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Processo nº 569/2008
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 23 de Junho de 2011
Descritores: Contrato de arrendamento
Contra-promessa de compra e venda do locado

SUMÁRIO:
Se durante a vida de um contrato de arrendamento não tiver ficado provado que, por comunicação do senhorio, o arrendatário deixaria de pagar-lhe as rendas e que todas as questões relativas ao locado seriam tratadas directamente com o promitente-comprador da fracção, pode dizer-se que o arrendatário não cumpriu uma das suas obrigações, que é o pagamento da renda ao locador.
Processo nº 569/2008



Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM


I- Relatório

A, moveu contra B, e C, todos com os demais sinais dos autos, acção de despejo de fracção autónoma do R/C destinada a comércio, no prédio sito na Zona dos Aterros do Porto Exterior, lote …, com os nºs ...... a …… da Av. Dr. Sun Yat Sem, nºs … a … da Av. 24 de Junho, nºs … a … da Av. Sir Anders Ljungstedt e nºs … a … da Rua Cidade de Braga.
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Foi a seu tempo proferida sentença que julgou procedente a acção e condenou os réus B e D, herdeira do entretanto falecido C, a pagarem à autora a importância de HK$126.500,00, correspondente a Mop$ 130.548,00, acrescida de juros moratórios.
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É dessa sentença que ora vem o presente recurso jurisdicional interposto pelo réu B, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

a) O presente recurso vem interposto da douta sentença do Tribunal Judicial de Base, que decidiu julgar a acção especial de despejo procedente por provada e, em conformidade condenar os Réus nos termos constantes da referida decisão e que ora se dá por integralmente reproduzida para todos os legais efeitos.
b) Tal decisão teve por base os factos considerados provados pelo douto Tribunal a quo e que se transcreveu supra para todos os efeitos.
c) O presente recurso cinge-se unicamente com a questão das rendas reivindicadas, ou seja, pretende-se discutir aqui se são devidas rendas pelo período de Maio de 2001 a Março de 2002.
d) O Tribunal a quo andou mal já que não analisou convenientemente os factos considerados assentes e provados em sede de julgamento, porquanto segundo um dos factos provados os Réus decidiram, em conjunto com a Adquirente, restituir o imóvel dos autos antes da outorga da escritura pública em causa, com a condição de não pagarem as rendas em causa.
e) Dos factos provados resulta que os Réus foram comunicados pelo representante da Companhia de Construção e Investimento XXX, Limitada - que viria a adquirir o imóvel em causa, juntamente com mais duas fracções autónomas contíguas à fracção objecto do contrato de arrendamento de que tudo o que se relacionasse com o locado passaria a ser directamente tratado por esta companhia.
f) Com base neste pressuposto decidiram entregar o imóvel em causa e, em contrapartida, foi-lhes perdoado a divida em compensação da entrega do imóvel em causa.
g) Ao não reconhecer este facto o tribunal a quo viola directamente o princípio da liberdade contratual e ainda as normas dos artigos 838º e 839º do Código Civil.
h) Importa, por isso, delimitar i) a partir de que momento é que a Autora deixou de ser parte do referido contrato de arrendamento, em virtude da alienação da fracção em causa, e ii) quais as implicações inerentes ao facto de ter mandatado a promitente adquirente de negociar a rescisão do contrato em causa.
i) A partir do momento em que Autora mandatou uma terceira pessoa para negociar a resolução do contrato de arrendamento, pessoa essa que agiu na qualidade de compradora do imóvel em causa e portanto interessado directo, não tem direito nem legitimidade para requerer o pagamento das rendas nos termos em que o faz.
j) Se quiser pedir responsabilidade terá de o fazer junto dos representantes da XXX Limitada e não dos ora réus.
l) Se a referida sociedade adquirente do imóvel abusou ou não do seu mandato, é facto que cabia à Autora alegar e provar - contudo não o fez, não podendo os Réus serem prejudicados pelo não cumprimento dos ónus de alegação e da prova que legalmente cabem a Autora.
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O autor da acção, por seu turno, apresentou contra-alegações, as quais concluiu do seguinte modo:
a) Pretende, agora, o R. recorrente alterar a matéria de facto assente, com base na prova alegadamente produzida em audiência de julgamento. Mal, salvo o devido respeito.
b) A matéria que o recorrente pretenderia dar como assente foi devidamente quesitada nos art.ºs 3º, 4º e 5º da base instrutória, sendo que, no entanto, os RR. não lograram fazer prova da mesma.
c) A A. é estranha a qualquer acordo formulado entre os RR. e a Companhia de Construção e Investimento XXX Lda., seja em que data este acordo tenha sido formulado.
d) As questões que o R. recorrente ora pretende discutir, ou não resultaram assentes das respostas aos quesitos 3º, 4º e 5º, ou não constavam da respectiva redacção nem da de qualquer outro quesito da base instrutória.
e) A A. só deixou de ser proprietária do imóvel dos autos em 22 de Junho de 2003, data em que o contrato de arrendamento já atingira o seu termo (31 de Março de 2002).
f) Razão pela qual, e bem, o Tribunal condenou os RR. no pagamento das rendas vencidas e não pagas até àquele termo.
g) A decisão recorrida não merece, pois, na perspectiva da A., o menor reparo.
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Cumpre decidir.

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II- Os Factos

A sentença deu por assente a seguinte factualidade:

1. Por contrato celebrado em 4 de Fevereiro de 1999, a A. deu de arrendamento aos RR., cedendo-lhes o respectivo gozo temporário, a fracção autónoma do R/C, designada por “F/R/C”, para comércio, do prédio situado na Zona dos Aterros do Porto Exterior, Lote …, com os nºs …… a …… da Av. Dr. Sun Yat-Sen, nºs … a … da Av. 24 de Junho, nºs … a … da Av. Sir Anders Ljungstedt e nºs … a … da Rua Cidade de Braga, prédio este inscrito na matriz predial da freguesia da Sé sob o n.º 7XXXX.
2. O arrendamento em causa tinha por finalidade a instalação no locado de uma “discoteca/bar”.
3. O contrato, de duração limitada, foi celebrado pelo prazo de 3(três) anos, com início no dia 1 de Abril de 1999 e termo no dia 31 de Março de 2002.
4. A renda estipulada para os dois primeiros anos do contrato foi de HKD$10,000.00 e, para o terceiro ano do contrato, estipulou-se um aumento de 15% sobre este montante, isto é, no montante de HKD$11,500.00.
5. Estas rendas deveriam ser transferidas para a conta da A. junto do “Hongkong & Shanghai Banking Corporation Limited” com o n.º 001-07XXXX-XXX, no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que respeitasse; tudo nos termos do contrato de arrendamento que se junta.
6. O imóvel já foi restituído ao seu legitimo proprietário.
7. Por escritura de 22/05/2003, a Companhia de Construção e Investimento XXX, Lda, adquiriu a propriedade da fracção referida na alínea A) da matéria de facto assente.
8. Desde o mês de Maio do ano de 2001, deixaram os Réus de pagar à Autora as rendas devidas pelo contrato de arrendamento.
9. Os RR., interpelados pela A. para o fazer, não pagaram as rendas dos meses de Maio de 2001 até 31 de Março de 2002.
10. Antes de Outubro de 2001, aos Réus foram comunicados pelo representante da Companhia de Construção e Investimento XXX, Lda, de que tudo o que se relacionasse com o locado passaria a ser directamente tratado pela esta companhia bem como a intenção de rescindir o contrato assinado com a Autora, tendo os Réus aceite a proposta e restituído o imóvel àquela Companhia após o Natal de 2001.
11. Nessa altura, ficou acordado entre os Réus e a Companhia que os Réus abdicavam de todas as benfeitorias e equipamentos instalados no imóvel e, em contrapartida, as rendas em causa consideravam-se como totalmente pagas.
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Adita-se o seguinte facto, resultante de documento apresentado em audiência, a cuja junção não foi deduzida oposição, e cujos conteúdo e veracidade não foram impugnados:
12- Em 14 de Janeiro de 2002 a autora A celebrou um contrato-promessa de compra e venda com a Companhia de Construção XXX, Limitada da fracção aludida em 1 (fls. 89 dos autos e apenso “traduções”).
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III- O Direito
O despejo inicialmente peticionado ficou prejudicado pelo facto de a A. ter limitado a sua pretensão à condenação dos RR nas rendas vencidas e não pagas, em virtude de ter deixado de ser proprietária da referida fracção (ver tréplica e doc. fls. 65).
A causa de pedir concernente à resolução do contrato de arrendamento vinha preenchida com factualidade demonstrativa da falta de pagamento de rendas, concretamente as vencidas entre Maio de 2001 e Janeiro de 2002.
Na contestação, o R., porém, invocou que a partir de meados de 2001 a A. tinha deixado de ser proprietária do local arrendado e que lhe comunicara que a partir dessa data os mesmos seriam contactados pelo representante da nova proprietária e, por essa razão, tudo o que respeitasse ao locado seria tratado com a adquirente do espaço. Acrescentou ainda o R. que a nova proprietária lhe havia comunicado que não pretendia renovar o contrato de arrendamento na data do seu termo, circunstância que teria levado ambos a encetarem negociações com vista à devolução do arrendado, o que teria vindo a concretizar-se em Outubro de 2001.
A base instrutória levou os principais factos ao questionário, mas a prova não foi satisfatória ao objectivo dos RR. Na verdade, não ficou demonstrado que a A. lhes tivesse comunicado a realização venda em meados de 2001 e que desde essa data tudo seria tratado com a adquirente do locado.
Provado, sim, ficou que a compra apenas se deu apenas em 22/05/2003, mas que já em 14/01/2002 (fls. 89 dos autos e apenso “traduções”) a compradora celebrara uma promessa de compra e venda com a proprietária A. Verdade também é que o representante desta empresa comunicou antes de Outubro de 2001 aos RR que a partir de então tudo o que se relacionasse com o locado seria tratado com esta. Mas há entre este circunstancialismo e o que era descrito pelos RR uma grande diferença, como veremos já de seguida.
Com efeito, o que os RR arguiram na contestação, e agora de novo reiteram, é que a restituição do locado foi convencionado com a adquirente e que a partir da devolução não mais pagariam rendas. Mas a este facto comum, outro tinham aduzido de enorme importância: o de que esta convenção tinha a “bênção”, por assim dizer, da autora. Ou seja, para os RR a partir de meados de 2001 a sua relação contratual com a autora terminava e outra começava com a adquirente “Companhia de Construção e Investimento XXX, Lda”. Qual o significado desta alegação?
Se uma das obrigações do locatário é o pagamento da renda ao locador (arts. 969º e 983º, al.a), do CCM), imediatamente se vê que, com tal invocação, os RR tencionavam demonstrar a existência de matéria escapatória àquela obrigação relativamente à outra parte no binómio relacional. Os RR estariam fora da mira da disposição legal em relação à Autora, na medida em que ela mesma que, por causa da venda, se teria afastado da relação locatícia. Esta circunstância, a ser verdadeira, evidentemente, daria cobertura à tese dos RR, segundo a qual estariam desobrigados em relação à primitiva locadora. E do mesmo modo estariam livres de mais pagamentos, desta vez em relação à adquirente, uma vez provado o “acordo compensatório” a que se refere o ponto do art. 11º da matéria de facto provada.
Mas a sorte da prova não bafejou os RR, por duas razões:
a) Em primeiro lugar, por se ter provado que a A. não se sentiu desligada da relação contratual estabelecida com os RR. Tanto assim que os interpelou para o pagamento das rendas dos meses de Maio de 2001 a 31 de Março de 2002 (resposta ao quesito 2º da base instrutória). Trata-se de uma matéria factual claramente adversa à tese dos RR e que visa demonstrar que a relação contratual entre ambos estava de pé.
b) Em segundo lugar, por a matéria de facto trazida por eles - de que a A. teria comunicado que as questões do locado seriam tratadas com a empresa XXX, lda – ficou por provar (ver resposta ao quesito 10º).
Ora, estes dois elementos eram decisivos. Na verdade, por eles ficar-se-ia a saber que, através de contrato, tinha havido uma sucessão da figura do locador (e então parava aí a responsabilidade entre primitivos locador e locatário).
Ou então levar-nos-ia a admitir, noutra perspectiva, que a comunicação da A. podia ter em vista uma forma de avisar os devedores (RR) de que a prestação devia ser feita em seu nome, mas à empresa XXX, como seu representante ou como pessoa autorizada a recebê-la (art. 759º do Cod. Civil), circunstância que ainda caberia no art. 760º, al.a), do mesmo Código. Mas, a falta de prova dessa comunicação pela autora impede qualquer um desses exercícios.
Neste sentido, não acompanhamos a posição dos ora recorrentes segundo a qual a A. teria mandatado uma “terceira pessoa para negociar a resolução do contrato de arrendamento, pessoa essa que agiu na qualidade de compradora do imóvel em causa e portanto interessado directo” (conclusão i das alegações). Aliás, esta asserção contém uma contradição: a terceira pessoa ou era mandatada para agir em nome alheio, ou agia como compradora e, portanto, com interesse directo e em nome próprio. As duas qualidades juntas é que não nos parece que sejam possíveis. De resto, não podia ainda agir como compradora, uma vez que nessa altura ainda apenas tinha prometido comprar (a compra somente se verificou em Maio de 2003). E a título de “representação” também não era possível, simplesmente porque nenhum facto se provou a esse respeito. É muito claro para nós que não se pode falar em mandato a favor da A. Pode, aliás, extrair-se do ponto 10 da matéria de facto que o “representante” de que ali se fala é o representante da “Companhia de Construção e Investimento XXX, Lda” e não da Autora.
Assim sendo, a matéria que consta dos pontos 10 e 11 dos factos provados não tem qualquer efeito liberatório do arrendatário em relação ao locador, por traduzir um acordo estranho a este.
E será que a situação não encaixa na previsão do art. 760º, al. c), do Cod. Civil?1 Se na ocasião em que o acordo foi firmado (pontos 10 e 11 citados) a empresa XXX, Lda era promitente-compradora do imóvel, será que a aquisição posterior através da celebração da escritura de compra e venda não representa a extinção da obrigação ali prevista?
A nosso ver não, por uma única razão: É que a norma em causa faz depender a extinção da obrigação de dois factores:
- Um, é a prestação ter sido feita à empresa (e nós já vimos que os RR nada chegaram a pagar à referida empresa). Admitimos que esta condição possa ser arredada no caso em apreço, se tivermos em consideração que os RR não efectuaram a prestação ao terceiro pelo acordo a que ambos chegaram (ponto 11 da matéria de facto). Nesse caso, dir-se-ia que o acordo, até por maioria de razão, faria extinguir a prestação. Todavia, para tal, seria necessário que funcionasse o segundo factor de que falaremos já de seguida;
- Outro, é o terceiro ter adquirido o crédito. Realmente, percebe-se bem o alcance da causa extintiva prevista na norma, uma vez que o pagamento é feito a um terceiro que virá a ser credor do pagador (v.g. sucessão, transmissão entre vivos, cessão da posição contratual, arrematação, adjudicação, etc). Acontece que este terceiro (Companhia XXX, ldª) quando comprou o bem (Maio de 2003) já a relação contratual entre A e RR tinha terminado. Ou seja, a compra e venda do imóvel já não incluía a relação contratual antes estabelecida e foi feita liberta de qualquer carga obrigacional, livre da relação de inquilinato que unia os RR ao anterior proprietário.
De resto, a comunicação que consta do facto 10 não tem nenhuma consequência no plano da relação contratual entre arrendatário e senhorio por outra razão: É que o promitente-comprador não podia liberar o arrendatário da sua obrigação do pagamento das rendas se o próprio documento em que promete comprar (ver fls. 89 dos autos e apenso “traduções”) diz claramente na cláusula 5 que o promitente vendedor, o senhorio, tem uma acção interposta contra o inquilino por causa de rendas não pagas e que só entregaria a loja 30 dias após a sentença. Quer dizer, o promitente-comprador sabia que não podia desonerar o arrendatário da obrigação das rendas através de nenhum acordo que não incluísse a promitente vendedora.
Significa que o caso não se subsume à previsão do art. 760º, al.c).
Os RR não pagaram as rendas a XXX. E mesmo que o tivessem feito, nem por isso ficavam desonerados do pagamento à locadora, porque esse pagamento sempre seria feito a terceiro sem legitimidade para receber2, porque tal legitimidade só adviria em Maio de 2003, altura, porém, em que o contrato já tinha cessado entre as partes iniciais.
Sendo assim, porque o recorrente não cumpriu a sua obrigação de locatário nos termos acima aludidos, deve concluir-se que a sentença fez boa leitura dos factos provados e correcta aplicação do direito.
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IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
TSI, 23 / 06 / 2011.

José Cândido de Pinho (Relator)
Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)

Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)


1 Segundo o qual: “A prestação feita a terceiro não extingue a obrigação, excepto… se quem a recebeu houver adquirido posteriormente o crédito”.
2 Galvâo Teles, Obrigações, 3º, pag. 173
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