Processo n.º 243/2009
(Recurso Laboral)
Data: 30/Junho/2011
Recorrente: S.T.D.M.
Recorrido: A
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
A, melhor identificado nos autos, patrocinado por advogado, propôs contra a Ré, "Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (STDM)", com sede na Avenida do Hotel Lisboa, 9° andar, Macau, acção para efectivação do direito ao pagamento da compensação pelo dias de descanso semanal anual e feriados obrigatórios, por si não gozados, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia MOP$1.574.707,46 e ainda no pagamento de juros vencidos e vincendos sobre tal quantia desde a citação.
Veio esta, a final, a ser condenada a pagar ao autor a quantia de MOP$928.194,02, bem como o montante de juros a contar do trânsito da sentença.
Da decisão final vem recorrer a STDM, Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L., R. alegando, em síntese:
A douta Sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base, ora posta em crise, deverá ser revista e reformulada, absolvendo-se a ora Recorrente e considerando as presentes alegações de recurso procedentes por provadas.
O presente recurso respeita à qualificação jurídica da Declaração contida no Documento n.º 1 junto com a Contestação da Recorrente, ajls. 375 dos autos.
Qualquer que seja o douto entendimento jurídico da referida Declaração,
Como Remissão de créditos ou de dívidas como entende a Recorrente,
Como Quitação com Reconhecimento Negativo de Dívida como entende o Ilustre Tribunal de Última Instância,
Ou, então tratando-se de uma transacção extrajudicial ou preventiva (artigos
1172° a 1174° do CC) como doutamente entende o Tribunal a quo,
Não existe nulidade por falta de formalismo negocial ou de formalidade do contrato em causa, porque o mesmo não tinha de ser celebrado sob a forma de escritura pública,
Não sendo, por isso, nulo nos termos das normas conjugadas dos artigos 212° e 279°, ambas do Código Civil.
A parte final do artigo 1174° e a alínea n) do número 2 do artigo 94° do Código do Notariado prevêem, ambas, que:
"A transacção preventiva ou extrajudicial deve constar de escritura pública quando dela possa derivar algum efeito para o qual a escritura seja exigida ( ... )".
Nada na Declaração de fls. 375 dos autos, na modesta opinião da Recorrente, justifica ou implica a celebração através de escritura pública, para salvaguardar algum efeito para o qual a escritura seja exigida.
A Parte final do mesmo artigo 1174° do CC e da alínea n) do número 2 do artigo 94° do CN preceituam que a transacção preventiva ou extrajudicial "( ... ) deve constar de documento escrito nos casos restantes.".
A declaração de fls. 375 contida no Documento n.? 1 da Contestação e reconfirmada pelos Documentos n. ° 3 e n. ° 4 com a mesma, provam que o ora Recorrido foi compensado pelos descansos semanais, anuais e pelos feriados obrigatórios e que,
Por outro lado, que recebido o valor referido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a Recorrente subsistia e que, portanto, em consequência nenhuma outra quantia era por ele exigível à Recorrente na medida em que nenhuma das partes devia mais qualquer outra compensação relativa ao vínculo laboral.
O Recorrido ainda recebeu outra quantia, também pela compensação e ressarcimento e indemnização dos descansos semanais, anuais e feriados obrigatórios, desta Recorrente, em outro momento do ano de 2003, por mor do processo de contravenção laboral n.? 1476/2002 que fora patrocinado pela então Direcção dos Serviços de Trabalho e Emprego, agora denominada legalmente de Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais.
Tendo recebido duas quantias pelos mesmos motivos, da Recorrente, é evidente que não podia instaurar a presente acção judicial laboral.
Pelo que, e pela procedência da excepção peremptória ou material ou substantiva de remissão ou de transacção preventiva ou extrajudicial ou quitação ou quitação com reconhecimento negativo de dívida ou pagamento, deduzi da na Contestação,
A declaração dejls. 375 é válida, eficaz, produtora de efeitos, e deverá absolver a Recorrente do pedido,Improcedendo, assim, as razões indicadas a jls. 837 dos autos, quando o Mmo Tribunal recorrido declarou que a mesma Declaração não fora celebrada segundo a forma legalmente exigida e como tal nula,
Quando o certo - salvo melhor juízo, entendimento e opinião - é que tal declaração não precisava de todo de ser celebrada através da forma solene da escritura pública.
Pelo que, quando aos demais pontos da douta Sentença recorrida posta aqui em crise pelo recurso, reenvia-se o exposto para a Contestação e,
Caso a declaração de fls. 375 dos autos seja considerada formalmente válida, produzirá os seus efeitos e absolverá a Recorrente do pedido.
O A., trabalhador, contra alega, pugnando pela manutenção do decidido, dizendo, em síntese conclusiva:
A segunda parte da "dec1aração" relativa ao "prémio de serviço" a que se refere o documento 1 da Contestação consubstancia um acto ou negócio nulo ,nos termos do disposto no art.° 287.° do Código Civil ex vi do artigo 33.° e do art.? 6.° do Decreto-Lei 24/89/M, independentemente de a relação jurídica iniciada com a Ré se ter ou não extinto com a transferência do A. para a SJM.
A segunda parte do documento de fIs. 375 não pode ser qualificada como um
contrato de remissão de créditos, por, não se verificarem no caso concreto, nenhum dos pressupostos dessa modalidade de extinção de obrigações.
Em todo o caso, sempre improcederá a excepção da extinção dos créditos por remissão na esteira dos acórdãos proferidos pelo TSI nos recursos n.? 258/2007 e n.º 270/2007 e 31312007.
Por outro lado, sempre, à luz do ordenamento juslaboral da RAEM, qualquer acto ou negócio pelo qual o trabalhador prescinda dos créditos ao salário que disponha sobre o empregador, a troco de uma determinada compensação pecuniária, consubstancia uma cedência a título oneroso dos seus créditos ao salário, pelo que o negócio a que se refere a segunda parte do documento de fIs. 375 se trata de um acto ou negócio nulo, nos termos do disposto no art.? 287.° do Código Civil ex vi dos artigos 6.° e 33.° do Decreto-Lei 24/89/M.
Mesmo que nos queiramos afastar das normas que, em concreto, regulam a matéria controvertida no caso sub judice, para procurar, outras, de sinal contrário,no sistema jurídico, mesmo assim só encontraremos normas - p.ex. o art." 707.°, n." 1, a) do CPCM e o art. 60º do Decreto-Lei n.? 40/95/M - que reforçam a solução de jure constituto estabelecida nos artigos 6.° e 33.° do "Regime Jurídico as Relações Laborais".
Em Macau, o legislador ordinário não ressalvou nos artigos 6.° e 33.° do "Regime Jurídico das Relações Laborais", nem em qualquer outra norma de outro diploma, nenhuma situação em que o empregador pudesse violar, mediante transacção, o núcleo essencial dos direitos basilares dos trabalhador à retribuição do trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas, bem como a receber remuneração nos dias feriados previsto no art. 5.°, n." 1, a) e e) da "Lei de Bases da Política de Emprego e dos Direitos Laborais".
No caso sub judice, uma interpretação no sentido da livre disponibilidade dos créditos salariais do A. na pendência de uma relação laboral na qual sucedeu à Ré uma subsidiária (SJM), sem autonomia funcional, como é próprio das relações de domínio, redunda numa manifesta injustiça, em prejuízo da correcta aplicação do direito, designadamente do disposto nos artigos 6.° e 33.° do Decreto-Lei 24/89/M à luz do ''princípio do favor laboratoris".
No que respeita à (in)disponibilidade dos créditos laborais, o legislador de Macau não copiou o legislador de Portugal, pelo que se não pode ignorar ou contornar o regime imperativo especial do actual artigo 6.° e artigo 33.° do Decreto-Lei 24/89/M, tendo que presumir-se, para efeitos da fixação do sentido e alcance da norma contida no actual artigo 33.° e artigo 6.° do Decreto-Lei 24/89/M, que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
A tese da remissão de créditos baseou-se na jurisprudência constitucional e juslaboral de Portugal formada sobre o artigo 8°, n." 4 da LCCT (DL 64-A/89, de 27/02/1989), o artigo 97.° do regime jurídico do contrato de trabalho aprovado pelo DL 49 408, de 24-11-1969 e o artigo 271.° do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.? 99/2003 de 27 de Agosto, a qual se afasta da solução de jure constituto estabelecida em Macau nos artigos 6.° e 33.° do RJRL para a questão da (in)disponibilidade dos créditos ao salário.
Mesmo em Portugal, o caso "sub judice" não seria resolvido à luz da solução
propugnada pela Recorrente por causa do disposto no artigo 378.° do actual Código de Trabalho de Portugal (Responsabilidade solidária das sociedades em relação de domínio ou de grupo), ao abrigo do qual, sempre que o empregador seja uma sociedade comercial e esteja com outra, ou outras, numa das relações acima descritas, os seus trabalhadores podem demandar, indistintamente, a sociedade empregadora ou qualquer uma dessas sociedades, a fim de obterem a satisfação de créditos laborais, já vencidos, que detenham sobre aqueles.
O objectivo desta solução foi, efectivamente, o de intensificar a garantia patrimonial de tais créditos, evitando que a inclusão do empregador em determinado tipo de coligação intersocietária redunde em prejuízo dos seus trabalhadores.
A tese defendida pela Recorrente dissolve-se na relação de domínio entre a Ré e a SJM, sendo contrária ao disposto:
- no art." 1174.° do CCM, porque o negócio subjacente à declaração não observou a forma legalmente exigida, sendo nulo ex vi do art.? 212° do mesmo diploma.
- no art." 854.° e 391.° do CCM por não se verificarem, in casu, nenhum dos
pressupostos de aplicação da figura do contrato de remissão de créditos;
- no disposto no artigo 6.° do Decreto-Lei 24/89/M interpretado à luz do princípio do tratamento mais favorável, que não consente acordos de que resultem condições de trabalho, (e.g. créditos salariais) mais desfavoráveis do que aquelas previstas nesse diploma;
- no art. 33.° do do Decreto-Lei 24/89/M, que proíbe os contratos de remissão de créditos, sem ressalva dos negócios concluídos após o termo de efectivação de funções, como agora vem propor a redacção da norma prevista no artigo 44.° da "Proposta de lei (15/08/2006) do Regime Geral das Relações de Trabalho";
- no art." 8.°, n.? 3 do CCM, porque entende que o legislador não consagrou a solução mais acertada nos artigos 6.° e 33.° do Decreto-Lei 24/89/M, nem aí soube exprimir o seu pensamento em termos adequados;
- no artigo 287.° do CCM, que comina com a nulidade os negócios contrários a disposições legais de carácter imperativo como as previstas nos artigos 6.° e 33.° do Decreto-Lei 24/89/M; e
- no art." 5.°, n." 1, a) e) da "Lei de Bases da Política de Emprego e dos Direitos Laborais" aprovada pela Lei n." 4/98/M, de 29 de Julho, o qual está inscrito numa lei de valor reforçado e visa a protecção dos direito basilares dos trabalhadores, cujas restrições apenas podem ser definidas pelo legislador ordinário, e não foram.
A sociedade dominada (SJM) não tem, de direito, autonomia funcional em relação à sociedade dominante (STDM), por isso se adere à opinião de João Zenha Martins, em artigo publicado, na revista Questões Laborais, Ano VIII - 200 I, pág. 255 onde se defende que todas as formas de agrupamento ou cooperação interempresarial ( ... ), que "apresentem possibilidades de afectação da tutela juslaboral outorgada pelo ordenamento e desfigurem as coordenadas básicas do sistema, devem ser objecto de tratamento idêntico e concitar do intérprete um esforço tendente à reposição da justiça violada".
Assim, se a SJM, mercê do seu estatuto de sociedade dominada pela Ré, não
dispõe, de direito, de autonomia funcional por estar sujeita às instruções vinculantes escritas ou orais da sociedade dominante Ré, afigura-se contrário à figura da relação de domínio existente, in casu, pressupor, como fez o Tribunal a quo, a inexistência de constrangimentos à livre manifestação da vontade negocial.
Até porque no caso "sub judice" em que há coincidência de titularidade dos
cargos de administração, nem sequer haverá propriamente instruções, já que directamente os titulares do órgão de administração imprimem a vontade (do órgão de administração) da sociedade dominante na administração da sociedade dominada.
Ainda que fosse de acolher a jurisprudência portuguesa, que, ao abrigo do artigo 8°, n.º 4 da LCCT (DL 64-A/89, de 27/02/1989), consente a disponibilidade relativa dos créditos salariais após a cessação da relação laboral, afigura-se evidente que tal entendimento não teve seguramente em vista a situação do caso sub judice, na qual o A. quando assinou as declarações de fls. 375, trabalhava para a SJM, i.e. trabalhava numa subsidiária sujeita a uma relação de domínio quase absoluto por parte da Ré.
Isto porque, por identidade de razão, procederem as mesmas razões, designadamente, os mesmos constrangimentos que obstam à disponibilidade dos créditos salariais na vigência da relação de trabalho com a sociedade dominante.
Dever-se-á, pois, apreciar a questão relativa à mencionada excepção relativa à declaração assinada pelo trabalhador, nos termos da qual se considerou pago de todas as compensações devidas.
Oportunamente, foram colhidos os vistos legais.
II - FACTOS
Com pertinência para a decisão da presente questão, resulta dos autos a factualidade seguinte:
A A. manteve uma relação laboral com a R. estabelecida em 11 de Julho de 1989.
Tal relação cessou em 21 de Julho de 2002 .
No dia 25 de Julho de 2003, o Autor subscreveu a declaração cujo teor consta de fls. 375, com o seguinte teor : “Eu, (.........) titular do BIR n.ºXXXXX recebi, voluntariamente, a título de prémio de serviço, a quantia de MOP$ 28.649,92 da STDM, referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a STDM.
Mais declaro e entendo que, recebido o valor referido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a STDM subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma, à STDM, na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral”.
III - FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso, na parte respeitante à validade e consequências da declaração assinada pela trabalhadora, nos termos da qual declarou ter recebido já as compensações devidas, passa pela análise das seguintes questões:
- Da observância da forma legal
- Da aplicação do Código Civil em detrimento do DL 87/89/M de 3/Abril
- Da natureza, validade e alcance da declaração e da disponibilidade ou indisponibilidade dos direitos
- Do princípio do favor laboratoris
- Da validade da declaração
2. A Mma juiz considerou que a dita declaração consubstanciada no documento de fls 375 era nula por falta de forma, face ao disposto no artigo 1174º do CC, porquanto do que se tratou foi de uma verdadeira transacção - e não já de uma remissão - que pôs termo ao litígio que opunha a trabalhadora à entidade patronal.
Importa então ver da natureza dessa declaração de forma a indagar se se observam ou não requisitos devidos quanto à forma da mesma.
Insurge-se a recorrente contra quem fora pedido o pagamento das compensações devidas pelo pretenso não gozo de determinados descansos (semanal, anual e feriados), durante os anos em que trabalhou para a Ré STDM, pela aplicação do artigo 854º do CC, tomada como remissão dos créditos a declaração acima referida, segundo a qual o trabalhador, aquando da cessação da relação laboral assinou uma declaração dizendo receber as quantias a que considerava com direito, mais dizendo que considerava não subsistir qualquer outro direito decorrente da relação laboral que então findava.
E por considerar que a situação não integra qualquer lacuna, já que regulada pelos artigos 1º e 33º, entre outros, do RJRL (DL24/89/M, de 3/4), não seria aplicável o regime geral que, no fundo, permite a disponibilidade dos créditos do trabalhador.
3. Antes de esmiuçar esta questão, importa caracterizar a natureza e alcance da declaração que o trabalhador assinou, para assim se ver se ela está ou não regulada no RJRL. Só se se concluir que se trata de uma renúncia de direitos indisponíveis abrangida por aquele regime se poderá afirmar a inaplicabilidade do regime geral consagrado na lei civil.
Analisando a transcrita declaração, os seus termos, em chinês e em português, são claros e o sentido que um declaratário normal - e, tal como se assinala na douta sentença recorrida, face ao disposto no artigo 228º do CC, é esse o sentido que há que relevar - dali retira é que o trabalhador, face à rescisão do contrato de trabalho, no que respeita à relação laboral subsistente até então, recebeu uma certa quantia, referente a compensações de eventuais direitos, nomeadamente relativos aos descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, aceitando que nenhuma outra quantia fosse devida.
Em linguagem simples, deu quitação da dívida.
4. Mas vem agora o trabalhador demandar outros montantes, quantitativamente muito maiores, numa desconformidade que desde logo impressiona, em relação àqueles que aceitou receber. E impressiona, porque em face de tais montantes, se não se considerava pago, face ao prejuízo que se afigurava, não devia ter assinado essa declaração.
Dir-se-á que não tinha consciência do montante dos créditos ou que foi induzido em erro; mas essa é uma outra questão que devia ter sido alegada e comprovada, não se deixando de adiantar que tal como agora ocorreu não havia razões para se aconselhar sobre o alcance dos créditos a que efectivamente teria direito.
Essa, contudo, é questão que não importa agora apreciar.
5. Nem se diga que se tratou de uma renúncia de direitos indisponíveis.
Não releva a natureza indisponível dos direitos concedidos ao trabalhador, a natureza proteccionista daquele diploma em relação a tais direitos, a necessidade de protecção da parte mais fraca, a posição dominante da concessionária empregadora, a menor margem de liberdade do trabalhador.
A protecção que deve ser dispensada ao trabalhador não pode ser absoluta nem fazer dele um incapaz sem autonomia e liberdade, ainda que aceitando os condicionamentos específicos decorrentes de uma relação laboral.
É verdade que, desde logo, o RJRL ,no seu art. 1°, pugnando pela "observância dos condicionalismos mínimos" nele estabelecidos, prevê que “O presente diploma define os condicionalismos mínimos que devem ser observados na contratação entre empregadores directos e trabalhadores residentes, para além de outros que se encontrem ou venham a ser estabelecidos em diplomas avulsos.”
E no art. 33º do R.J.R.T. ”O trabalhador não pode ceder, nem a qualquer outro título alienar, a título gratuito ou oneroso, os seus créditos ao salário, salvo a favor de fundo de segurança social, desde que os subsídios por este atribuídos sejam de montante igual ou superior ao dos créditos.”
Daqui decorre que nenhum desses artigos contempla ex professo a situação em apreço. Antes respeitam a situações diferentes, nomeadamente o artigo 33º o que prevê é a impossibilidade de renúncia a um salário e não já às compensações devidas por trabalho indevido.
Tais preceitos dispõem sobre a regulação do exercício de uma relação laboral ainda em aberto, compreendendo-se que por essa via, ao trabalhador sejam garantidos aqueles mínimos que o legislador reputa como as condições mínimas de exercício humano, digno e justo do trabalho a favor de outrem.
Tais cautelas já não são válidas quando finda essa relação, como aconteceu no caso presente.
E também não são válidas quando já não está em causa o exercício dos direitos, mas apenas uma compensação que mais não é do que a indemnização pelo não gozo de determinados direitos.
Não deixaria de ser abusivo e contrário à autonomia da vontade e liberdade pessoal, próprias do direito privado, que alguém, incluindo o trabalhador, não pudesse ser livre quanto ao destino a dar ao dinheiro recebido, ainda que a título de compensações recebidas por créditos laborais.
A não se entender desta forma, pese embora a aberração do argumento, ter-se-ia de obrigar o trabalhador a aceitar o dinheiro e, mais, importaria seguir o destino que ele lhe daria.
6. Diferentes são as coisas quando o trabalhador está em exercício de funções e a sociedade exige que as condições de trabalho sejam humanas e dignificantes, não se permitindo salários ou condições concretas de exercício vexatórias e achincalhantes, materializando a garantia da sua subsistência e do seu agregado familiar. Essa tem de ser a inspiração do intérprete relativamente ao princípio favor laboratoris, mas que não pode ir ao ponto de converter o trabalhador num incapaz de querer, entender e de se poder e dever determinar.
Nem aquele princípio, consagrado no artigo 5º do mesmo supra citado Regime nos seguintes termos “1. O disposto no presente diploma não prejudica as condições de trabalho mais favoráveis que sejam já observadas e praticadas entre qualquer empregador e os trabalhadores ao seu serviço, seja qual for a fonte dessas condições mais favoráveis. 2. O presente diploma nunca poderá ser entendido ou interpretado no sentido de implicar a redução ou eliminação de condições de trabalho estabelecidas ou observadas entre os empregadores e os trabalhadores, com origem em normas convencionais, em regulamentos de empresa ou em usos e costumes, desde que essas condições de trabalho sejam mais favoráveis do que as consagradas no presente diploma.” , poderá ter o alcance que se pretende, de limitar a capacidade negocial do trabalhador de forma tão extensa.
O princípio do tratamento mais favorável "...assume fundamentalmente o sentido de que as normas jurídico-laborais, mesmo as que não denunciem expressamente o carácter de preceitos limitativos, devem ser em princípio consideradas como tais. O favor laboratoris desempenha pois a função de um prius relativamente ao esforço interpretativo, não se integra nele. É este o sentido em que, segundo supomos, pode apelar-se para a atitude geral de favorecimento do legislador - e não o de todas as normas do direito laboral serem realmente concretizações desse favor e como tais deverem ser aplicadas"1
Noutra perspectiva2, considera-se que tratamento mais favorável ao trabalhador deve ser entendido em termos actualistas, como o conjunto dos valores que o Direito do Trabalho, de modo adaptado, particularmente defende e entre os quais, naturalmente, avulta a protecção necessária ao trabalhador subordinado. Quando haja um conflito hierárquico entre fontes do Direito do Trabalho, aplicam-se as normas que estabelecem tratamento mais favorável para o trabalhador, sejam elas quais forem; tal não se verificará quando a norma superior tenha uma pretensão de aplicação efectiva, afastando a inferior.
Donde decorre que o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador não é erigido para sufragar toda e qualquer interpretação que permita o alargamento de uma tutela proteccionista injustificada, tendo antes na sua génese a exclusão de um regime, entre dois ou mais aplicáveis, que lhe seja menos favorável.
7. Nesta conformidade falece ainda eventual invocação do artigo 6º do RJRL ”São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei”,
tendo-se como condições de trabalho, nos termos do art. 2º, al. d) todo e qualquer direito, dever ou circunstância, relacionados com a conduta e actuação dos empregadores e dos trabalhadores, nas respectivas relações de trabalho, ou nos locais onde o trabalho é prestado.
Isto porque, como se disse, já não se trata de conduta e actuação no local de trabalho e exercício de funções.
Tal é a situação dos autos, em que se mostrou cessada a relação laboral e assim se tem entendido em termos de Jurisprudência comparada.3
8. Quanto à natureza e validade da declaração.
Afastando-se, como se viu, a aplicabilidade do RJRL em relação à proibição de tal estipulação, importa atentar na natureza que assume a declaração emitida pelo trabalhador aquando da cessação da relação laboral.
Em termos gerais, a remissão de dívida traduz-se na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação, feita com o acordo do devedor.
A primeira questão que se coloca é a de saber se o documento em causa constitui realmente um contrato de remissão. Pode-se entender que a referida declaração não configura um contrato de remissão, pois que tal implicaria uma identificação e reconhecimento de créditos de que prescindiria.
Mas, o certo é que tal documento contém, pelo menos, uma declaração de quitação que, dada a sua amplitude, abrange todos os créditos resultantes da relação laboral em causa, incluindo os que eventualmente pudessem resultar da sua cessação.
A remissão é uma das causas de extinção das obrigações e traduz-se na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação que lhe é devida, feita com a aquiescência da contraparte4, revestindo, por isso, a forma de contrato, como claramente se diz no art.º 854º, n.º 1, do C.C.: "O credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor."
9. O que verdadeiramente caracteriza o contrato de remissão é a renúncia do credor ao poder de exigir a prestação que lhe é devida pelo devedor. Ao contrário do que acontece com o cumprimento (em que a obrigação se extingue pela realização da prestação devida) e ao contrário do que acontece na consignação, na compensação e na novação (em que o interesse do credor é satisfeito, não através da realização da prestação devida, mas por um meio diferente), na remissão, tal como na confusão e na prescrição, o direito de crédito não chega a funcionar. O interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indirecta ou potencialmente e, todavia, a obrigação extingue-se.5
O direito romano admitia a acceptilatio (remissão de uma obrigação verbal, mediante reconhecimento de se ter recebido a prestação, remissão que extinguia o crédito ipso jure), o pactum de non petendo (convenção pela qual o credor prometia ao devedor que não faria valer o crédito, definitiva ou temporariamente, contra todos - pactum in rem - ou contra determinada pessoa - pactum in provissem, produzindo o pacto o efeito de atribuir uma exceptio contra o crédito) e o contrarius consensus (convenção pela qual se extinguia toda uma relação obrigacional, derivada de um contrato consensual, o que só era possível se nenhuma das partes tinha ainda cumprido6
Pode-se dizer, num certo sentido que, hoje, na remisão, - artigo 854ºdo Código Civil - extinguindo-se a obrigação, o interesse do credor não se satisfaz, nem sequer indirecta ou potencialmente.
10. Mas mesmo que, ainda porventura por algum excesso de rigor formal, se considerasse que o documento em causa não pudesse ser qualificado de remissão, por se entender ser necessário que a declaração nele contida tivesse carácter remissivo, isto é, que a parte tivesse declarado que renunciava ao direito de exigir esta ou aquela concretizada prestação, não se deixará de estar sempre perante uma declaração de quitação em que se consideravam extintos, por recíproco pagamento, ajustado e efectuado nessa data, toda qualquer compensação emergente da relação laboral, o que vale por dizer que todas as obrigações decorrentes do contrato de trabalho tinham sido cumpridas.
Como diz Leal Amado7., uma quitação com aquela amplitude é, sem dúvida, uma quitação sui generis, uma vez que os credores não se limitaram a atestar que receberam esta ou aquela prestação determinada. Ao declarar que recebia as compensações a determinado título e que mais nenhum direito subsistia, por qualquer forma, nada devendo reciprocamente, atestaram que receberam todas as prestações que lhe eram devidas. E essa forma de quitação, por saldo de toda a conta, não deixa de ser admitida em direito.
Perante isto, em vez de se perguntar se o autor renunciou ao direito às prestações que eventualmente lhe seriam devidas em consequência da cessação da relação laboral, perguntar-se-á se essas prestações já se mostram realizadas ou se se mostram extintas, sendo que a resposta a esta última questão, tida como relevante, é seguramente afirmativa, perante a clareza daquela afirmação.
Na verdade, como inequivocamente decorre do teor do documento, os direitos abrangidos pela declaração emitida são os emergentes da relação contratual de natureza profissional que entre A. e Ré se manteve até àquela data.
11. Poder-se-á ainda dizer que a extinção da relação laboral acordada, tornou impossível o cumprimento da obrigação de pagamento à Autor, do que ela solicita. Daí que ele passasse a ser titular de um outro direito; tal como já se assinalou, o crédito peticionado é o crédito à indemnização devida pelo incumprimento das obrigações que decorreram para a entidade patronal de lhe garantir os aludidos repousos enquanto para ele trabalhou.
Esta perspectiva afigura-se particularmente relevante.
É que não se trata da disponibilidade de direitos, mas sim da compensação pela sua não satisfação.
Pelo contrato havido e comprovado, no âmbito do qual foi emitida aquela declaração, as partes acordaram sobre o montante de indemnização ou "compensação" devida à Autora e, com o recebimento dessa quantia, a correspondente obrigação da Ré, surgida em substituição da obrigação inicial, extinguiu-se pelo pagamento de que a A. deu total quitação, sendo legítima a transacção extrajudicial sobre o conteúdo ou extensão de obrigação da Ré nos termos do artigo 1172º do CC, não abrangida já por qualquer indisponibilidade.
12. Anota-se ainda que no aludido documento, para além de que não se deixaram de concretizar a que título ocorreu o acerto final, quais as compensações a que se procedia, deu-se até quitação de todas e eventuais prestações não abrangidas por aquele recebimento.
Tem-se até noutros casos invocado o argumento de o trabalhador se encontrar em notória situação de inferioridade e dependência ao assinar o recibo, pelo que, não manifestando qualquer vontade negocial, não terá tomado uma opção livre e consciente, uma escolha livre no tocante à assinatura da referida declaração, estaríamos perante uma situação de erro vício previsto no artigo 240º do CC, face à indução da conduta pela entidade pública tutelar e viciação da vontade, por temor, vista a continuação numa sociedade subsidiária da primeira empregadora.
Trata-se, no entanto, de questão que não é colocada.
13. Não se deixa de referir que esta interpretação, não obstante algumas divergências, não tem deixado de ser acolhida nos Tribunais de Macau, conforme parte da Jurisprudência do TSI e a Jurisprudência do TUI.8
Assim se conclui pela não existência dos apontados vícios, não sendo de manter a douta decisão proferida, o que prejudica necessariamente o recurso final.
14. Estamos, pois, em condições de concluir que o referido documento assume uma natureza de quitação e de remissão abdicativa pela qual ficou claro que o trabalhador renunciava a quaisquer direitos emergentes da relação laboral que então cessava.
Não se deixará ainda de referir que não só não se vê razão para considerar estarmos perante uma transacção como pretende a Mmma Juiz, enquadrável no art. 1174º do CC, como ainda, a considerar esse entendimento, não se vê razão para que o mesmo houvesse de ser celebrado por escritura pública já que a produção de efeitos dali decorrente não obriga a que se exija escritura pública, contentando-se essa declaração negocial com a forma escrita, tal como ocorreu e sendo que nem sequer o contrato principal ( o contrato de trabalho) tem de revestir tal forma.
15. Assim, concluindo, relevando-se o documento de fls 375, como se releva, procedente deve ser julgada a excepção peremptória invocada, vista a renúncia expressa e relevante de quaisquer créditos sobre a Ré por parte do A.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, nos termos e fundamentos expostos, acordam em conceder provimento ao recurso interposto, revogando em conformidade o decidido, julgando procedente a excepção relativa à renúncia dos créditos reclamados nos autos por parte do A., e, em consequência absolvem a Ré, STDM, dos pedidos formulados na acção pelo trabalhador A.
Custas do recurso pelo recorrido.
Macau, 30 de Junho de 2011,
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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Relator)
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Ho Wai Neng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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José Cândido de Pinho
(Segundo Juiz-Adjunto)
1 - Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, Almedina, 11.ª edição, pág. 118.
2 - Menezes Cordeiro, Direito do Trabalho, pág. 219.
3 - Acs. STJ de 20/11/03, proc. 01S4270, de 12/12/01, proc. 01S2271, de 9/10/02, proc. 3661/02
4 - A. Varela, Das obrigações em geral, Coimbra Editora, 2.ª ed., vol. II, pag. 203
5 - A. Varela - Ob. cit., pág. 204
6 - Professor Vaz Serra, BMJ 43, 57.
7 - A Protecção do Salário, pag. 225, eparata do volume XXXIX do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
8 - Acs do TUI46/07, de 27/2/08; 14/08, de 11/6/08; 17/08, de 11/6/08; TSI, proc. 294/07, de 19/7, entre muitos outros
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