Processo n.º 722/2010
(Recurso Cível e Laboral)
Data: 7/Julho/2011
Recorrente: Guardforce – Serviços e Sistemas de Segurança - Limitada
Recorrida: A
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
1. A, melhor identificada nos autos, veio instaurar a presente acção de processo comum do trabalho contra GUARDFORCE (Macau) - Serviços e Sistemas de Segurança – Limitada, com os demais sinais dos autos, pedindo a condenação da Ré a pagar ao Autor a quantia de MOP$227.591,00, acrescida de juros legais vincendos até efectivo e integral pagamento.
A acção veio a ser parcialmente procedente e condenou-se a R a pagara à A. a quantia de MOP$190.169,00 acrescida dos juros moratórios à taxa legal a contar da data da sentença.
2. Inconformada, recorre a Guardforce, alegando em sede conclusiva:
I. Vem o presente Recurso interposto do "Despacho Saneador Sentença" proferido pelo douto Tribunal a quo, que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, decidiu "condenar a ré a pagar à autora a quantia de MOP$190.169.00 (cento e noventa mil, cento e sessenta e nova patacas), acrescida de juros de mora contados à taxa legal, sobre aquela quantia, desde a data supra referida até integral pagamento."
II. O Recurso ora interposto versa sobre matéria de facto e de direito.
III. Os factos alegados pela Autora nos artigos 49.°, 52.° e 55.° da sua petição inicial e aceites pela Recorrente no artigo 25.° da sua contestação e, por conseguinte, confessados, não têm correspondência com os factos constantes das alíneas g) a i) da motivação de facto.
IV. A Autora naqueles artigos da petição inicial não afirma que o salário que auferia era um salário mensal, mas sim que auferia "a título de salário, a quantia de MOP ... , mensal"
V. No artigo 64.° da sua contestação a Ré, ora Recorrente, afirma "Por outro lado, é pacífico que a Autora era remunerada pela Ré em função das horas que trabalhava - isto é - determinado em função do período de trabalho efectivamente prestado (...)".
VI. Resulta também das cláusulas dos contratos individuais de trabalho que o salário da autora não era um salário mensal, ao contrário do que resultou provado na decisão recorrida.
VII. É diverso falar-se em salário mensal e em pagamento de um salário num determinado valor mensal que pode ser fixado ou de acordo com o resultado efectivamente produzido ou com o período de trabalho efectivamente prestado.
VIII. Tendo em conta que o douto tribunal a quo deu como provados os factos constantes das alíneas g) a i) em virtude de os mesmos terem sido aceites pelas partes, os mesmos deverão ter a exacta redacção dada pela Autora nos artigos 49°, 52° e 55° da petição inicial e aceites pela Ré no artigo 25° da sua contestação, a qual corresponde à redacção constante nos contratos individuais de trabalho que o douto Tribunal a quo deu como assentes.
IX. Face ao supra exposto resulta que os factos constantes das alíneas g) a i) da matéria provada foram incorrectamente julgados.
X. O douto Tribunal a quo, remetendo para a fundamentação constante do despacho proferido a fls. 170 a 175 dos autos, qualificou o contrato de prestação de serviços celebrado entre a Recorrente e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau como um contrato a favor de terceiros, e com base nesta qualificação, condenou a Ré, ora Recorrente, a pagar à Autora a quantia global de MOP190,169.00.
XI. No contrato a favor de terceiros o benefício do terceiro nasce directamente do contrato e não de qualquer acto posterior, ao que acresce que a obrigação do promitente é a de efectuar uma prestação e não celebrar outro contrato.
XII. O que resulta do contrato celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau é que esta se comprometia a recrutar determinado número de pessoas para virem a ser contratadas pela Ré para lhe prestarem determinada actividade manual ou intelectual mediante o pagamento de determinada retribuição e outras condições.
XIII. Para que o contrato celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau pudesse ser qualificado como um verdadeiro contrato a favor de terceiro, sempre seria necessário que resultasse dos autos a intenção dos contratantes de atribuir directamente à Autora (terceira beneficiária) um crédito ou uma vantagem patrimonial, de tal modo que esta adquirisse o direito à prestação prometida de forma autónoma, por via directa e imediata do contrato, podendo, por isso, exigi-la do promitente.
XIV. O contrato de prestação de serviços celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Limitada, não produz quaisquer efeitos na esfera jurídica da Autora, que do mesmo não é parte, e por não o conhecer nunca lhe criou qualquer expectativa de vir a ser beneficiária do mesmo.
XV. Veja-se entendimento do douto Tribunal de Segunda Instância proferido no Acórdão 1026/2009 de 15 de Dezembro de 2009, processo em tudo semelhante ao dos presentes autos: "[…] Voltando ao caso dos autos a Ré/Recorrente é parte do referido contrato de prestação de serviços, mas o Autor (...) desta acção não é parte do mesmo, como talo contrato não o vincula, por força do disposto no artigo 400°/2 do CCM (correspondente ao artigo 406°/2 do CC de 1996), que prescreve: "2. Em relação a terceiros o contrato só produz efeitos nos casos e termos especialmente previstos na lei." (...) tal contrato não é convenção colectiva de trabalho, muito menos acordo tipo que vincula os trabalhadores (...) Aliás, o contrato de trabalho individual assinado pelo Autor, em lado nenhum remete para o contrato de prestação de serviços celebrado entre a Ré e o terceiro [ ... ]"
XVI. Não sendo a Autora parte do contrato de prestação de serviços celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, para que o mesmo pudesse produzir efeitos na sua esfera jurídica havia que afastar o princípio "res inter alias acta aliis neque nocet neque prodest", enquadrando-o num dos "casos especialmente previstos na lei" (artigo 400°, n.º 2 do CC), como seja, o contrato a favor de terceiros, o que como se alegou não poderá proceder.
XVII. Afastada que está a figura do contrato a favor de terceiro, a pretensão da Autora terá necessariamente que falecer, conforme argumentação expedida no despacho proferido a tis 170 a 175 dos autos.
XVIII. O despacho n° 12/GM/88 não tem uma natureza normativa e de cariz imperativo e as suas disposições não afectam a relação laboral estabelecida entre Recorrente e Recorrida porquanto o mesmo cuida, tão somente, do procedimento administrativo conducente à obtenção de autorização para a contratação de trabalhadores não residentes, e não do conteúdo concreto da relação laboral a estabelecer entre os trabalhadores não residentes e as respectivas entidades patronais.
XIX. Atenta a natureza jurídica do Despacho não poderá o mesmo coarctar a liberdade contratual das partes, e gerar na esfera jurídica de qualquer delas direitos ou deveres que não tenham sido livre e reciprocamente acordados.
XX. Assim como, não o pode, pelas mesmas razões, o Despacho do Secretário para a Economia e Finanças emitido ao abrigo e no seguimento das normas procedimentais estabelecidas no referido Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro.
XXI. Das condições administrativas exigidas pela Região Administrativa Especial de Macau, relativamente à contratação de mão-de-obra estrangeira não resulta a imposição de contratar nestes ou noutros termos, não tendo qualquer reflexo na relação contratual de trabalho celebrada entre o A. e o Recorrente, pois dali não resultam imperativos legais para a entidade patronal e/ou empregador de contratar em determinados termos.
XXII. Só com base no contrato de trabalho celebrado entre as partes é que a Autora poderia reclamar da Recorrente quaisquer eventuais direitos, mas esse contrato foi integralmente cumprido pela Recorrente.
XXIII. Nestes termos, a sentença recorrida incorre no vício de erro na aplicação do direito, por violação do disposto nos artigo 400º e 437º do Código Civil.
XXIV. Andou mala douto Tribunal a quo ao condenar a Recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 17º, n° 6 al. a), do Decreto-lei 24/89/M, no pagamento da quantia de MOP$5.327,00 pela prestação de trabalho em dia de descanso semanal.
XXV. Não obstante a periodicidade do pagamento do salário ser mensal, a verdade é que o seu quantum do salário da Autora era determinado de acordo com as horas de trabalho efectivamente prestadas.
XXVI. As cláusulas relativas ao salário dos contratos juntos com a petição inicial como documentos 6 e 7 não são típicas dos contratos cuja retribuição é fixada e calculada mensalmente, mas sim para contratos cuja retribuição é calculada por hora, sendo que das mesmas não consta o horário de trabalho a cumprir pela Autora, mas antes que para um período determinado de horas é garantido uma determinada quantia, donde se conclui que o salário se baseia no preço hora. Das referidas disposições contratuais, devidamente conjugadas com as regras da experiência comum, e no uso da legais artes, teria necessariamente de se considerar como provado que o salário da Autora era estabelecido por referência ao preço hora, ou seja, ao trabalho efectivamente prestado.
XXVII. A decisão ora em recurso ao concluir que o salário auferido pela Autora se tratava de um salário mensal incorre em erro notório na apreciação da prova.
XXVIII. Julgando esse Venerando Tribunal de recurso que os contratos de trabalho celebrado entre a Recorrente e a Autora se tratam de contratos com pagamento à hora, deverá igualmente o douto acórdão a proferir estabelecer que o montante da remuneração a pagar pela prestação de trabalho em dia de descanso semanal, resultará de um acordo a celebrar entre a Autora e a Recorrente, com observância dos limites que decorram dos usos e costumes, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 6 do artigo 17.º do Decreto - Lei n.º 24/89/M, de 03 de Abril, e consequentemente ser a Recorrente absolvida do pagamento da compensação pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal, porquanto a Autora já recebeu os montantes acordados com o empregador.
XXIX. Mesmo que assim não se entenda, e que se considere que o salário auferido pela Autora é um salário mensal, o que não se concede, e afastada que está a classificação do contrato de prestação de serviços como um contrato a favor de terceiro, e por isso insusceptível de criar direitos na esfera jurídica da Autora, o calculo da compensação deverá ter por base o estipulado nos contratos de trabalho, ou seja, MOP$66.66 por cada dia de trabalho, ascendendo assim o montante da compensação a quantia de MOP$3,133.02.
XXX. A sentença ora em Recurso violou o disposto nos artigos 400º e 437º do Código Civil e bem assim o disposto no artigo 17º do Decreto lei 24/89/M de 3 de Abril.
Nestes termos, entende, deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, em consequência, ser a decisão ora em recurso revogada, e a final, substituída por outra que julgue a presente acção improcedente por não provada e absolvida a Ré, ora recorrente do pedido
3. A A. contra-alega, defendendo a improcedência do recurso e pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
4. Foram colhidos os vistos legais.
II - FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
“a) a Autora é trabalhadora não residente.
b) A ré, com vista à contratação da autora como sua trabalhadora, acordou com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Limitada o seguinte:
"Considerando que o Governo de Macau, por Despacho do SAEF autorizou a Guardforce (Macau) Limitada (adiante designada por 1.ª outorgante) a admitir novos trabalhadores vindos do exterior;
Nos termos do Despacho acima mencionado e do Despacho n.º 12/GM/88, a 1.ª outorgante e Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Ltd. (adiante designada por 2.ª outorgante), celebram o presente contrato que integra as seguintes cláusulas e termos que ambas as partes se obrigam reciprocamente a cumprir pontual e integralmente:
1. Recrutamento e cedência de trabalhadores.
A pedido da 1.ª outorgante, a 2.ª contratou a prestação de mão-de-obra oriunda da ... num total de ... trabalhadores, com idade compreendida entre os 18 e os 60 anos, boa saúde e bom comportamento, os quais são por este contrato cedidos à 1.ª outorgante, por um período de 1 ano ....
2. Despesas relativas à admissão.
A 2.ª outorgante responsabiliza-se pelas despesas de selecção e inspecção médica dos trabalhadores a contratar, assim como pelas formalidades relativas à sua saída dos países acima referidos por seu turno a 1.ª outorgante fica responsável pelas despesas relativas á obtenção dos correspondentes títulos de identificação de trabalhadores não-residentes, bem como pelas despesas com a vinda daqueles para Macau.
3. Remuneração dos trabalhadores.
3.1. Os trabalhadores a que se refere o presente contrato auferirão salário idêntico ao nível médio dos salários praticados para desempenho equivalente, num mínimo de $90,00 patacas diárias, acrescida de $15,00 patacas diárias por pessoa, a título de subsídio de alimentação.
3.2. O salário será pago pela 1.ª outorgante directamente a cada trabalhador.
3.3 .....
3.4. Além das retribuições já mencionadas, cada trabalhador terá direito a um subsídio mensal de efectividade igual ao salário de 4 dias, sempre que no mês anterior não tenha dado qualquer falta ao serviço.
4. Horário de trabalho e alojamento.
4.1. O horário de trabalho é de 8 horas diárias, a prestar durante o período fixado pela 1.ª outorgante, sendo a prestação de trabalho extraordinário remunerado de harmonia com o disposto na legislação do trabalho em vigor em Macau para os operários residentes.
4.2. Os trabalhadores terão direito a faltar durante dez dias por ano para poderem visitar os seus familiares nos países acima referidos.
4.3. Se a 1.ª outorgante interromper a laboração por um período superior a 5 dias, por falta de encomendas ou de energia, será obrigada a pagar ao trabalhador a partir do 6° dia, a remuneração base diária de $90,00 pelo período que durar aquela interrupção.
4.4. ....
4.5 .....
5. Assistência.
5.1 ….
5.2 ….
5.3 ….
6. Deveres dos trabalhadores.
Os trabalhadores objecto do presente contrato estão sujeitos aos seguintes deveres:
a) ....
7. Serão causas de cessação do trabalho e imediato repatriamento:
a) ....
8. Outras obrigações da 1.ª outorgante.
9. Provisoriedade.
9.1. A 1.ª outorgante declara que a autorização de permanência ao seu serviço dos trabalhadores objecto do presente contrato foi concedida a título precário, podendo ser cancelada a qualquer tempo pelo Governo de Macau, caso em que devolverá à 2.ª outorgante, no prazo que lhe for indicado, o número de trabalhadores para o qual deixe de ter autorização bastante ou aquele cuja permanência no Território seja pela via competente declarada como indesejável.
9.2 .....
10. Repatriamento.
10.1. Verificando-se que, por qualquer motivo, alheio ao 1.ª outorgante, não é possível a continuação da prestação do serviço por parte dos trabalhadores, a 2.ª outorgante responsabiliza-se pelo repatriamento dos mesmos para os países acima referidos suportando a 1.ª outorgante as despesas relacionadas com a deslocação e, bem assim, o pagamento do subsídio de compensação cujo montante será reciprocamente acordado entre ambos os outorgantes.
10.2. O repatriamento a que se refere o presente contrato será da responsabilidade da 2.ª outorgante que se compromete a efectivá-lo imediatamente.
11. Prazo do Contrato
11.1. Sem prejuízo do disposto no precedente no n.º 9.1., o presente contrato terá duração de 1 ano renováveis por igual período, mediante acordo das partes interessadas e precedendo acordo do Governo do Território, a obter até 30 dias antes do seu termo.
11.2. Não se verificando a sua renovação, o presente contrato caduca no seu termo ficando a 2.ª outorgante responsável pelo repatriamento para os países acima referidos dos trabalhadores, e sendo as despesas com essa deslocação suportadas pela 1.ª outorgante.
11.3. Este contrato vigorará desde a data da sua aprovação e até à data em que se extinguir a primeira validade do título de identificação de trabalhador não-residente, emitido pelas Forças de Segurança de Macau (Corpo de Polícia de Segurança Pública de Macau).
12. Disposições Finais.
12.1. Quaisquer litígios ou questões emergentes da sua execução, serão decididos por uma comissão arbitral, composta por 3 membros, sendo dois escolhidos por cada um das partes e o 3.º designado pelos árbitros de parte, a qual decidirá de acordo com a equidade.
12.2 .....
c) Por assim terem acordado, entre 3 de Junho de 1997 e 31 de Maio de 2008, a autora esteve ao serviço da ré, exercendo funções de guarda de segurança.
d) Trabalhando sob as ordens, direcção e fiscalização da ré.
e) Nos termos e condições entre ambas acordados e que constam dos documentos juntos com a petição inicial sob os nºs 5 a 11, os quais se dão aqui por reproduzidos (facto provado por acordo e nos termos do disposto nos arts. 368º e 370º do Código Civil).
f) Entre Julho de 1997 e Março de 1998, como contrapartida da actividade prestada, a ré pagou à autora, a título de salário, a quantia mensal de MOP 1800,00.
g) E nos meses de Abril de 1998 a Fevereiro de 2005 a ré pagou à autora o salário mensal de MOP 2 000,00.
h) E nos meses de Março de 2005 a Fevereiro de 2006 a ré pagou à autora o salário mensal de MOP 2100,00.
i) E nos meses de Março de 2006 a Dezembro de 2006, a ré pagou à autora o salário mensal de MOP 2288,00.
j) Entre 4 de Junho de 1997 e 30 de Junho de 1999 a autora trabalhou 12 horas por dia, tendo a ré remunerado as 4 horas diárias de trabalho extraordinário, num total de 3032, a MOP 9,30 por cada hora.
k) Entre Julho de 2002 e Dezembro de 2002 a autora prestou 520 horas de trabalho extraordinário que a ré lhe retribuiu a MOP 10,00 por cada hora.
1) Entre Janeiro de 2003 e Fevereiro de 2005 a autora prestou 3818 horas de trabalho extraordinário que a ré lhe retribuiu a MOP 11,00 por cada hora.
m) Entre Março de 2005 e Fevereiro de 2006 a autora prestou 1760 horas de trabalho extraordinário que a ré lhe retribuiu a MOP 11,30 por cada hora.
n) Durante os 4017 dias que trabalhou para a ré, nunca esta lhe pagou qualquer quantia a título de subsídio de alimentação.
o) A autora nunca deu qualquer falta ao serviço remunerada sem conhecimento e autorização prévia da ré, durante a relação laboral, não lhe tendo a ré pago qualquer quantia a título de subsídio de efectividade.
p) Na versão original do contrato celebrado entre autora e ré foi convencionado que pela prestação de trabalho em dia de descanso semanal a autora seria remunerada pela ré nos termos fixados pela lei de trabalho de Macau e nas versões posteriores do mesmo contrato foi acordado que todas as condições seriam reguladas de acordo com a lei de trabalho de Macau.
q) Entre 17 de Julho de 2000 e 30 de Junho de 2001 a autora não gozou qualquer dia de descanso semanal e, além do salário em singelo, não recebeu qualquer compensação por ter trabalhado nos referidos dias de descanso semanal nem lhe foi proporcionado qualquer dia de descanso compensatório.
r) A autora prestou voluntariamente trabalho nos dias de descanso semanal.”
III - FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passa pela análise das seguintes questões:
- Do julgamento da matéria de facto e da falta de correspondência entre os factos confessados e dados como provados;
- Enquadramento jurídico da relação laboral estabelecida entre as partes.
- Regime jurídico aplicável ao caso
- Valor do contrato celebrado entre a Ré e e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau. Lda, enquanto empresa fornecedora de mão-de-obra não residente
- Determinação dos montantes em dívida
2. A recorrente vem dizer que os factos alegados pela Autora nos artigos 49.°, 52.° e 55.° da sua petição inicial e aceites pela Recorrente no artigo 25.° da sua contestação e, por conseguinte, confessados, não têm correspondência com os factos constantes das alíneas g) a i) da motivação de facto.
A Autora naqueles artigos da petição inicial não afirma que o salário que auferia era um salário mensal, mas sim que auferia "a título de salário, a quantia de MOP ... , mensal"
Isto, porque a Ré, ora Recorrente, defende que a Autora era remunerada pela Ré em função das horas que trabalhava - isto é - determinado em função do período de trabalho efectivamente prestado e não por um salário mensal.
Isto, porque é diferente falar em salário mensal de recebimento de uma determinada quantia por mês a título de salário.
É verdade que é diferente e não se nega essa falta de coincidência entre o alegado e o consignado como assente.
Só que essa factualidade não pode deixar de ser interpretada globalmente com todos os outros elementos de facto, importando, no fundo, concluir se estamos perante um salário mensal ou pago em função do trabalho efectivamente prestado.
E quanto a este ponto, na esteira do entendimento que tem sido tomado em situações paralelas por este TSI1, entende-se que estamos perante um contrato em que a remuneração era feita com base num salário mensal, só assim se compreendendo a quantia fixa paga por longos e repetidos meses, não se compreendendo tal rigidez remuneratória se estivesse dependente do número de horas efectivamente prestadas. Como se concebe que variando o número de dias dos diferentes meses, o salário fosse o mesmo, ainda que o trabalhador prestasse serviço durante as mesmas horas por dia?
Aliás este entendimento não se deixa de colher da documentação junta aos autos, desde logo do contrato de trabalho em que o salário é estabelecido por uma determinada quantia ao mês, ainda que com correspondência a um certo número de horas por mês. Mas não deixa de ser uma quantia fixa e continuada no tempo – cfr. cláusula 2 dos contratos de trabalho.
Para além de que outros bónus e prémios não deixam de ser calculados em função do número de meses de trabalho.
Para além de que, como bem referido na douta sentença proferida, de tudo resulta que o salário da autora não era determinado em função do período de trabalho efectivamente prestado, mas calculado ao mês, pressupondo um período normal de trabalho de 8 horas e 15 minutos diários, 215 horas mensais, 30 dias de trabalho por mês, nos quais se incluem 4 dias de descanso semanal por mês.
Falece, pois, razão á recorrente quanto a esta questão.
3.. Da qualificação jurídica
Que se tratou de um contrato de trabalho entre o A. e a Ré parece não haver quaisquer dúvidas.
Em face do artigo 1079.º do Código Civil, decorre, vista a factualidade apurada, que parece não restarem quaisquer dúvidas de que nos encontramos perante um verdadeiro e puro contrato de trabalho, em que o trabalhador, mediante uma retribuição, sob autoridade, orientações e instruções da entidade patronal, começou a trabalhar como guarda de segurança.
Dispõe o artigo 1079º do CC:
1. Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta.
2. O contrato de trabalho está sujeito a legislação especial.
4. A questão está em saber qual o regime aplicável a tal relação laboral.
Enquanto o Mmo Juiz a quo entendeu dever ser tal relação regulada apenas pelo contrato de trabalho celebrado entre o A. e Ré, defende o trabalhador ora recorrente que essa relação laboral decorre, para além do regulado nesse contrato, pelo regime legal aplicável mais favorável ao trabalhador e que decorre de um contrato celebrado entre a Ré e uma Sociedade prestadora de serviços, ao abrigo do qual o trabalhador foi contratado, ao abrigo do qual, enquanto não residente, foi autorizado a trabalhar em Macau, regime esse devidamente enquadrado por uma previsão normativa constante do Despacho 12/GM/88, de 1 de Fevereiro.
5. Importa atentar no regime da contratação dos não residentes.
Não sem que se observe que, em princípio, só em relação aos residentes há liberdade negocial. A contratação dos não residentes está condicionada a uma autorização administrativa e se é assim actualmente, também o foi no passado.
Esta nota é muito importante para a abordagem do caso vertente, na medida em que os termos e condicionamentos de uma contratação como a presente não dependem ou não podem depender por e simplesmente da vontade dos contratantes, empregador e trabalhador.
Ora, na lógica do defendido pela recorrida este condicionalismo é marginalizado.
A Lei de Bases da Política de Emprego e dos Direitos Laborais, Lei n.º 4/98/M, de 27 de Julho, publicada no BO de Macau n.º 30, I série, no artigo 9.° admite a contratação de trabalhadores não residentes quando se verifiquem determinados pressupostos, estatuindo que essa contratação fica dependente de uma autorização administrativa a conceder individualmente a cada unidade produtiva.
Por sua vez, o Regime Jurídico das Relações de Trabalho estabelecido pelo Decreto-lei n." 24/89/M, de 03 de Abril, vigente até 01 de Janeiro de 2009 (altura em que entrou em vigor a Lei n." 7/2008, Lei das Relações de Trabalho) e aprovado para definir os condicionalismos mínimos que devem ser observados na contratação entre os empregadores directos e os trabalhadores residentes, tal como resulta do seu artigo 1.º, n.º 2, esclareceu ele próprio que não seria aplicável a alguns conjuntos de relações de trabalho, entre os quais as relações de trabalho entre empregadores e trabalhadores não residentes, que seriam reguladas por normas especiais que se encontrem em vigor, nos termos do artigo 3.°, n." 3, alínea d).
Essas normas especiais foram (não se conhecem outras), até à entrada em vigor da Lei n." 21/2009 de 27.10, no dia 25 de Abril de 2010, as previstas no Despacho n." 12/GM/88 de 01 de Fevereiro, considerando que o Dec.-Lei n.º 101º/84(M, de 25 de Agosto, onde no capítulo VII se previa a contratação de trabalhadores estrangeiros, apátridas e no capítulo VIII a de cidadãos chineses provenientes da RPC, aí se regulando os pressupostos de contratação e, em relação ao primeiro grupo ainda um conjunto de princípios que deviam enformar essa contratação, em particular a não discriminação baseada na nacionalidade (artigo 51º), foi revogado pelo já referido Decreto-lei n." 24/89/M, de 03 de Abril.
6. Convém aqui fazer um parêntesis e analisar a pretensa invalidade desse despacho Despacho n." 12/GM/88 de 01 de Fevereiro, até porque é questão que vem colocada em sede de contra-alegações pela ora recorrida.
Defende-se que esse Despacho foi proferido pelo então governador no âmbito das suas funções executivas (art. 16º, n.º 2 do estatuto Orgânico de Macau - EOM - então em vigor), que a função legislativa que ao Governador então incumbia e devia ser exercida por Decreto-Lei, conforme dispunha o artigo 13º e que a regulamentação das relações laborais, ainda que com não residentes não podiam caber dentro das funções executivas e ser regulada por um simples Despacho.
Em abono da sua tese, António dos Santos Ramos, mas o que este autor refere é uma questão algo diferente e que se prende com o facto de tal despacho ser regulamentador de uma lei, na altura, o DL 101/84/M, entretanto revogado, perdendo sentido a sua eficácia regulamentar quando já não havia lei a regular. Embora seja esse mesmo autor a reconhecer que não havia outras disposições atinentes ao regime a observar na contratação dos não residentes e que ao longo dos anos foi esse diploma que enquadrou as contratações dos não residentes.2
Bom, sobre isto, o que dizer?
Muito sumariamente que, aliás como a própria recorrida reconhece, o Despacho 12/GM/88 cuida tão somente do procedimento administrativo conducente à obtenção de autorização para a contratação de trabalhadores não residentes e não do conteúdo concreto da relação laboral a estabelecer entre os trabalhadores não residentes e as respectivas entidades patronais.
Não se trata de um regime jurídico de determinadas relações laborais, antes de um prontuário procedimental a que devem obedecer as contratações de um determinado grupo de trabalhadores, traduzindo-se muitas das normas em condicionamentos e instruções dirigidas aos respectivos Serviços, não tendo ma natureza normativa instituidora de direitos e obrigações para os sujeitos da relação laboral.
As normas específicas, constantes desse Despacho normativo, vigente enquanto esteve em execução o contrato de trabalho junto aos autos, regulam o procedimento para admissão em Macau de mão-de-obra não residente, impondo, nomeadamente, à Ré, enquanto empresa empregadora, elencam as condições mínimas de contratação que estava disposta a conceder ao trabalhador não residente, para obter a necessária aprovação do Gabinete do Secretário-Adjunto para os Assuntos Económicos, mas esse Despacho nada refere quanto aos princípios, às condições, aos direitos, deveres e garantias a que fica sujeita essa relação de trabalho.
Esta questão não se coloca na actualidade uma vez que o artigo 20.° da Lei n.º 21/2009 de 27/Out. (Lei da contratação de trabalhadores não residentes) estabelece a aplicação subsidiária do regime geral das relações de trabalho aos contratos com trabalhadores não residentes (aplicação subsidiária essa que já é consentânea com a redacção do artigo 3.°, n." 3, 1) da Lei n." 7/2008, Lei das Relações de Trabalho), mas no âmbito do Despacho n.º 12/GM/88 de 01 de Fevereiro, não existia qualquer remissão para o Regime Jurídico das Relações de Trabalho estabelecido pelo Decreto-lei n.? 24/89/M, de 03 de Abril, sendo certo que este último diploma mesmo referia, como supra se consignou, que os contratos de trabalho celebrados entre empregadores e trabalhadores não residentes não seriam por ele abrangidos por estarem reguladas pelas normas especiais que se encontrem em vigor, como já acima dito.
Perante este quadro, não temos grande dificuldade em superar as críticas quanto a uma pretensa ineficácia por invalidade formal do dito Despacho, uma vez que não se trata de um diploma legislativo - no sentido estrito e formal de lei, enquanto disposição genérica provinda do órgão competente no limite da sua competência legislativa3 - e não tem razão a recorrida ao pretender ver nele força bastante para coarctar a liberdade negocial dos cidadãos pois que tal argumento não colhe pela razão simples de que a limitação e condicionamento do trabalho de não residentes em Macau resulta de diplomas legislativos próprios, sob pena de ter de se considerar que como não se podia limitar a liberdade contratual dos empregadores por essa via seria a franqueada a porta de Macau para qualquer pessoa não residente que aqui pretendesse trabalhar. Ou seja, não é esse Despacho que condiciona a admissão de não residentes. Estes não podem trabalhar, em princípio, pela razão simples de que aqui não podem residir.
Como perde alguma razão o autor citado, enquanto pretende ver no referido Despacho uma natureza regulamentadora de um outro diploma, sendo certo que tal diploma tem força autónoma relativamente aos condicionamentos e procedimentos enformadores da autorização de mão-de-obra não residente.
Temos, por conseguinte, por inabalada a eficácia do Despacho n." 12/GM/88 de 01 de Fevereiro.
7. Importa, então, apurar sobre o regime jurídico aplicável a este contrato de trabalho, sabido que o mesmo se iniciou em 3/7/97 e Fevereiro de 2006.
Não é difícil perceber que ele deve ser iluminado por um conjunto de fontes reguladoras do regime jurídico aplicável ao caso - contratação administrativamente condicionada -, a saber:
- o Despacho n." 12/GM/88 de 01 de Fevereiro;
- o contrato celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda.
- o contrato celebrado entre o A. e a Ré;
- o RJRL ( DL24/89/M, de 3/Abril), na medida em que remissivamente aplicável.
Tanto mais que está provado que a Ré foi autorizada a contratar trabalhadores não residentes, entre os quais o ora Autor, para a prestação de funções relacionadas com a actividade de segurança privada.
O que foi feito ao abrigo do artigo de um contrato de prestação de mão de obra com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda, conforme previsto nos artigos 3º, 7º, 8º, 9º do Despacho n.º 12/GM/88.
Isto é, o contrato com o A. só foi celebrado porque a Administração autorizou a celebração daquele contrato, devidamente enquadrado por um outro contrato que devia ser celebrado com uma empresa fornecedora de mão-de-obra e onde seriam definidas as condições mínimas da contratação, como flui do artigo 9º, d), d.2) do aludido despacho 12/GM/88:
“9. O procedimento para a admissão de mão-de-obra não-residente observará os trâmites seguintes:
a) O requerimento da entidade interessada será presente no Gabinete do Secretário-Adjunto para os Assuntos Económicos que despachará, mandando ouvir sobre o mesmo o Gabinete para os Assuntos de Trabalho e a Direcção dos Serviços de Economia, ou determinará a prestação dos esclarecimentos que julgue convenientes;
b) O Gabinete para os Assuntos de Trabalho e a Direcção dos Serviços de Economia pronunciar-se-ão sobre o pedido no prazo de 10 dias úteis;
c) Obtidos os pareceres referidos na alínea anterior, será proferido despacho que decidirá da admissão solicitada, determinando à requerente que, em caso afirmativo, faça presente o contrato de prestação de serviços com entidade habilitada como fornecedora de mão-de-obra não-residente, tal como previsto no n.º 7;
d) O contrato será remetido ao Gabinete para os Assuntos de Trabalho, a quem compete verificar e informar se se encontram satisfeitos os requisitos mínimos exigíveis para o efeito, designadamente os seguintes:
d.1. Garantia, directa ou indirecta, de alojamento condigno para os trabalhadores;
d.2. Pagamento do salário acordado com a empresa empregadora;
d.3. Assistência na doença e na maternidade;
d.4. Assistência em caso de acidentes de trabalho e de doenças profissionais;
d.5. Repatriamento dos trabalhadores considerados indesejáveis. (Os deveres mencionados em d.3. e d.4. serão obrigatoriamente garantidos através de seguro);
e) Fornecidos os elementos de informação referidos na alínea anterior será proferido despacho que decidirá da aprovação das condições de contratação dos trabalhadores não-residentes, fazendo remeter o processo ao Comandante das Forças de Segurança de Macau;
f) O Comandante das Forças de Segurança de Macau proferirá despacho, determinando lhe seja presente a lista nominativa dos trabalhadores a recrutar, e decidindo, posteriormente, sobre a sua entrada e permanência no Território.”
É assim que as condições previstas no aludido contrato ganham força, sendo, como é óbvio, vista a natureza da relação laboral e os contornos administrativos a que é sujeita, que as condições de trabalho menos favoráveis para o trabalhador, resultantes do contrato de trabalho entre este e o empregador, hão-de ceder necessariamente perante as resultantes do contrato celebrado entre o empregadora e a empresa fornecedora mão-de-obra, condição decorrente da autorização de relação laboral em causa.
É certo que o contrato de trabalho, como negócio jurídico obrigacional, se baseia na autonomia privada, a qual engloba para além da liberdade de celebração, a liberdade de estipulação. Como ensina Pedro Romano Martinez, “como em qualquer negócio jurídico, as partes têm, liberdade de conformar as regras contratuais aos interesses que pretendem prosseguir. Todavia, no domínio laboral, a liberdade de estipulação contratual encontra-se limitada; a especial protecção do trabalhador, que o Direito do Trabalho pretende conferir, leva a que, frequentemente, se condicione a liberdade das partes na conformação das regras contratuais, até porque, não raras vezes, a situação factual de desigualdade entre as partes potenciaria o estabelecimento de regras desfavoráveis para o trabalhador”.
Razões estas, se não apodípticas, observáveis na nota preambular do referido Despacho n.º 12/GM/88, em que para além da contemplação dos interesses protagonizados pela defesa da mão-de-obra local e dos protagonizados pelos interesses empresariais se sublinhou o seguinte:
“Da parte do Governador há ainda a considerar um terceiro aspecto da questão, que é o de não consentir no Território situações que contendam com o padrão mínimo, ou que como tal seja aceite pela consciência social, relativamente às condições de alojamento da população trabalhadora, Entendeu-se assim que Q solução do problema passava por uma clara destrinça. entre as situações de emprego dos residentes, estas reguladas pela lei aplicável entre empregador e empregado como sujeitos autónomos de direitos e obrigações, e as situações de emprego de não-residentes, que, ao contrário das primeiras, traduzirão um vínculo de contrato de prestação de serviços com terceiras entidades. Estas tem que se responsabilizar pelo alojamento dos trabalhadores ocasionais e pelo pagamento dos salários que lhes sejam devidos, bem como pelo seu repatriamento quando os considerem dispensáveis. Fica claro, de qualquer forma, que esses trabalhadores ocasionais não têm qualquer direito de permanência em Macau. Nem de outra forma seria possível avançar, como é firme propósito do Governador, em defesa dos interesses dos trabalhadores residentes no Território. Para tal, estes hão-de constituir uma massa determinada, com peso específico próprio.
Nesta primeira fase, tal defesa consiste na regulação das condições de oferta do mercado, pedindo que os trabalhadores sob custódia de uma terceira entidade contratados por via de contrato de prestação de serviços possam constituir-se numa pressão que resulte em prejuízo dos trabalhadores residentes, quer no que diz respeito à estabilidade do emprego, quer no que diz respeito ao nível dos salários. E trata-se, é bom que se diga, de uma solução que se aceita a titulo experimental, determinada pela extrema complexidade da matéria e pela urgência que havia em dar-lhe encaminhamento. Por isso, aliás, se introduz por via do simples despacho, aproveitando a feliz circunstância de não parecer que algum normativo de grau superior a tal se oponha.”
Torna-se assim mais claro o enquadramento que deve presidir ao estabelecimento do regime jurídico da relação em apreço e que passa pela aplicação das normas mais favoráveis que de qualquer um dos contratos em referência resulte, até em nome do princípio do favor laboratoris, entendido este como um princípio geral do Direito do Trabalho, entendido este com assento na concepção das opções legislativas pro operario e não como derrogando as regras imperativas da interpretação das normas decorrentes do Direito Civil.4
8. Reafirmamos que a força da vinculação a tal regime resulta das normas condicionantes da autorização de trabalho, administrativamente contempladas. Isto é, só o trabalho prestado naquele condicionalismo seria autorizado. Donde, tais cláusulas, previstas nesse contrato serem condição de concessão de autorização de trabalho para aquela situação em concreto.
Não se pode proceder a uma análise desgarrada desse enquadramento e desse condicionalismo, donde, repete-se, o regime jurídico aplicável resultar desse acervo clausulado.
Mas, mesmo numa perspectiva de direito obrigacional puro, importa atentar na figura do contrato a favor de terceiro, como instituto aplicável ao caso..
Desde logo, o que impede, em termos meramente de autonomia privada e de liberdade contratual, que alguém assuma perante outrem a obrigação de dar trabalho a um terceiro, mediante certas condições e estipulações. Sinceramente que não nos ocorre nenhum obstáculo.
Estamos perante um contrato a favor de terceiro quando, por meio de um contrato, é atribuído um benefício a um terceiro, a ele estranho, que adquire um direito próprio a essa vantagem.5
Esta noção está plasmada no artigo 437º do CC, aí se delimitando o objecto desse benefício que se pode traduzir numa prestação ou ainda numa remissão de dívidas, numa cedência de créditos ou na constituição, transmissão ou extinção de direitos reais.
O objecto imediato do contrato a favor de terceiro pode ter, na verdade, diversa natureza jurídica e os mais diferentes conteúdos económicos, bastando que a aquisição pelo terceiro seja de um benefício ou de uma vantagem.6
A razão excludente da configuração de um contrato a favor de terceiros, na tese do Mmo Juiz a quo, parece-nos algo limitativa.
Porque a obrigação assumida consiste numa prestação e não na celebração de um contrato, tal enquadramento não caberia ao caso.
Não estamos certos desta aparente linearidade.
A Ré compromete-se com uma dada Sociedade a dar trabalho ao A. e assume o compromisso de o fazer em determinadas condições.
Sinceramente que não vemos onde não exista aqui a assumpção de uma prestação, qual seja a de dar trabalho a A, a de contratar com ele e a de lhe pagar X.
Prestação é a conduta a que o devedor está obrigado ou seja o comportamento devido, na expressão lapidar de Pessoa Jorge.7
Ora o facto de a Ré ter assumido a obrigação de dar trabalho, tal não é incompatível com uma prestação de contratar, relevando aí a modalidade de uma prestação de facere. Uma prestação de facto, na verdade, pressupõe o desenvolvimento, em prol do credor, de determinada actividade e pode até traduzir-se numa prestação de um facto jurídico quando as actividades desenvolvidas são jurídicas.8
As coisas, postas assim, tornam-se agora mais claras e o instituto em referência mais se encaixa no nosso caso.
Nem o facto de a Ré se ter comprometido a celebrar um contrato exclui o enquadramento que se persegue.
O benefício para o terceiro está, como bem se alcança, não só na chance de obter trabalho (para mais enquanto não residente) e das utilidades e vantagens materiais que daí decorrem para o trabalhador, parte terceira nesse contrato, bem como das condições que a Ré se compromete a observar em benefício do trabalhador.
Aliás, esta possibilidade de acopulação entre o contrato primitivo e o contrato de trabalho posteriormente celebrado entre A. e Ré resulta como uma decorrência das obrigações primitivamente assumidas. É a primeira relação contratual, a relação de cobertura, que origina e modela a segunda relação, a relação entre o promitente e o terceiro.9
Ora, nada obsta que desta relação entre o promitente e o terceiro, para além do assumido no primitivo contrato entre o promitente e o promissário, nasçam outras obrigações como decorrentes de um outro contrato que seja celebrado entre o promitente (Ré, empregadora) e o terceiro (A., trabalhador).10
Esta aproximação encontramo-la também em Pires de lima e A. Varela, enquanto anotam que “o artigo 443º(leia-se 437º) trata não só dos casos em que todo o contrato estabelecido a favor de terceiro, como daqueles em que o contrato ou negócio a favor de terceiro se insere no contexto de um outro contrato, ao lado dele, sem prejuízo de um e outro se integrarem unitariamente na mesma relação contratual. É o que sucede, por exemplo, na doação ou no legado com encargo a favor de terceiro que pode ser um direito de preferência sobre a coisa doada ou legada, ou ainda na instituição de uma fundação com encargo a favor de pessoa ou pessoas determinadas.”11
Nem se diga, argumento invocado nas alegações da recorrente, que esta posição contraria o sufragado por este Tribunal quando chamado a decidir sobre a excepção relativa à competência do Tribunal, nos termos da qual a ré propugnava pelo cometimento ao tribunal arbitral.
Como nessas decisões já se afirmou, configurar uma ou mais cláusulas do referido contrato, estranho ao trabalhador, como estipuladas a favor de terceiro (neste caso o A.), daí não decorre que essa qualificação se projecte, sem mais, sobre todo o contrato (cfr. art. 400.°, n.º 2 e 437º, n.º 1 do Código Civil).
O Código Civil, no artigo 438.°, n.º 1, dispõe que "O terceiro a favor de quem for convencionada a promessa adquire direito à prestação, independentemente de aceitação"
Ora o direito que se estabelece traduz-se num concreto direito à prestação, independentemente de aceitação; nada mais.
Nem outros direitos a favor de outrem estabelecidos no contrato, muito menos deveres, encargos ou sujeições integrarão a esfera jurídica do terceiro a favor de que tenha sido concretamente instituído um determinado direito.
Para além de que será de entender que essa cláusula compromissória de competência abrange apenas a relação de cobertura ou de provisão entre o promitente e o promissário e não já relação provisionada entre o promitente e o terceiro, ou a relação de valuta entre o promissário e o terceiro.
9. Estamos, pois, em condições de projectar no caso os valores reclamados com base naquele contrato celebrado entre a Ré e a dita Sociedade, aliás, nos termos previstos e condicionados pela necessária autorização administrativa, normativamente enquadrada.
Antes da análise dos cálculos efectuados, apenas uma referência quanto à aplicação do RJRL.
Pretende-se em certas posições e decisões até que nos têm chegado que esse regime seria supletivo do regime contratualizado.
Mas não é preciso, pelo menos no presente caso, pelo menos por ora, enveredar por aí, tecer engenho interpretativo, porquanto vem comprovado nos autos que na relação estrita e directa estabelecida entre a empregadora e o trabalhador, face aos contratos celebrados e juntos aos autos, vista a cláusula 24, em todos os outros termos e condições não expressamente ali previstas seriam reguladas de acordo com o regime legal laboral comum, ou seja, ao tempo, o Dec.-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril.
E os direitos peticionados foram-no em relação aos períodos em que os próprios contratos remetiam para a lei laboral de Macau.
10. Quanto às fórmulas de compensação dos descansos não gozados, considerando que se trata de matéria mais do que analisada e decidida na Jurisprudência deste TSI, vamo-nos remeter para a Jurisprudência quase uniforme deste Tribunal, com a redacção que foi dada no recente acórdão deste TSI, no proc. n.º 780/2007, de 31 de Março de 2011, onde aquela uniformidade sofreu apenas uma ligeira inflexão.
Ora, tendo o Mmo Juiz entrado com a fórmula correcta x2 para a compensação dos descansos anuais e configurando, correctamente como acima se viu a natureza de um salário como mensal, nada a apontar à sua decisão também nesse particular.
Resta, pois, concluir no sentido da improcedência do recurso e manter o que decidido foi na 1ª instância, concluindo-se pela inexistência dos apontados erros de facto ou de direito.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, mantendo, em consequência, a sentença recorrida na íntegra.
Custas pela recorrente.
Macau, 7 de Julho de 2011,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
1 - cfr. Ac. 838/2010, de 16/6/2011
2 - in Formação do Contrato Individual de Trabalho, RAPM (Rev. Edm. Pública de Macau), n.º 8/9, 343 e segs
3 - Cfr. art. 1º do CC; Oliveira Ascensão, IAED, AAFDL, 1970, 241
4 - Pedro Romano Martinez, ob. cit., 220
5 - Diogo Leite Campos, Contrato a favor de terceiro, 2ª ed., 1991, 13
6 - Leite de Campos, ob. cit., 17
7 - Obrigações, 1966, 55
8 - Menezes Cordeiro, Dto Obrig., 1980, 1º, 336 e 338
9 - Leite de Campos, ob. cit.27
10 - Leite Campos, ob. cit. 79 e 115
11 - CCAnot. 4ª ed.,1987, vol I, 426
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
722/2010 35/35