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Processo nº 244/2011 Data: 07.07.2011
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “fuga à responsabilidade”.
Prescrição do procedimento criminal.
Interrupção.
Suspensão.


SUMÁRIO

1. A notificação do agente para interrogatório como arguido constitui causa de interrupção da prescrição do procedimento criminal.

2. Porém, não constando dos autos tal notificação, deve-se dar relevo ao próprio interrogatório do arguido, pois que se é certo que, com a notificação, ao dar conhecimento do interrogatório, o detentor do poder punitivo manifesta que pretende exercê-lo, não é menos certo que essa manifestação existe, por maioria de razão, no próprio interrogatório.
O relator,

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José Maria Dias Azedo













Processo nº 244/2011
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Inconformado com a decisão do Mmo Juiz do T.J.B. que declarou prescrito o procedimento criminal pela prática de 1 (eventual) crime de “fuga à responsabilidade” p. e p. pelo art. 64° do Código da Estrada, imputado ao arguido A, com os restantes sinais dos autos, vem o Exmo. Magistrado do Ministério Público daquela recorrer para, na sua motivação, e a final, oferecer as conclusões seguintes:
“1. O Tribunal recorrido entende que a interrupção e a suspensão da prescrição não podem existir ao mesmo tempo, isto quer dizer que a suspensão deve cessar antes da interrupção da prescrição; além disso, o mesmo incorre em erro do entendimento do direito quanto à determinação da cessação da suspensão da prescrição, quer dizer a questão de quando esta volta a correr.
2. A partir das decisões judiciais de Portugal e da história das alterações legislativas do Código Penal Português, podemos ver que o Tribunal recorrido incorre em erro do entendimento da relação entre a interrupção e a suspensão da prescrição. De facto, do mesmo facto pode resultar, ao mesmo tempo, a interrupção e a suspensão da prescrição.
3. A suspensão da prescrição foi introduzida no Código Penal Português a fim de impedir o decurso do prazo de prescrição quando existirem determinados eventos que excluem a possibilidade de o procedimento se iniciar ou continuar.
4. Isso não afecta a função independente dos artigos sobre a interrupção da prescrição.
5. Além disso, em relação a que o procedimento penal estiver pendente a partir da notificação da acusação, não se deve entender apenas que o processo é remetido ou o juiz não profere o despacho, mas sim que, de acordo com o sentido original da palavra “pendente” na área jurídica e os dispostos no artigo 112.º, n.º 2 do Código Penal bem como a sua história legislativa, ainda não há decisão final quanto ao processo.
6. Segundo os dispostos nos artigos 112 e 113 do Código Penal, a prescrição do procedimento penal deste processo ainda não tem lugar.
7. A decisão recorrida foi proferida com base no entendimento errado das disposições legais, violando os sentidos originais e as finalidades legislativas destas, pelo que deve ser revogada”; (cfr., fls. 166 a 171 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Sem resposta, e admitido o recurso, vieram os autos a este T.S.I..

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Em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“O crime em causa ocorreu a 23/10/01 e prazo de prescrição do respectivo procedimento criminal é de 5 anos, nos termos da al d) do n° 1 do art° 110°, C.P.
A dificuldade com que, desde logo, nos deparamos, prende-se com a 1° causa de interrupção daquele prazo, referente a suposta notificação para interrogatório do agente como arguido - al a) do n° 1 po art° 113°, C.P.
É que, a tal propósito, refere-se o despacho controvertido à data de 2/1/02, enquanto a Exma Colega recorrente se reporta a 17/1/02.
Mas, a verdade é que, devida e exaustivamente escrutinados os autos, pura e simplesmente se não alcança a existência daquela notificação, sendo que a data de 17/1/02 diz respeito ao interrogatório do recorrente como arguido (cfr fls 58), inexistindo, repete-se, qualquer notificação para o efeito.
Neste contexto, das duas uma: ou não se considera esse interrogatório como causa interruptiva, ja que não expressamente prevista na lei e, nesse caso, o procedimento criminal encontrar-se-á prescrito, já que a causa seguinte de interrupção se reporta a 11/1/07 com a aplicação de medida de coacção (al. b) do normativo referido), ou considera-se como tal, sendo que nesse caso se justificará então a “polémica” subjacente ao presente recurso.
E, quanto à mesma, cremos assistir razão à Exma. Colega recorrente. Atento o prazo prescricional de 5 anos e uma vez que entre a data da prática do crime, 23/10/01 e o despacho ora em crise, de 24/2/11, decorreram mais de 7 anos e 6 meses, a prescrição do procedimento criminal teria sempre lugar, independentemente das várias causas de interrupção entretanto ocorridas, pelo que, na observância do disposto no n° 3 do art° 113°, C.P., haverá apenas que estabelecer o tempo de suspensão, que a norma ressalva.
Esta, iniciou-se em 24/4/07 com a notificação da acusação ao arguido e não pode ultrapassar 3 anos, tudo conforme o preceituado no n" 1, al b) e n° 2 do art° 112°, c.P.
A questão a delucidar é, pois, no essencial, a de saber se aquela suspensão cessa com qualquer causa interruptiva, designadamente com a remessa do processo a tribunal, como se parece pretender na decisão em escrutínio.
Não se vê como.
O problema poderia colocar-se se tivesse existido despacho de pronúncia ou equivalente, a interromper o prazo prescricional, nos termos da al c) do n° 1 do art° 113°, altura em que a questão adiantada - manutenção ou não da suspensão apesar dessa causa interruptiva - poderia fazer algum sentido (sem prejuízo de adiantarmos que, mesmo nesse caso, entenderíamos que a suspensão se manteria).
Ora, no caso presente, aquela causa interruptiva não existiu. O Mmo Juíz “a quo” não recebeu a acusação, desse despacho existindo recurso do M.P. que mereceu provimento no douto acórdão constante de fls 148 a 155 v, sendo que, em virtude do entendimento assumido no despacho em escrutínio, não chegou a existir efectivo recebimento da acusação.
Daí que se nos afigure haver que considerar a suspensão no seu limite máximo de 3 anos, pelo que, fazendo acrescer o mesmo aos 7 anos e 6 meses já referidos, alcançar-se-á o prazo temporal de 10 anos e 6 meses que, “somado” ao momento da prática do crime, fixará a ocorrência da prescrição apenas a 23/4/12.
Razões por que, sem necessidade de maiores considerações ou delongas, entendemos merecer provimento o presente recurso”; (cfr., fls. 198 a 200).

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Nada obstando, vieram os autos à conferência.

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Cumpre decidir.

Fundamentação

2. Vem o Exmo. Magistrado do Ministério Público recorrer da decisão proferida pelo Mmo Juiz do T.J.B. que declarou prescrito o procedimento criminal pela prática de 1 (eventual) crime de “fuga à responsabilidade” p. e p. pelo art. 64° do Código da Estrada, imputado ao arguido A.

Tem a decisão recorrida o teor seguinte:

“O Ministério Público deduz acusação contra o arguido, pela prática de um crime de fuga à responsabilidade previsto e punido pelo art.º 64.º do Código da Estrada, crime esse é punido com pena de prisão até 1 ano. Nos termos do art.º 110.º, n.º 1, al. d) do Código Penal, o prazo de prescrição do procedimento criminal é de 5 anos a contar desde o dia da prática do crime.
Além disso, nos termos do art.º 113.º, n.º 3 do Código Penal, a prescrição do procedimento penal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. Pelo que, o prazo da prescrição do procedimento penal do crime indicado neste processo, a contar desde o dia da ocorrência do crime, não deve ultrapassar 7 anos e 6 meses.
A prática do crime ocorreu em 23 de Outubro de 2001.
O Ministério Público elaborou a acusação em 19 de Abril de 2007 (vide fls. 113 e v).
Durante o período, ao abrigo do art.º 113.º, n.º 1, al.s a) e b) do CPM, a prescrição do procedimento penal interrompe-se com a notificação como arguido (2 de Janeiro de 2002) e com a aplicação de uma medida de coacção (11 de Janeiro de 2007).
O arguido recebeu a notificação da acusação em 24 de Abril de 2007 (vide fls. 116v), altura em que se interrompeu a prescrição do procedimento penal ao abrigo do art.º 112.º, n.º 1, al. b) do CPM.
O processo foi remetido a este Tribunal em 8 de Maio de 2007 (vide fls. 119 dos autos), em 5 de Fevereiro de 2008 o juiz proferiu o despacho de recusa da recepção da acusação (vide fls. 123 e v); mais tarde o MP interpôs um recurso e venceu.
Nos termos do art.º 112.º, n.º 1, al. b) do CPM, a prescrição do procedimento penal suspende-se durante o tempo em que o procedimento penal estiver pendente, a partir da notificação da acusação, salvo no caso de processo de ausentes. No termos do n.º 2 do mesmo artigo, a suspensão não pode ultrapassar 3 anos. No termos do n.º 3 do mesmo artigo, a prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão.
Ressalvado o respeito por opinião diversa, este Tribunal entende que o processo volta a iniciar-se no momento em que este for remetido ao Tribunal por ter cessado a causa da suspensão. Assim deve voltar a correr a prescrição do procedimento penal em 8 de Maio de 2007 em vez de manter a aplicação do disposto no art.º 112.º, n.º 1, al. b) do CP por até 3 anos, caso contrário, o disposto no art.º 113.º, al. c) do mesmo Código torne-se sem sentido. As doutrinas e jurisprudências entendem que o despacho de recepção de acusação e de marcação de data para julgamento equivale ao despacho de pronúncia. Se a respectiva prescrição não volte a correr no momento em que o processo se remete ao Tribunal, por que se interromperia a mesma aquando da notificação do despacho acima referido? Desde que a prescrição ainda se suspenda ao abrigo do art.º 112.º, n.º 1, al. b) do CP, como é que a mesma seria interrompida? Porque uma prescrição suspensa precisa de ser interrompida?
As finalidades da pena são prevenção criminal e protecção do bem jurídico, pelo que o prazo da prescrição do procedimento penal não deve ser permanente. Quando um crime penal ser punido muito tempo depois da sua prática, a respectiva punição perde o seu sentido, especialmente no sentido de prevenção criminal, pelo que o legislador estabelece a prescrição do procedimento penal requerendo que os órgãos de autoridade e judicial tratem os casos num prazo adequado. Nestes termos, a prescrição dum procedimento penal deve correr quanto este estar em curso (não suspenso).
Caso assim se não entenda, o despacho de recusa de recepção da acusação proferido pelo juiz em 5 de Fevereiro de 2008 provocava a reabertura do processo que ficou suspenso, quer dizer, a prescrição voltava a correr. O processo entrou em julgamento quando o juiz proferiu o despacho acima referido cuja natureza causa eventualmente o fim do processo. Pelo que, a prescrição deveu correr.
Além disso, este Tribunal entende que a prescrição do procedimento penal deve correr mesmo no prazo de recurso. Em primeiro lugar, o sentido da suspensão da prescrição é que o respectivo processo está em pausa e não se procede, uma vez que o processo se reinicie, a prescrição voltaria a correr. No momento da interposição do recurso, o processo estava em curso e julgou-se o objecto do recurso no tribunal superior, pelo que não seria provocada a pausa do processo. Claro que o tribunal deve estabelecer um efeito quanto a um recurso, efeito este indica o produzido no prazo de recurso pela decisão recorrida. A suspensão do efeito da decisão recorrida não provoca a suspensão da prescrição.
Neste processo, independente de a prescrição voltar a correr em 8 de Maio de 2007 (momento em que o processo foi remetido a este Tribunal) ou em 5 de Fevereiro de 2008 (momento em que o juiz proferiu o despacho de recusa de recepção da acusação), ressalvado o tempo de suspensão da prescrição (24 de Abril a 8 de Julho de 2007 ou a 5 de Fevereiro de 2008), tem recorrido mais de 7 anos e 6 meses que é um limite máximo legalmente fixado (ao abrigo do art.º 113.º, n.º 3 do CP) desde o dia da ocorrência do crime (23 de Outubro de 2001) até agora. Pelo que a prescrição do procedimento penal já teve lugar e o procedimento penal extinguiu-se por efeito de prescrição.
Nestes termos, este Tribunal declara que, o arguido A, acusado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de fuga à responsabilidade previsto e punido pelo art.º 64.º do Código da Estrada, crime esse extingue-se por efeito de prescrição.
Boletim ao registo criminal”.

3. Aqui chegados, “quid iuris”?

Vejamos de que lado está a razão.

Sendo o crime de “fuga à responsabilidade” punido com pena de prisão até 1 ano ou multa, (cfr., art. 64° do Código da Estrada), é de 5 anos o prazo para a prescrição do seu procedimento; (cfr., art. 110°, n.° 1, al. d) e n.° 3 do C.P.M.).

No caso, o alegado crime em questão imputado ao arguido dos autos ocorreu em 23.10.2001, sendo assim esta a data do início do dito prazo de prescrição; (cfr., art. 111°, n.° 1 do C.P.M.).

Assentes tais dados, continuemos.

Prescreve o art. 112° do mesmo C.P.M. que:

“1. A prescrição do procedimento penal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:

a) O procedimento penal não puder legalmente iniciar-se ou continuar, por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal ou da suspensão provisória do processo;

b) O procedimento penal estiver pendente, a partir da notificação da acusação, salvo no caso de processo de ausentes; ou

c) O agente cumprir fora de Macau pena ou medida de segurança privativas da liberdade.

2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar 3 anos.

3. A prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão”.

E, nos termos do art. 113°:

“1. A prescrição do procedimento penal interrompe-se:

a) Com a notificação para interrogatório do agente como arguido;

b) Com a aplicação de uma medida de coacção;

c) Com a notificação do despacho de pronúncia ou equivalente; ou

d) Com a marcação do dia para julgamento no processo de ausentes.

2. Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição.

3. A prescrição do procedimento penal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade; mas quando, por força de disposição especial, o prazo de prescrição for inferior a 2 anos, o limite máximo da prescrição corresponde ao dobro desse prazo”.

No caso, diz o Mmo Juiz a quo que “ao abrigo do art.º 113.º, n.º 1, al.s a) e b) do CPM, a prescrição do procedimento penal interrompe-se com a notificação como arguido (2 de Janeiro de 2002) e com a aplicação de uma medida de coacção (11 de Janeiro de 2007)”.

Ora, como bem se nota do douto Parecer que se deixou transcrito, há lapso.

Dos autos não consta a referida “notificação”, podendo-se apenas concluir que foi o arguido, como tal, submetido a interrogatório no dia 17.01.2002.

E, já teve este T.S.I. oportunidade de afirmar que em tais situações, há que dar relevo ao dito “interrogatório” para efeitos de interrupção da prescrição; (cfr., v.g., os Acórdãos de 29.03.2007, Processo n.° 141/2007 e de 16.10.2008, Processo n.° 538/2008).

Não se nega que de uma interpretação estritamente literal da referida al. a), defensável é outro entendimento, pois que “o interrogatório do arguido não está compreendido na norma do artº 113º, nºn 1, al. a) do C.P.M.”.

Porém, afigura-se-nos correcta a solução que se deixou adiantada, já que se é certo que, com a notificação, ao dar conhecimento do interrogatório, o detentor do poder punitivo manifesta que pretende exercê-lo, não é menos certo que esse manifestação existe, por maioria de razão, no próprio interrogatório.

De facto, compreende-se que no comando legal em causa tenha o legislador optado por aí inserir a “notificação para interrogatório” como facto que interrompe a prescrição, pois que, com tal opção, antecipa-se a interrupção e previne-se a eventualidade de o interrogatório vir a atrasar-se ou não chegar a realizar-se, com as consequências óbvias.

Assim, interrompido o prazo de prescrição na dita data do interrogatório (17.01.2002), e, como prescreve o n.° 2 do art. 113° atrás transcrito, há que atentar que começa a correr novo prazo (de 5 anos) de prescrição.

Nesta conformidade, sendo também certo que, (antes de decorrido tal novo prazo), ao arguido foram aplicadas medidas de coacção em 11.01.2007, e que em 24.04.2007, foi notificado da acusação pelo Ministério Público contra ele deduzida, factos estes que não deixam de suspender a prescrição, (cfr., art. 112°, n.° 1 al. b) do C.P.M.), sem esforço se mostra de concluir que prescrito ainda não está o procedimento em questão, já que, (como bem diz o Exmo. Magistrado do Ministério Público no seu Parecer, que aqui, e por uma questão de economia processual, se dá por reproduzido), descontados os períodos de “suspensão da prescrição”, decorrido ainda não está o prazo máximo de prescrição, que no caso é de 10 anos e 6 meses, (por aplicação do já citado art. 112°, n.° 1, al. b) e n.° 2, e art. 113°, n.° 3, do C.P.M.).

Ociosas nos parecendo mais alongadas considerações sobre a questão, procede, assim, o recurso.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam conceder provimento ao recurso.

Sem custas (dado que é o arguido alheio a decisão recorrida).

Macau, aos 7 de Julho de 2011
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa



Proc. 244/2011 Pág. 18

Proc. 244/2011 Pág. 1