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 Processo nº 377/2011 Data: 14.07.2011
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “emissão de cheque sem provisão”.
Cheque “pós-datado”.




SUMÁRIO

1. O cheque é pagável à vista, considerando-se não escrita qualquer menção em contrário.

2. Não obsta à verificação da condição da sua punibilidade a circunstância de o cheque ter sido entregue ao portador e apresentado a pagamento antes da data nele aposta como sendo a da emissão.


O relator,

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José Maria Dias Azedo

Processo nº 377/2011
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão do T.J.B. de 29.04.2011 decidiu-se:

- absolver o arguido A da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de “emissão de cheque sem provisão (de valor consideravelmente elevado)”, p. p. pelo art. 214°, n.° 1, n.° 2, al. a), e art. 196° al. b) do C.P.M.; e,
- condenar o mesmo arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de “emissão de cheque sem provisão” p. p. pelo art. 214° n.° 1 do Código Penal de Macau, na pena de 7 meses de prisão suspensa na sua execução por 1 ano e 6 meses, condenando-se também o dito arguido no pagamento de HKD$600.000,00 ao ofendido B; (cfr., fls. 107-v a 108 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado, o Ministério Público recorreu.
Motivou para, a final, produzir as conclusões seguintes:

“1. Em 26 de Dezembro de 2005, o arguido A pediu empréstimo de HKD$500.000,00 à vítima e emitiu a esta um cheque com valor nominal de HKD$500.000,00 e com a data de emissão em 30 de Junho de 2006 como garantia de pagamento. Mas quando a vítima apresentou o cheque a pagamento no Banco Luso Internacional em 12 de Junho de 2006, foi devolvido o cheque por falta de provisão.
2. O tribunal colectivo absolveu o arguido do “crime de emissão de cheque sem provisão e de valor consideravelmente elevado” porque “a vítima apresentou o cheque n.° 415082 no valor de HKD$500.000,00 ao banco em 12 de Junho de 2006, mas a data de emissão do cheque é 30 de Junho de 2006, ou seja que quando a vítima apresentou o referido cheque ao banco, no sentido penal, ainda não expirou o dever do arguido de garantir o pagamento do cheque”.
3. Mas de facto, de acordo com os artigos 1239.° e 1240.° do supracitado Código, o cheque é pagável à vista e é um tipo de título imediato. O cheque apresentado a pagamento antes do dia indicado como data de emissão é pagável no dia da apresentação. Esta característica de “pagamento à vista” do cheque é o que distingue-o de outros títulos (tais como letra de câmbio ou livrança, para as quais existe a possibilidade de pagamento pós-datado). Aqui também é completamente excluída a possibilidade de cheque pós-datado (que tem como a data de emissão um dia no futuro).
4. Apesar de o arguido indicar na entrega do cheque à vítima um dia em seis meses depois como data de emissão, isso não afecta a promessa e a confiança que o sacador deu à vítima após a emissão do cheque. O cheque é um instrumento de crédito. Ao passar um cheque, o sacador só encarrega o banco de pagar uma certa verba ao tomador quando o cheque for apresentado a pagamento, e o sacador garante com o seu crédito que o tomador seja pago, pelo que o sacador tem de assegurar que há fundo suficiente depositado na sua conta durante o prazo de apresentação a pagamento. Se o tomador apresente o cheque a pagamento antes do dia indicado como data de emissão, este dia será considerado como dia de pagamento, e se for insuficiente o fundo depositado, será constituído o crime de emissão de cheque sem provisão. E só assim é que pode mostrar a intenção do legislador de acabar com as condutas perigosas do agente de passar cheque quando sabe bem da falta de provisão, prejudicando o interesse do tomador e a ordem financeira.
5. Segundo os factos provados constantes do acórdão, podemos ver que ao emitir o cheque, o arguido já sabia da falta de provisão na sua conta, mas ainda emitiu o cheque à vítima, além disso, até aos dias 12 de Junho de 2006, quando a vítima apresentou o cheque a pagamento, e durante todo o inquérito e a audiência de julgamento, a vítima não podia entrar em contacto com o arguido, e o arguido não manifestou a sua vontade de depositar dinheiro na sua conta. Por outro lado, a consumação do crime de emissão de cheque sem provisão exige apenas o dolo genérico do sacador, ou seja que o dolo genérico já existiu enquanto o arguido tinha consciência da falta de provisão ao passar o cheque, ademais, o arguido neste processo nunca procedeu ao respectivo depósito.
6. Por serem reunidos os requisitos constitutivos do ilícito penal (OU seja a emissão de cheque e o conhecimento da falta de provisão na conta) e serem satisfeitas as condições de punibilidade (o cheque é apresentado a pagamento no prazo legal mas não pode ser pago por falta de provisão), ao abrigo dos dispostos no art.° 214.°, n.° 1 e n.° 2, al. a), e no art.° 196.° al. b) do Código Penal de Macau, o Ministério Público entende que é de julgar procedente a acusação do arguido da prática dum crime de “emissão de cheque sem provisão e de valor consideravelmente elevado”.
Por isso, o Ministério Público entende que o acórdão do tribunal colectivo do TJB violou o disposto do crime de emissão de cheque sem provisão e de valor consideravelmente elevado previsto no art.° 214.0 n.° 2 al. a) do Código Penal de Macau, e tinha erros na interpretação e aplicação da lei, pelo que o Tribunal da Segunda Instância deve julgar procedente o presente recurso, declarar que as condutas do arguido de emitir o cheque n.° 415802 com valor nominal de HKD$500.000,00 constituem um crime de emissão de cheque sem provisão e de valor consideravelmente elevado, p. p. pelo art.° 214.°, n.° 1, n.° 2, al. a) e art.° 196.°, al. b) do Código Penal de Macau, e condenar o arguido na pena de prisão não inferior a 1 ano. Em concurso com um outro crime de emissão de cheque sem provisão condenado pelo tribunal a quo (na pena de prisão de 7 meses, com suspensão da execução por 1 ano e 6 meses), condena-se o arguido na pena de prisão de 1 ano e 3 meses, com suspensão da execução por 2 anos”; (cfr., fls. 112 a 118-v e 130 a 148).

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Sem resposta, vieram os autos a este T.S.I.

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Em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“O problema que se coloca, “in casu”, é o de saber se um cheque, apresentado a pagamento e devolvido antes da data aposta no mesmo como de emissão, se encontra criminalmente protegido - ou, por outras palavras, se se verificam, em tais circunstâncias, as respectivas condições de punibilidade.
A questão em apreço foi, outrora, largamente controvertida em Portugal (face, naturalmente, a regulamentação idêntica).
E mostra-se cabalmente dilucidada na decisão recorrida e na motivação do recurso.
Daí que nos limitemos, aqui e agora, a manifestar a nossa adesão à tese do nosso Exm° Colega.
Essa tese, aliás, segundo cremos, foi maioritariamente sufragada pela Jurisprudência portuguesa (cfr., entre outros, acs. do STJ, de 19-11-86, 01-06-88 e 04-10-89, Bols n°s. 361-269, 378-226 e 390-110 respectivamente).
A perspectiva de sinal contrário, de qualquer modo, não deixou de ser significativa (cfr., nomeadamente, acs. da R. Porto, de 24-2-88, 12-4-89 e 30-1-91, procs. n°s, 6844, 7837 e 10930, da 3ª secção).

No âmbito da(s) pena(s), entretanto, afigura-se-nos que este Tribunal deve abster-se de proceder ao cúmulo jurídico com a pena imposta pelo outro crime de emissão de cheque sem provisão, sendo certo que o arguido foi julgado à revelia e não se mostra ainda notificado da respectiva condenação.

Este o nosso parecer”; (cfr., fls. 163 a 164).

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Cumpre decidir

Fundamentação

Dos factos

2. Estão dados como provados os seguintes factos:

“1. Em 26 de Dezembro de 2005, na cidade de Zhuhai, o arguido A pediu empréstimo à sua amiga, ou seja a vítima B, HKD$500.000,00 em numerário sob o pretexto de enfrentar dificuldades na circulação de fundos do negócio.
2. Na altura, o arguido A preencheu, assinou e entregou um cheque do Banco Luso Internacional à vítima B como garantia de reembolso, prometendo reembolsar a vítima das verbas na data de expiração do cheque.
3. O número do cheque é 415082, o montante é de HKD$500.000,00 e a data de emissão é 30 de Junho de 2006.
4. Em 12 de Janeiro de 2006, na cidade de Zhuhai, o arguido alegou que precisava de mais fundos, pedindo de novo empréstimo de HKD$100.000,00 à vítima. A vítima acreditou que o arguido tinha capacidade de reembolsar as verbas, pelo que concordou com o pedido do arguido, emprestando-lhe HKD$1 00.000,00 em numerário.
5. Na altura, o arguido também preencheu, assinou e entregou um cheque do Banco Luso Internacional à vítima como garantia de reembolso, prometendo reembolsar a vítima das verbas no valor de HKD$600.000,00 na data de expiração do cheque.
6. O número do cheque é 415001, o montante é de HKD$100.000,00 e a data de emissão é 12 de Junho de 2006.
7. Chegou o dia de reembolso combinado, pelo que em 12 de Junho de 2006, a vítima dirigiu-se ao Banco Luso Internacional e apresentou os dois cheques acima referidos a pagamento.
8. No mesmo dia, ou seja em 12 de Junho de 2006, o Banco Luso Internacional não pagou os dois cheques por falta de provisão e devolveu-os à vítima.
9. Ao passar os dois cheques acima referidos, o arguido sabia bem da falta de provisão na sua conta para o pagamento dos cheques, mas ainda os passou com a intenção de apropriar-se de bens alheios.
10. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente ao praticar as condutas acima referidas, e sabia bem que tais condutas eram proibidas e punidas por lei.
De acordo com o CRC, o arguido é delinquente primário”; (cfr., fls. 104-v a 105 e 152 a 154).

Do direito

3. Vem o Exmo. Magistrado do Ministério Público recorrer do segmento decisório ínsito no Acórdão do T.J.B. com o qual se absolveu o arguido A da imputada prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de “emissão de cheque sem provisão” (de valor consideravelmente elevado), p. p. pelo art. 214°, n.° 1, n.° 2, al. a), e art. 196° al. b) do C.P.M..

Atenta a motivação e conclusões de recurso, constata-se que a questão a apreciar consiste em saber se punível é o cheque sem provisão mesmo que apresentado a pagamento antes da data nele inscrita.

E, adiantando-se desde já a solução que nos parece adequada, cremos que de sentido afirmativo deve ser a resposta; (neste sentido, e em situação idêntica, cfr., a declaração de voto junta ao Acórdão deste T.S.I. de 16.12.2008, Proc. n.° 710/2008).

Com efeito, e como salientam L. Henriques e S. Santos (in “C.P.M. Anot.”, página 615 e 616), “tudo se conjuga para o entendimento de que foi essa a intenção do legislador – isto é, punir o cheque sem provisão mesmo que apresentado a pagamento antes da data nele aposta.
Só assim se poderão harmonizar as razões determinantes da punição com o carácter do ilícito, marcadamente de perigo presumido ou abstracto (isto é: não se torna necessário que o sacador emita o cheque para prejudicar os beneficiários e assim a circulação do cheque como meio de pagamento e moeda boa para o realizar, sendo suficiente o perigo de lesão de interesse digno de tutela jurídica para que, presumidamente, se consuma o crime de emissão de cheque sem provisão).
Assim, o cheque é pagável à vista, considerando-se como não escrita qualquer menção em contrário.
O cheque apresentado a pagamento antes do dia indicado como data da emissão é pagável no dia da apresentação (art. 28° da Lei Uniforme).
É que os cheques não são documentos de constituição da dívida ou da garantia de incumprimento de obrigações. Eles traduzem sempre uma ordem de pagamento dada pelo sacador ao banco sacado que só a pode recusar na falta ou insuficiência de fundos (art. 3° da Lei citada).
E deve cumprir essa ordem no dia da apresentação mesmo que anterior seja, isto é, mesmo que seja antes do dia indicado como data da emissão.
É sempre um meio de pagamento que como tal a lei acautela e defende no interesse do tomador e do geral e comum pela fé publica que o cheque tem de ter para preenchimento da sua função jurídico-económica”.

De facto, se o “cheque é pagável à vista” (isto é, logo que apresentado a pagamento), “considerando-se como não escrita qualquer menção em contrário”, e sendo também que o interesse jurídico que com a incriminação tutela o art. 214° do C.P.M. não é apenas o patrimonial dos tomadores ou beneficiários, mas antes o interesse público e geral de circulação do cheque como meio de pagamento para preenchimento dos fins da redução da circulação fiduciária da moeda e saída de fundos do sistema bancário, (o que não obsta à incriminação o conhecimento antecipado do tomador de que o cheque não tem provisão), adequada nos parece a solução que se deixou adiantada.

Nesta conformidade, há pois que se revogar o segmento decisório objecto do presente recurso, que absolveu o arguido ora recorrente da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de “emissão de cheque sem provisão (de valor consideravelmente elevado) ” p. p. pelo art. 214° n.° 1 e n.° 2 do Código Penal de Macau, ficando pois o mesmo também condenado por tal crime.

Quanto à pena, vejamos.

Ao crime em questão cabe a pena de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias.

Atenta a factualidade provada à supra referida moldura penal, ponderando-se no estatuído no art. 65° do C.P.M. quanto aos critérios para a fixação da pena assim como no preceituado no art. 40° do mesmo Código quanto aos “fins das penas”, crê-se que adequada é a pena de 1 ano e 6 meses de prisão.

Considerando-se ainda que o arguido foi julgado à revelia, podendo ainda recorrer do segmento decisório que o condenou pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de “emissão de cheque sem provisão” p. p. pelo art. 214° n.° 1 do Código Penal de Macau, (na pena de 7 meses de prisão suspensa na sua execução por 1 ano e 6 meses), mostra-se de acolher o doutamente opinado pelo Ilustre Procurador Adjunto no sentido de não se efectuar, por ora, o cúmulo jurídico das penas parcelares em questão, devendo ser tal matéria, oportunamente, (após trânsito em julgado), decidida pelo T.J.B..

Nada mais havendo a apreciar, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam julgar procedente o recurso.

Pagará o recorrido a taxa de justiça de 6 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$900.00.

Macau, aos 14 de Julho de 2011

  José Maria Dias Azedo
  Tam Hio Wa
  Chan Kuong Seng (vencido, porque estando provado em primeira instância que o cheque n.º 415082 no montante de HKD$500.000,00 foi entregue, com a data posta aí como sendo 30/6/2006, pelo arguido à ofendida como meio de garantia do pagamento, à data de 30/6/2006, da dívida do empréstimo no mesmo valor pecuniário concedido pela ofendida ao arguido a pedido deste em 26/12/2005, a falta de provisão na conta desse cheque antes da data acordada, entre o arguido e a ofendida, para o reembolso do empréstimo, não pode, a meu ver, fazer incriminar o arguido como autor material do crime de emissão de cheque sem provisão relativo ao dito cheque n.º 415082, por evidente falta do dolo do arguido).

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