Processo n.º 930/2009
(Recurso civil e laboral)
Data: 7/Julho/2011
Recorrente: A (XXX)
Recorrido: S.T.D.M.
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
A, primeiro patrocinada pelo MP e, depois, por advogada, melhor identificada nos autos, patrocinada por advogada, veio interpor contra Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L.”, Sociedade Anónima de Responsabilidade Limitada, com sede em Macau, Região Administrativa Especial de Macau, no Hotel Lisboa, 9º andar, acção de processo comum de trabalho, pedindo a condenação da Ré, a título de créditos laborais a pagar- lhe a quantia de MOP$434.666,59 acrescida dos respectivos juros a contar desde a cessação da relação laboral.
Julgada a causa, foi decidido condenar a Ré a pagar o montante de MOP$725,00 e HKD$4.000,00, acrescido de juros de mora à taxa legal a contar da notificação da sentença.
Da decisão final vem recorrer a parte A. alegando basicamente que as gorjetas devem integrar o salário do trabalhador, impugnando ainda algumas fórmulas .
A STDM, Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L. defende a bondade do decidido e, sem recorrer, pronuncia-se pela aplicação de outras fórmulas.
Oportunamente, foram colhidos os vistos legais.
II - FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
“FACTOS PROVADOS
1. A Autora começou a trabalhar para a Ré no dia 21 de Setembro de 1982, tendo cessado o contrato em 15 de Agosto de 1993.
2. A Autora foi admitida como empregada de casino.
3. No decurso da relação contratual existente entre a Autora e a Ré esta última entregava à Autora uma quantia de valor fixo e outra quantia de valor variável.
4. A quantia variável entregue pela Ré à Autora era composta pela quota parte do dinheiro oferecido pelos clientes do casino, designado por "gorjetas".
5. As aludidas gorjetas eram distribuídas por todos os funcionários da Ré e não apenas pelos que tinham contacto directo com clientes nas salas de jogo, de acordo com a sua categoria profissional.
6. A Autora exercia a sua actividade por turnos fixados pela Ré do seguinte modo: 1° e 6° turnos: das 7h00 até 11h00, e das 3h00 até 7h00; 3° e 5° turnos: das 15h00 até 19h00, e das 23h00 até 3h00 (dia seguinte); 2° e 4° turnos: das 11h00 até 15h00, e das 19h00 até 23h00.
7. Os dias de descanso que, ao longo da vigência da relação contratual entre as partes, a Autora teria direito a gozar não eram remunerados.
8. A quantia fixa diária paga pela Ré à Autora cifrou-se em MOP$4,10 por dia desde o início do contrato até 30.06.1989, de HKD$10,00 por dia desde 1.07.89 e até ao final do contrato.
9. A Autora auferiu os seguintes rendimentos anuais:
- no ano de 1984 a quantia de MOP$57.975,00
- no ano de 1985 a quantia de MOP$86.530,00
- no ano de 1986 a quantia de MOP$88.192,00
- no ano de 1987 a quantia de MOP$107.001,00
- no ano de 1988 a quantia de MOP$126.70S,00
- no ano de 1989 a quantia de MOP$144.287,00
- no ano de 1990 a quantia de MOP$99.982,00
- no ano de 1991 a quantia de MOP$185.482,00
- no ano de 1992 a quantia de MOP$180.990,00
- no ano de 1993 a quantia de MOP$128.325,00
10. No momento da celebração do acordo entre a Autora e a Ré esta informou aquela que não poderia ela gozar descanso anual, feriados obrigatórios 'ou descanso semanal remunerados.
11. A 12.02.1990 a Autora deu à luz o seu filho XXX, conforme documento a fls. 28.
12. Por ordem da Ré, e na sequência da sua gravidez, a Autora requereu licença do serviço, tendo apresentado como motivo o parto do seu filho, licença que lhe foi concedida entre o período de 21.11.89 a 10.06.1990.
13. Durante este período de 21.11.89 a 10.06.90, a Ré não pagou qualquer remuneração à Autora.
14. Autora e Ré acordaram que, por cada dia em que a primeira trabalhasse efectivamente, receberia a quantia fixa referida em H) dos factos assestes e outra variável, proveniente das gorjetas apuradas nesse dia de trabalho.
15. As gorjetas eram distribuídas pela Ré segundo os critérios fixados previamente pela mesma.
16. A Autora e a Ré acordaram que aquela "tinha direito" a receber as gorjetas conforme o método vigente na empresa Ré.
17. A ré pagou à Autora, regular e periodicamente, a parte fixa da sua remuneração e a parte que, segundo o acordado entre Autora e Ré, cabia a esta última nas gorjetas.
18. A Autora nunca recebeu qualquer quantia relativa aos dias em que não trabalhou e que, pelos dias que trabalhou, apenas recebeu as quantias referidas na resposta ao quesito 1.°.
19. As gorjetas oferecidas a cada um dos colaboradores da Ré pelos clientes dos casinos eram reunidas e contabilizadas diariamente por um grupo variável de pessoas, do qual fazia parte um funcionário do Departamento de Inspecção de Jogos, um membro do departamento da tesouraria da Ré e um ou mais trabalhadores da Ré e que tais gorjetas eram distribuídas em cada 10 dias pela Ré aos seus trabalhadores.
20. Autora e Ré acordaram que a primeira não receberia qualquer quantia relativa aos dias em que não prestasse trabalho efectivo. “
III - FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passaria fundamentalmente pela questão de saber se as ditas “gorjetas” integram ou não o salário do trabalhador, importando ainda ponderar as seguintes questões:
- Da natureza jurídica do acordo celebrado entre recorrente e recorrida;
- Do salário justo; determinação da retribuição; as gorjetas auferidas pelos trabalhadores de casino integram ou não o seu salário?
- Do não gozo de dias de descanso semanal, descanso anual e feriados obrigatórios;
. prova dos factos; prova do impedimento do gozo;
. liberdade contratual; da admissibilidade de renúncia voluntária ao gozo de dias de descanso semanal, anual, feriados obrigatórios;
- Integração da natureza do salário; mensal ou diário;
- Determinação dos montantes compensatórios dos dias de trabalho prestado em dias descanso e festividades.
- Apuramento das fórmulas de cálculo;
2. Há uma questão, no entanto, que oficiosa e previamente convém analisar, sob pena de termos o tempo por perdido, se, depois de abordar as questões que vêm colocadas, entendêssemos que não tínhamos elementos para quantificar as compensações devidas.
Tem isto a ver com o facto de se constatar, face à matéria de facto provada, que o Mmo Juiz considerou que o trabalhador gozava dos descansos quando solicitava, o que significa que, tendo gozado ou podido gozar alguns, se fica sem saber quais desses descansos coincidiam com os devidos, bem podendo tal acontecer.
Só que, esmiuçando bem a matéria assente, essa factualidade nem sequer ficou provada e o que a A. alegou, no fundo, foi que não gozou os descansos a que tinha direito.
E que esses descansos não foram compensados.
E importa não esquecer que uma coisa é aquilo que teria sido acordado e outra o que efectivamente aconteceu.
O que importava apurar, com todo o respeito, o Mmo Juiz não apurou. É certo que podia não ter condições para o apurar, mas nesse caso importaria retirar, aí sim, as conclusões em função do ónus da prova.
Havia, no entanto, alguns factos capitais que interessava apurar e que constam do questionário: aí se perguntava se o trabalhador nunca gozou dos descansos referidos; se nunca recebeu qualquer compensação por ter trabalhado nesses dias (quesitos 7º e 8º).
O que se respondeu?
Ao primeiro (7º quesito), não provado; ao oitavo, que a autora nunca recebeu qualquer quantia relativa aos dias em que não trabalhou e que, pelos dias que trabalhou apenas recebeu as quantias referidas na resposta ao quesito 1º. (cfr. fls 204 dos autos)
Ficamos assim a saber que terá gozado alguns.
Mas quais, quantos?
Da fundamentação desenvolvida na douta sentença recorrida o Mmo Juiz joga com um facto que não vem provado, isto é, considera que não gozou nenhum dos descansos legais. Mas mesmo que se admita que gozou de alguns descansos - quando pedia - nada nos diz que tal não coincidisse com os descansos devidos.
Há aqui, em termos do julgamento de facto uma contradição insanável.
É certo que o Mmo Juiz, na sua elaboração conceptual, retira de um facto não provado- que o trabalhador gozava os descansos quando pedia - a irrelevância desse gozo de descansos, a pedido, para entender que se devem ter os descansos por não gozados, tal como decorre da sua fina argumentação.
O facto de o trabalhador pedir para descansar mostra-se, é verdade, irrelevante no âmbito da relação laboral existente.
Mas o que importa aqui frisar é que não só esse facto não está provado, como ficamos sem saber quais os dias de descanso que devia ter gozado e não gozou.
O Mmo Juiz inexplicavelmente considerou todos os dias de descanso, o que parece estar em contradição com o julgamento de facto, donde se depreende que terá gozado alguns, mas ficamos sem saber quantos.
Acresce ainda que há uma falta clara de fundamentação de modo a acompanhar o iter cognoscitivo da decisão que levou o Mmo Juiz a condenar num dado montante, ficando-se sem saber (para além da condensação quase impenetrável do último parágrafo de fls 217) quais os pressupostos e factores do cálculo, número de semanas consideradas, períodos do primeiro e último ano a atender, o porquê de 82 salários por cada ano, considerando que cada ano tem 52 semanas, em princípio, se foi considerado o período de licença de maternidade e respectivas compensações.
E esta questão não é facilmente contornável.
3. Acontece que, mesmo a entender-se que o trabalhador não gozou nenhum dos descansos que lhe eram devidos, como concluiu o Mmo Juiz na sua douta sentença, sempre deparamos com uma outra questão e tem a ver com o facto de não sabermos quais os factores que ponderou no seu cálculo final, ao condenar nas referidas quantias, como já acima se referiu. Isto é, para além das fórmulas apontadas no mapa inserto na sentença, mais nada se sabe sobre o número de dias que foi ponderado e vencimento das obrigações respectivas, não bastando remeter para os termos da lei. Se se elabora um cálculo, há que o descrever, no mínimo, afigurando-se não ser suficiente apresentar o resultado.
Só acompanhando o cálculo efectuado se pode sindicar a correcção do mesmo e o acerto do resultado.
4. Esta questão foi já decidida por este Tribunal em alguns acórdãos aqui proferidos1, pelo que sem necessidade de outros desenvolvimentos remetemo-nos para as razões aí expendidas e que passamos a reproduzir.
«Ora, com as respostas dadas, cremos que líquido não está que o A. trabalhou nos dias de descanso tal como alegava, e como pelo Mm° Juiz a quo foi entendido.
Com efeito, face à referida matéria, e ainda que se admita uma interpretação no sentido de que houve “dias de descanso” em que o A. trabalhou, cremos que inviável é considerar-se que trabalhou , ou que não gozou, todos os dias de descanso semanal, anual e de feriado obrigatório durante o período de tempo em que durou a relação laboral com a R..
Então, “quid iuris”?
Nos termos do artº 629º do C.P.C.M.:
“1. A decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 599.º, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
2. No caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, o Tribunal de Segunda Instância reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que tenham servido de fundamento à decisão de facto impugnada.
3. O Tribunal de Segunda Instância pode determinar a renovação dos meios de prova produzidos em primeira instância que se mostrem absolutamente indispensáveis ao apuramento da verdade, quanto à matéria de facto objecto da decisão impugnada, aplicando-se às diligências ordenadas, com as necessárias adaptações, o preceituado quanto à instrução, discussão e julgamento na primeira instância e podendo o relator determinar a comparência pessoal dos depoentes.
4. Se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do n.º 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode o Tribunal de Segunda Instância anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na primeira instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta; a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão.
5. Se a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa não estiver devidamente fundamentada, pode o Tribunal de Segunda Instância, a requerimento da parte, determinar que o tribunal de primeira instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou escritos ou repetindo a produção da prova, quando necessário; sendo impossível obter a fundamentação com os mesmos juízes ou repetir a produção da prova, o juiz da causa limita-se a justificar a razão da impossibilidade.”
Atento o teor das respostas dadas aos atrás mencionados quesitos, afigura-se-nos que são as mesmas “deficientes” e “obscuras”, pois que fica-se sem saber se o A. trabalhou (ou não) nos dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios, tal como alegava na sua petição inicial.
Assim sendo, e tendo-se presente o preceituado no nº 4 do transcrito artº 629º do C.P.C.M., impõe-se a anulação do julgamento efectuado para, em novo julgamento, se suprir as apontadas deficiências, podendo o T.J.B. ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto com o fim de evitar contradições na decisão.»
V - DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, acorda-se em anular o julgamento efectuado no T.J.B.
Custas pelo vencido a final.
Macau, 7 de Julho de 2011
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
1 - Por todos, ac. deste TSI, n.º 932/2009; vd. Ainda os acórdão anteriormente citados
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930/2009 11/11