compete à lei a normação sobre o regime geral das infracções administrativas (art. 6º, nº6)) em nada vem contrariar o entendimento que acima expusemos. Na verdade, o que a lei define é o âmbito da lei em matéria de fixação do regime geral das infracções administrativas, ou seja, o conjunto de regras e princípios a que, por sua vez, devem obedecer os regimes material e procedimental, tal como já havia sido feito no Regime Geral das Infracções Administrativas e respectivo procedimento, introduzido pelo DL nº 52/99/M. Ora, se faz sentido que este regime-base seja determinado por instrumento normativo sob a forma de lei, a maneira como o legislador se exprimiu deixa inferir com toda a legitimidade que a concretização das mais diversas infracções administrativas possa já obedecer à via regulamentar. E se isto se pode pensar, o art. 7º, nº1, al.6) veio reforçar o pensamento: afinal, o Regulamento passa a ser a via normativa adequada para tratar das matérias concernentes às infracções administrativas e respectivas multas que não excedam 500 000,00 patacas.
Para dizer, em suma, que esta lei não vem inovar, mas sim, confirmar e clarificar aquilo que se supunha ou entrevia numa interpretação generosa da Lei Básica. Nesta perspectiva, a Lei 13/2009 até vem contribuir para o reforço da opinião que manifestámos acima.
De qualquer maneira, independentemente de todas as discussões que possam travar-se acerca do alcance inovatório ou clarificador desta lei, o que mais importa é a força das suas disposições, a imperatividade das suas estatuições. E é por isso que, para lá de tudo o que se possa dizer, o preceito do art. 10º revela-nos que “ Os regulamentos administrativos publicados antes da entrada em vigor da entrada em vigor da presente lei, ainda que não observem o regime nesta estabelecido, continuam a produzir efeitos jurídicos até à sua alteração, suspensão ou revogação através de diplomas legais”.
Ou seja, mesmo que o Regulamento Administrativo nº 42/2004 atentasse contra preceitos desta lei, nem por isso ele deixaria de ser aplicável ao caso em apreço.
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2- Falta saber, por fim, se, tal como ajuizou a sentença em crise, o acto impugnado errou sobre os pressupostos de facto.
E para essa tarefa, importa dizer que no recurso não vem impugnada a matéria de facto. Razão pela qual, a factualidade se deve dar por adquirida em termos de não poder ser reapreciada (art. 629º, nº1, al. a) e nº2, CPC). E a alteração da factualidade também não pode ter lugar, a menos que dos autos e do processo administrativo instrutor se colham elementos de prova que apontem para decisão diferente da tomada, nos termos do art. 629º, nº1, al. b), do CPC.
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2.1- Apreciando os factos assentes, não parece haver dúvida de que nenhum deles aponta, pelo menos de modo cristalino (e a prova, como se sabe, tem que ser irrefutável), que o recorrente tenha induzido os turistas a efectuar compras nos estabelecimentos mencionados (“Jóias e relógios ……”, “...... Fashion Square” e “ Pastelaria ......”). O que está provado é que o recorrente e os outros três colegas levaram os turistas a estas três lojas para fazer compras.
Fizeram-no por sua iniciativa? Podiam tê-lo evitado? Havia alguma intenção escondida? E ela era a de induzir os turistas a adquirirem produtos nesses estabelecimentos de modo a poderem obter alguma compensação pecuniária?
É verdade que os 4 guias receberam compensações em função dos consumos efectuados pelos turistas nessas lojas, porque isso faz parte do elenco dos factos demonstrados. Mas o que é certo também é que dois dos programas fornecidos (um da “XX Aviation International Travel Sevice, Co. Ltd” a fls. 10 do p.a., que os acompanhantes dos turistas traziam; outro, da “XXXX Workers International Travel Service”, a fls. 205-a do p.a.), incluíam visitas a três estabelecimentos comerciais. O da XX informava que os estabelecimentos eram uma joalharia, uma mercearia e uma loja de venda de produtos locais. O da XXXX apresentava mesmo o nome dos estabelecimentos visitados. Este programa, porque apresentado apenas no dia 19 de Dezembro, viria a não ser considerado no parecer de fls. 17 e sgs. do p.a.
Ora, aquele primeiro programa, que os guias seguiram, e que o próprio parecer citado também acolhe, efectivamente não mencionava nomes de estabelecimentos, mas apenas a natureza das lojas que seriam visitadas, em função do tipo de comércio nelas praticado.
Isto quer dizer, e os próprios guias o confessam no processo administrativo, que ficou ao seu critério a escolha de cada uma das lojas a visitar. Por outro lado, e no que para o caso verdadeiramente concerne, não se pode dizer que os guias induziram ao consumo nos estabelecimentos, se o seu trabalho era cumprir o programa da viagem turística. Estes ou outros quaisquer guias teriam que o cumprir porque assim lhes seria imposto contratualmente. Portanto, não se pode dizer que foi sua a iniciativa de levar os turistas a visitar os estabelecimentos em causa e, eventualmente, a neles efectuar compras. E para nós este elemento da vontade era essencial para preencher o elemento subjectivo do ilícito-tipo.
Por conseguinte, em nossa opinião – que também é a da sentença impugnada e a do Ministério Público – os factos não poderiam ser submetidos à previsão normativa a que se refere o art. 68º, nº2, al.a), do DL nº 48/98/M, na redacção do Regulamento nº 42/2004. O que vale por dizer que o acto impugnado no recurso padece do vício de erro sobre os pressupostos.
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2.2- Mas o recorrente também fora punido por alegadamente haver dado errada informação aos turistas a respeito da necessidade de terem que participar em excursões facultativas a fim de que pudessem ter direito ao jantar e ao alojamento na noite de 4 de Dezembro de 2007. Este seria um facto grave, evidentemente, se provado fosse.
Contudo, o que o procedimento administrativo revela e a sentença no-lo atesta no leque dos factos apurados, é que quem terá prestado tal informação teria sido uma tal B - colega do recorrente que ia noutro autocarro em direcção a Coloane com outro conjunto de pessoas do mesmo grupo de turistas (grupo que estava repartido em quatro subgrupos, cada um com o seu guia turístico e em seu respectivo autocarro com o mesmo destino comum) - ao grupo de turistas que consigo viajava.
Ora, assim sendo, patente se torna que a decisão sancionatória não pode manter-se por erro nos pressupostos de facto.
O que significa que se consideram improcedentes as conclusões XVII a XXV.
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2.3- Face ao que acaba de ser dito, o acto sancionatório não pode manter-se, tal como decidido na 1ª instância (cuja diferença apenas reside na sanção para a respectiva invalidade), sendo anulável, nos termos do art. 124º do CPA.
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IV- Decidindo
Nos termos referidos, acordam em:
a) Conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a sentença no segmento respeitante à declaração de ilegalidade das normas dos arts. 85º, nº1 e 87º, nº1 do D.L. nº 48/98/M, de 3/11, com as alterações introduzidas pelo Regulamento Administrativo nº 42/2004, de 30/12;
b) Negar provimento ao recurso na parte restante da sentença, confirmando-se a anulação do acto sancionatório nela decidida.
Sem custas.
TSI, 23 / 06 / 2011.
José Cândido de Pinho Presente
(Relator) Vítor Manuel Carvalho Coelho
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
Lai Kin Hong (com declaração de voto de vencido)
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Processo nº 440/2009
Declaração de voto de vencido
Vencido por razões já doutamente expostas na Douta sentença recorrida que louvo e subscrevo integralmente.
Ademais, dado o carácter sancionatório das normas em causa (os artºs 68º, 85º e 87º do D. L. nº 48/87/M, com a nova redacção dada pelo Regulamento Administrativo nº 42/2004), a ilegalidade dessas normas não pode ser retroactivamente sanada pelo artº 10º da Lei nº 13/2009.
RAEM, 23JUN2011
Lai Kin Hong
1 Embora, aqui e ali, diga quais as matérias que só por essa via devem ser definidas. É o que sucede com os sistemas monetário e financeiro da RAEM que, segundo o art. 107º, só pode ser definido por lei.
2 E tal podia ser feito, de um modo denso, no art. 71º do diploma.
3 Por exemplo, quando preceitua que os direitos e as liberdades de que gozam os residentes de Macau não podem ser restringidos excepto nos casos previstos na lei (art. 40º, 2º parágrafo).
4 São ainda membros do Governo: os Secretários, o Comissário contra a Corrupção, o Comissário da Auditoria, o Principal responsável pelos Serviços de Polícia e o Principal responsável pelos Serviços de Alfândega: art. 4º da Lei n. 2/1999.
5 Embora estas matérias da normação escapem por regra à função jurisdicional, a verdade é que, em certos casos, as normas regulamentares podem ser objecto de fiscalização em processos de impugnação próprios, com a finalidade de as tornar ilegais com força obrigatória geral (art.88º do CPAC).
6 Sobre o assunto: José Eduardo Figueiredo Dias, Manual de Formação de Direito Administrativo de Macau, 2009, pag. 165 e sgs. Também o Código de Procedimento Administrativo de Macau, anotado e comentado, de L. Ribeiro e J. C. de Pinho, pag. 57 e sgs. Ver ainda, Ac. do TUI de 18/07/2007, Proc. nº 28/2006 e do TSI de 13/12/2008, Proc. nº 223/2005.
7 Art. 15º: “O Chefe do Executivo exerce as competências previstas na Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau e noutras leis ou regulamentos administrativos”; Art. 16º: “O Governo exerce as competências previstas na Lei Básica da Região Administrativa e Especial de Macau e noutras leis ou regulamentos administrativos”.
8 Embora haja quem se manifeste contra esta forma de atribuição de poderes: “não pode uma atribuição genérica envolver só por si o exercício de determinada competência ou a utilização de determinados instrumentos ou formas constitucionais” (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição anotada, 3.ª edição, p. 514). Outros sustentam o contrário: Vieira de Andrade, ordenamento jurídico administrativo português, in Contencioso Administrativo, Braga, 1986, p. 65 e seg, Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra, Coimbra Editora, Tomo II, 2006, p. 724 e segs., Paulo Otero, in O Poder de Substituição em Direito Administrativo, Lisboa, Ed. Lex, p. 571 e segs. e Legalidade e Administração Pública, Coimbra, Almedina, 2003, p. 455 e segs. e 733 e segs.
9 Neste sentido, Agustin Gordilho, na obra Tratado de Derecho Administrativo, Parte General, Tomo I, “Los órganos del Estado”, Capítulo XII-6; Jorge Miranda, Orgãos do Estado, pag. 254 do Dicionário Jurídico da Administração Pública.
10 Art. 40º, 2º parágrafo: “ Os direitos e as liberdades de que gozam os residentes de Macau não podem ser restringidos excepto nos casos previstos na lei.(…)”
11 Importa ter presente que as sanções para as infracções administrava em caso nenhum podem ser restritivas da liberdade pessoal, sendo certo por outro lado que ao infractor são assegurados direitos de audiência e de defesa, nos termos do art. 6º, nº1, do DL nº 52/99/M: Regime Geral das Infracções administrativas e respectivo procedimento).
12 Foi ao abrigo do seu poder legislativo que o Governador de Macau dessa época assim legislou.
13 O acórdão do TUI nº 28/2006, de 18/07/2007, chegou à mesma conclusão nos seguintes termos: “…não resulta de nenhum preceito da Lei Básica que os regulamentos administrativos não possam estabelecer deveres ou restrições sobre os particulares. De acordo com o artigo 40.º, o que os regulamentos não podem é impor restrições aos direitos fundamentais, a que se refere o Capítulo III da Lei Básica e aos direitos previstos nos Pactos mencionados naquele artigo 40.º, matéria que deve constar de lei. Assim, desde que a matéria não esteja reservada à lei da Assembleia Legislativa, nada obsta a que regulamentos possam estabelecer deveres ou impor restrições sobre os particulares”. E mais adiante: “O Chefe do Executivo pode aprovar regulamentos apenas com fundamento na Lei Básica, fora das matérias reservadas à lei pela Lei Básica e sem prejuízo do princípio da prevalência da lei (o regulamento não pode contrariar os actos normativos de força hierárquica superior, designadamente, a Lei Básica, as leis, nem os princípios gerais de Direito, incluindo aqui os de Direito Administrativo)”.
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