Processo nº 717/2009
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 07 de Julho de 2011
ASSUNTO:
- Licença de ocupação temporária do terreno
SUMÁRIO:
- O legislador, quer na vigência do Diploma Legislativo nº 651 (artº 76º, § único), quer do Diploma Legislativo nº 1679 (artº 102º), quer da Lei nº 6/80/M (artº 144º, nº 2), tem proibido, de forma clara e expressa, a transmissão das situações resultantes da licença de ocupação temporária.
- A licença de ocupação temporária apenas permite a utilização provisória do terreno, só podendo fazer-se construções ou instalações de carácter precário (artº 73º do Diploma Legislativo nº 651, artºs 18º, nº 1 e 19º, nº 1 do Diploma Legislativo 1679, bem como artºs 69º e 73º, nº 1, da Lei nº 6/80/M).
- Pode ser rescindida antes do seu termo normal por acto unilateral da entidade concedente e o ocupante não tem direito de levantar as benfeitorias introduzidas no terreno nem de ser indemnizado por elas, qualquer que seja o motivo do termo da ocupação, a não ser o reembolso da importância da taxa correspondente ao termo por que ainda teria direito a ocupar o terreno (artºs 74º e 75º da Lei nº 6/80/M, artºs 14º e 20º do Diploma Legislativo nº 1679 e artº 77º do Diploma Legislativo nº 651).
O Relator,
Ho Wai Neng
Processo nº 717/2009
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 07 de Julho de 2011
Recorrente: A
Recorrido: Chefe do Executivo da RAEM
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – Relatório
A, melhor identificado nos autos, vem interpor o presente Recurso Contencioso contra o despacho do Chefe do Executivo da RAEM, de 08 de Junho de 2009, exarado sobre a informação nº 2789/DURDEP/2009, de 18 de Maio, constante do processo nº 90/OI/2009/F, o qual ordenou o dono da obra procedesse à demolição da obra situada no Caminho de Tan Fong, em Coloane, no prazo de 30 dias contados a partir da publicação do edital, assacando-lhe vícios de erro nos pressupostos de facto e violação de lei, pedindo assim que seja anulado o acto recorrido.
Alegando e concluíndo que :
1. Diz-nos o preambulo da Lei das Terras publicada através da Lei n.º 6/80/M de 5 de Julho. No seu ponto n.º 2 o seguinte: "A ocupação e concessão de terrenos vagos do território têm o seu assento legal no Diploma Legislativo n.º 1679, de 21 de Agosto de 1965, sendo as situações criadas anteriormente à sua vigência contempladas no Regulamento aprovado pelo Diploma Legislativo n.º 651, de 3 de Fevereiro de 1940" (sublinhado nosso).
2. Nestes termos, da Lei não se infere que a licença de ocupação atribuída a particulares, seja atribuída "Intuito personae", ou seja, a originária titular da licença de ocupação do terreno em causa, não se encontrava vinculada a manter a licença de ocupação por si própria.
3. Nada impedindo a transmissão do seu direito, cumprido que foram, os encargos inerentes com a respectiva licença, junto das repartições de Fazenda pública ou Finanças da RAEM antiga Província de Macau.
4. Da actual Legislação em vigor, Lei n.º 6/80/M de 5 de Julho, que regula a ocupação e atribuição de licença a titulo precário a particulares de terrenos do dominio público, conforme o disposto nos artigos 3.º, 29.º e 31.º, resulta a previsão de tais terrenos se encontrarem afectos a esse fim.
5. Por outro lado, o Recorrente fez prova da aquisição por transmissão de acto volitivo intervivos da sua legitimidade para ocupar o terreno em causa, incumbindo assim, à Administração o ónus de prova da negação de tal direito.
6. Questão de direito que o Recorrente concede, reside no facto de não ter submetido o respectivo pedido de licença de obras, mas já não concede, no facto de não ter legitimidade para o fazer!
7. Tratam-se com efeito de questões de direito absolutamente diferentes que produzem consequências jurídicas absolutamente opostas.
8. A falta de Legitimidade conduz à nulidade ou inexistência de quaisquer efeitos jurídicos praticados por quem careça desse pressuposto legal, ao passo que a falta de um requisito legal de procedimento conduz à intimação a um comportamento e rectificação do mesmo.
9. Aliás, esta hermenêutica é forçosamente consequência da aplicação dos Princípios Básicos De Direito que norteiam a actividade Administrativa e que encontram acolhimento no Código de Procedimento Administrativo nomeadamente nos seus artigos de 4.°, 5.°, 7.°, 8.°, 9.°, 14.° e tendo como pilar desta Pirâmide de Direitos o Princípio da Legalidade previsto no artigo 3.° do mesmo Código.
10. Nos termos deste Princípio a Administração Pública deve actuar em obediência à Lei e ao direito, ora na modesta opinião do Recorrente, representa uma negação de justiça, desproporcionalidade e clara manifestação da falta de protecção dos seus direitos já adquiridos no passado e actualmente cristalizados na sua esfera jurídica o cumprimento do acto recorrido.
11. Tendo o Recorrente legitimidade para ocupar o terreno ora colocado em crise, desde 1997, não pode, não devia a Administração, simplesmente passar por cima desta situação fáctica, impondo actos que colidem com os seus direitos, e que ademais, podem ser corrigidos com a apresentação do respectivo pedido de Licenciamento de Obra, e consequente pagamento das taxas para legalização nos termos das disposições dos artigos 65.º e 70.º RGCU - Regulamento Geral da Construção Urbana.
12. Esta parece ser a solução de direito, mais justa, equitativa e respeitante dos direitos do Recorrente, que não ignorando a orientação que o Douto Tribunal de Segunda Instância vem defendendo, "que não pode haver igualdade na ilegalidade", o facto é que, impor este sacrifício aos particulares significa que um número indiscriminado de residentes na mesma Povoação, e em situação análoga à do ora Recorrente, estarão sujeitos à demolição sem direito a outra solução jurídica, das casas construídas com o esforço e poupanças de toda uma vida e sem outro tecto para si e familiares!- cfr- docs. 8, 9, e 10.
13. Mais, o Acto Administrativo ora recorrido entra em absoluta contradição e legitimas expectativas do Recorrente, em face das medidas anunciadas pelo Governo da RAEM, vide, Jornal "Ou Mun Iat Pou" de 21 de Agosto de 2009, de acordo com o documento que ora se junta sob o número 11.
14. Como pode a Administração conceber e anunciar projectos de solução dos problemas de habitação e resolver o problema de habitação dos residentes das zonas antigas que inicialmnte encontravam-se a ocupar as respectivas áreas antes da transferência de soberania, com propostas de introdução de regime de arrendamento, com prazo habitual de concessão não superior a 25 anos,
15. e de forma absolutamente inusitada, ordenar a demolição das casas desses mesmos residentes!
16. Todo e qualquer acto administrativo visa a prossecução do interesse público, salvo respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares.
17. Na senda deste respeito, cujo pilar repousa no Principio da Legalidade da Actividade Administrativa, e não só, esclarece o Professor Vieira de Andrade, sobre o que sejam interesses legalmente protegidos: "Na sua opinião, esse interesse apenas pode ser visto no plano substantivo e não no plano processual. Isto é, não se identifica com o interesse que é pressuposto da legitimidade para recorrer contenciosamente. O que se tem em vista são “posições jurídicas substantivas, através das quais a lei delimita, em favor dos particulares, áreas de protecção, que podem ser afectadas, mas devem ser respeitadas pela actividade adm':nistrativa, sendo susceptíveis de reconhecimento judicial independentemente da anulação de acto administrativo que os ofenda" (sublinhado nosso). Ob. Cit. pág. 639 e 642 in "Comentários ao Código de Procedimento Administrativo" Anotado e Comentado, Lino José Baptista Rodrigues Ribeiro e José Cândido de Pinho.
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Regularmente citada, a entidade recorrida contestou nos termos constantes a fls. 63 a 67 dos autos, cujo teor aqui se dá integralmente reproduzido, pugnando pelo não provimento do recurso.
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Só o recorrente é que apresentou alegações facultativas, mantendo, no essencial, a posição já tomada na petição inicial.
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O Ministério Público emitiu o seguinte parecer:
“Verdade seja dita que na impugnação ora em causa, que A interpôs do despacho do Chefe do Executivo de 8/6/09 que ordenou a demolição de obra situada no caminho de Tan Fong em Coloane, no prazo de 30 dias a contar da notificação edital para o efeito empreendida, não se colhem, com a clareza e sintetização que se imporiam, quais os concretos vícios que o mesmo vê afectarem tal acto.
De todo o modo, fazendo algum esforço de apreensão dos mesmos, parece o recorrente conceder não ter submetido o pedido de licença de obras a aprovação devida, contestando, porém, que não tivesse “legitimidade” para as levar a cabo, querendo com isso referir que, em seu critério, detinha título válido para a ocupação e uso do terreno em questão, no caso, uma “licença de ocupação”, originàriamente concedida a B, que a transferiu para C, que, por seu lado, a transmitiu ao recorrente, pelo que a ordem em crise conflitua com os seus direitos e interesses legalmente protegidos, ocorrendo “violação de lei por erro manifesto”, representando tal medida “uma negação de justiça, desproporcionalidade e clara manifestação de falta de protecção dos seus direitos já adquiridos no passado e actualmente cristalizados na sua esfera jurídica”.
Não lhe assiste, em nosso critério, qualquer razão.
Dispondo, além do mais, o artº 7º da LBRAEM que “Os solos e os recursos naturais na Região Administrativa Especial de Macau são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau”, e, tendo o acórdão do Venerando TUI, proferido no âmbito do proc. 32/2005, publicado no B.O., II Série, de 2/8/06, consignado que “Após o estabelecimento da Região, não se pode obter o reconhecimento de propriedade privada ou domínio útil a favor de particulares, dos referidos terrenos, através de decisão judicial, independentemente de acção a ser proposta antes ou depois da criação da Região”, todo o argumentado pelo recorrente, a propósito da alegada licença de ocupação do terreno, sendo estimável, se revela inócuo, já que, quer antes, quer depois do estabelecimento da RAEM, não logrou estabelecer o registo, a seu favor, do direito de propriedade ou qualquer outro direito real, designadamente de concessão, por aforamento ou arrendamento, que lhe confira legitimidade para requerer o licenciamento da obra.
Por outra banda, cabendo ao Governo da Região, ainda nos termos do artº 7º da LBRAEM anunciado, a responsabilidade pela gestão, uso e desenvolvimento dos solos, bem como o seu arrendamento ou concessão a pessoas singulares ou colectivas para uso ou desenvolvimento, ficando os rendimentos daí resultantes exclusivamente à disposição do Governo da RAEM, apresenta-se a ordem de demolição, além de justa e adequada, como a mais consonante com a prossecução do interesse público, já que, tendo a Administração detectado a situação, não poderia pactuar com a mesma não se vendo que outra medida ou medidas, no quadro da prossecução daquele interesse público, pudessem ser tomadas, menos gravosas para a posição jurídica do interessada : revelando-se a obra detectada ilegal e não legalizável, por manifesta ilegitimidade do recorrente, outra medida consonante com o interesse público não restaria senão a ordem de demolição, não se vendo, pois, afrontada a proporcionalidade.
Tudo razões por que, não se descortinando a ocorrência de qualquer dos vícios assacados, ou de qualquer outro de que cumpra conhecer, somos a pugnar pelo não provimento do presente recurso.”
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Foram colhidos os vistos legais dos Mmºs Juizes-Adjuntos.
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O Tribunal é o competente.
As partes possuem a personalidade e a capacidade judiciárias.
Mostram-se legítimas e regularmente patrocinadas.
Não há questões prévias, nulidades ou outras excepções que obstam ao conhecimento do mérito da causa.
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II – Factos
É assente a seguinte factualidade com interesse à boa decisão da causa:
- Nos anos de 1958 e 1969, um indivíduo de nome B pagou as taxas respeitantes à ocupação temporária de um terreno com a área de 400 m2, situado na Ilha de Coloane, confrontando: N., com o Talhão nº 6 dentro do qual se encontra terreno sequeiro.
- Em Janeiro de 1996, por acordo de escrito particular de fls. 40 dos autos, cujo teor aqui se dá integralmente reproduzido, um indivíduo de nome B, arrogando como titular do Bilhete de Identidade de Macau nº 029XXX, declarou “oferecer” o terreno sito no nº 87 do Caminho de Tan Fong, em Coloane, a um indivíduo de nome C, titular do Bilhete de Identidade de Macau nº 406XXX.
- Este, por sua vez, em Março de 1997, também por acordo de escrito particular de fls. 41 dos autos, cujo teor aqui se dá integralmente reproduzido, declarou “oferecer” o mesmo terreno ao A, ora recorrente.
- No terreno em referência, encontra-se construída uma obra em estrutura de betão, conforme demonstrada pela foto constante de fls. 43 dos autos.
- Por despacho do Chefe do Executivo da RAEM, de 08 de Junho de 2009, exarado sobre a informação nº 2789/DURDEP/2009, de 18 de Maio, constante do processo nº 90/OI/2009/F, foi ordenada a demolição da obra em causa.
III – Fundamentos
O objecto do presente recurso contencioso consiste em saber se o recorrente possuir título legítimo para ocupar o terreno em causa e nele construir um prédio para habitação própria.
Na óptica do recorrente, ele possui título legítimo para o efeito, uma vez que o adquiriu por transmissão de acto volitivo inter-vivo.
Pois, o originário titular da licença de ocupação temporária do terreno, um indivíduo de nome B, transmitiu, em Janeiro de 1996, a sua posição de ocupante a um individuo de nomeC e este, por sua vez, a transferiu ao ora recorrente em Março de 1997.
E como a lei “não se infere que a licença de ocupação atribuída a particulares, seja atribuída “intuito personae”, pelo que ele é legítimo a ocupar o terreno em causa e nele construir um prédio para habitação própria.
Não lhe assiste minimamente razão.
Em primeiro lugar, não foi feita prova da existência da licença da ocupação temporária válida, já que quer no âmbito do Diploma Legislativo nº 651, de 03/02/1940, quer do Diploma Legislativo nº 1679, de 21/08/1963, quer da Lei nº 6/80/M, de 05/07/1980, a ocupação do terreno é sempre documentada por licença.
Não foi junta aos autos qualquer licença de ocupação temporária.
Daí que o simples facto de ter pago as taxas de ocupação nos anos de 1958 e 1969 não significa que hoje em dia ainda existe uma licença de ocupação temporária válida, pois as taxas podem ser erradamente cobradas, ainda por cima são somente dos anos de 1958 e 1969.
É o recorrente que tem o ónus da prova para o efeito.
Aliás, mesmo que admitisse por mera hipótese a existência de uma licença de ocupação temporária válida a favor do referido indivíduo B, a pretensão do requerente também não pode prosseguir.
Vejamos.
A contrário do que ele vem defender, o legislador, quer na vigência do Diploma Legislativo nº 651 (artº 76º, § único), quer do Diploma Legislativo nº 1679 (artº 102º), quer da Lei nº 6/80/M (artº 144º, nº 2), tem proibido, de forma clara e expressa, a transmissão das situações resultantes da licença de ocupação temporária.
Nesta conformidade, não se percebe como é que o recorrente afirmava ter adquirido validamente a posição de ocupante do terreno por transmissão de acto volitivo inter-vivo?
Ainda que fosse adquirida legalmente a posição de ocupante do terreno, também não pode nele construir um prédio de carácter duradouro para efeitos de habitação, conforme demonstrado pela foto de fls. 43 dos autos, visto que a licença de ocupação temporária apenas permite a utilização provisória do terreno, só podendo fazer-se construções ou instalações de carácter precário (artº 73º do Diploma Legislativo nº 651, artºs 18º, nº 1 e 19º, nº 1 do Diploma Legislativo 1679, bem como artºs 69º e 73º, nº 1, da Lei nº 6/80/M).
Por fim, salienta-se que a licença de ocupação temporária pode ser rescindida antes do seu termo normal por acto unilateral da entidade concedente e o ocupante não tem direito de levantar as benfeitorias introduzidas no terreno nem de ser indemnizado por elas, qualquer que seja o motivo do termo da ocupação, a não ser o reembolso da importância da taxa correspondente ao termo por que ainda teria direito a ocupar o terreno (artºs 74º e 75º da Lei nº 6/80/M, artºs 14º e 20º do Diploma Legislativo nº 1679 e artº 77º do Diploma Legislativo nº 651).
Portanto, mesmo que a ocupação do recorrente fosse legal, que não é como já demonstramos, nunca ele pode ter qualquer expectativa, muito menos legítima, para continuar ocupar o terreno em causa, ou pedir qualquer indemnização.
Improcede assim o recurso interposto.
IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em negar provimento ao recurso interposto, confirmando o acto recorrido.
Custas pelo recorrente, com 8UC de taxa de justiça.
Notifique e registe.
RAEM, aos 07 de Julho de 2011.
Ho Wai Neng Presente
José Cândido de Pinho Vitor Coelho
Lai Kin Hong
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Proc. nº 717/2009