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Processo nº 104/2007
Data do Acórdão: 07JUL2011


Assuntos:

Nulidade
Anulabilidade
Audiência dos interessados

SUMÁRIO

Em regra, na falta da cominação legal expressa da sua consequência, a inobservância das normas reguladoras de uma formalidade essencial é apenas geradora da anulabilidade – artº 124º do CPA. Todavia, face ao disposto no artº 122º/2-d) do CPA, quando a inobservância das normas procedimentais implica a ofensa de um direito fundamental, v.g. o direito à audiência prévia nos procedimentos de natureza sancionatória ou ablatória, já é geradora da nulidade insuprível.


O relator


Lai Kin Hong

Processo nº 104/2007

I

Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM

A, devidamente identificado nos autos, vem recorrer do despacho do Senhor Secretário para a Segurança que declarou nulo o seu provimento em 1998 nas funções de guarda prisional, com fundamento na falta de capacidade profissional, por lhe haver sido aplicada a pena de demissão em 15JAN1995 do lugar de guarda da então Polícia Marítima e Fiscal de Macau, concluindo e pedindo:

CONCLUSÕES
1. O despacho exarado por Sua Excelência o Secretário para a Segurança com base na informação n.º 0028-RT/EPM/2006 prestada pelo Ex.mo Senhor Director do Estabelecimento Prisional de Macau é anulável, por vício de violação de lei;
2. O acto recorrido enferma de erro sobre os pressupostos uma vez que o provimento do recorrente no lugar de Guarda Prisional preencheu os requisitos de validade legal, ou seja, a pena de demissão do recorrente da PMF é nula nos termos dos artigos 262.º e 275.º do EMFSM e não produz efeitos jurídicos independentemente da declaração de nulidade (artigo 123.º do CPA).
3. O acto recorrido não foi antecedido de audição do Recorrente, pelo que foram violados clara e frontalmente os princípios audi alteram parti e da participação dos particulares na actividade administrativa, actualmente consagrados nos artigos 10.º, 93.º a 95° do CPA.
4. O acto recorrido, ao não ter ponderado a aplicação ao caso sub judice do art. 123.º, n.º 3 do CPA, violou assim o mesmo artigo 123.º, n.º 3 do CPA e os princípios da igualdade, da boa fé, da protecção da confiança, da segurança jurídica e da colaboração da administração com os particulares de boa fé, da proporcionalidade e da justiça, pois a declaração de nulidade pura e simples não se revela adequada e nem exigível in casu para prossecução dos objectivos de tutela da legalidade (cfr. arts. 5° a 8.º do CPA).
5. O acto recorrido, com o devido respeito, enferma ainda de falta de fundamentação de facto e de direito, ou, pelo menos, esta é obscura, insuficiente e incongruente, pois não esclarece porque razão não foram reconhecidos efeitos putativos à situação de facto do recorrente nos termos do art. 123.º, n.º 3 do CPA, tendo sido violados os artigos 114.º e 115.º do CPA.
NESTES TERMOS,
Deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência ser declarado nulo ou anulado o acto recorrido, com todas as consequências legais.

Citado, veio o Senhor Secretário para a Segurança contestando e pugnando pela improcedência do recurso.

O Dignº Magistrado do Ministério Público opinou no seu douto parecer no sentido de provimento do presente recurso.

Com interesses para a decisão, resultam provados dos autos e dos seus apensos os seguintes factos:

* Em 25SET1994, o recorrente A foi nomeado provisoriamente para exercer o cargo de guarda, 1º escalão, do quadro geral de agentes masculinos da então PMF;

* Por despacho datado de 23NOV1995 do Senhor Secretário-Adjunto para a Segurança, foi aplicada a pena de demissão ao recorrente A com fundamento na não comparência injustificada ao serviço desde 21ABR1995 até pelo menos 30JUN1995;

* Por despacho de 28AGO1998 do Senhor Secretário-Adjunto para a Justiça, foi contratado, por assalariamento, pelo período de um ano, para frequentar o curso de formação básica no Centro de Instrução Conjunto seguido de estágio probatório no EPC;

* Por despacho de 30AGO1999 do Senhor Secretário-Adjunto para a Justiça, foi-lhe renovado o contrato por assalariamento, pelo período de um ano, para o desempenho de funções correspondentes à categoria de Guarda, 1º escalão, com efeitos a partir de 31AGO1999;

* Contratação essa foi sucessivamente renovada;

* Em data não apurada por ser incompleto o currículo documentado no processo instrutor, o recorrente passou a ser nomeado para o desempenho das mesmas funções de guarda do EPM;

* Por despacho datado de 25OUT2006 do Senhor Secretário para a Segurança, a nomeação do recorrente foi convertida em definitiva;

* Mediante o ofício do Fundo de Pensões enviado por fax em 04DEZ2006, foi levado ao conhecimento da direcção do EPM o facto de o recorrente ter chegado a ser pessoal do quadro da então PMF e posteriormente sido demitido das suas funções por falta da comparência ao serviço injustificada;

* O que deu lugar à informação elaborada pelo Senhor Director do EPM, na qual foi proposta a declaração da nulidade do provimento do recorrente; e

* Proposta essa acabou por ser acolhida pelo Senhor Secretário para a Segurança mediante o despacho lançado na mesma informação.

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

Alega o recorrente, entre outros, que o acto recorrido não foi antecedido de audição do recorrente, pelo que foram violados clara e frontalmente os princípios audi alteram parti e da participação dos particulares na actividade administrativa, actualmente consagrados nos artºs 8º, 93º a 95º do CPA.

Trata-se o invocado de um vício da preterição de audiência dos interessados, situado no chamado procedimento administrativo decisório de 1º grau, pelo que deve conhecer-se em primeiro lugar que os outros vícios alegadamente verificados atinentes à legalidade formal ou substancial do despacho recorrido.

Apreciemos.

Antes de mais, é de frisar que o despacho ora recorrido, ora constante das fls. 13 e s.s., se mostra algo equívoco, dado que quer o despacho em si quer a informação-proposta que concordou, não diz claramente se a nulidade declarada se refere à contratação inicial em 1998 e às renovações sucessivas da contratação do recorrente em regime de assalariamento ou diz respeito à nomeação definitiva do recorrente em 25OUT2006.

Todavia, por razões que passamos a expor infra, qualquer que seja o acto constitutivo do vínculo do recorrente à Administração que foi declarado nulo por aquele despacho objecto do presente recurso, será necessariamente a mesma a solução que deve ser dada à presente lide recursória.

Ora, por força do princípio da participação consagrado no artº 10º do CPA, os órgãos da Administração Pública devem assegurar a participação dos particulares, bem como das associações que tenham por objecto a defesa dos seus interesses, na formação das decisões que lhes disseram respeito, designadamente através da respectiva audiência.

Concretizando este princípio, dispõe o artº 93º do CPA que “concluída a instrução, os interessados têm o direito de ser ouvido no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informado, nomeadamente, sobre o sentido provável desta”.

Trata-se de um direito legalmente conferido aos particulares à participação constitutiva na formação das decisões que lhes dizem respeito, ao qual corresponde o dever da Administração de proporcionar aos particulares a possibilidade de se pronunciarem sobre o objecto do procedimento e associá-los à tarefa de preparar a decisão final.

Todavia, tal como sucede com a maioria dos princípios, senão todos, por mais sagrados sejam, comportam excepções.

O princípio da participação não pode fugir a esta regra.

Na verdade, a própria lei estabelece dois grupos de excepções ao princípio da participação retirando aos particulares o seu direito à audiência prévia, quais são o grupo das circunstâncias determinantes da inexistência de audiência dos interessados e o das da dispensa de audiência dos interessados, previstas nos artºs 96º e 97º do CPA.

Dispõem estes dois artigos:

Artigo 96.º
(Inexistência de audiência dos interessados)

Não há lugar a audiência dos interessados:
a) Quando a decisão seja urgente;
b) Quando seja razoavelmente de prever que a diligência possa comprometer a execução ou a utilidade da decisão;
c) Quando o número de interessados a ouvir seja de tal forma elevado que a audiência se torne impraticável, devendo nesse caso proceder-se a consulta pública, quando possível, pela forma mais adequada.

Artigo 97.º
(Dispensa de audiência dos interessados)

O órgão instrutor pode dispensar a audiência dos interessados nos seguintes casos:
a) Se os interessados já se tiverem pronunciado no procedimento sobre as questões que importem à decisão e sobre as provas produzidas;
b) Se os elementos constantes do procedimento conduzirem a uma decisão favorável aos interessados.

Tanto no despacho ora recorrido, como na informação que o autor do despacho concordou e que dele faz parte integrante, não foi invocada qualquer dessas circunstâncias determinantes da inexistência ou da dispensa da audiência prévia.

Pois de acordo com a matéria de facto dada por assente, o recorrente nunca participou no procedimento administrativo conducente à declaração da nulidade do seu provimento e o primeiro momento em que foi confrontado com o procedimento foi já o da sua notificação pessoal da tal declaração de nulidade do seu provimento consubstanciada no despacho ora recorrido.

E a simples circunstância, só alegada na contestação, de existirem documentos, cuja validade se não questiona, em que se apoiou o despacho recorrido, também não integra em nenhuma das situações previstas nesses artºs 96º e 97º do CPA,

É assim evidente que se verifica in casu a violação das normas que asseguram ao recorrente o direito à audiência prévia.

Como se sabe, a audiência prévia é pela doutrina e jurisprudência considerada como uma formalidade essencial.

Em regra, na falta da cominação legal expressa da sua consequência, a inobservância das normas reguladoras de uma formalidade essencial é apenas geradora da anulabilidade – artº 124º do CPA.

Todavia, face ao disposto no artº 122º/2-d) do CPA, quando a inobservância das normas procedimentais implica a ofensa de um direito fundamental, v.g. o direito à audiência prévia nos procedimentos de natureza sancionatória ou ablatória, já é geradora da nulidade insuprível.

Também nesse sentido saliente o Ministério Público no seu douto parecer que “existem, contudo, situações em que o princípio da audiência dos interessados assume dimensão qualificada, já que está em causa o direito de defesa, sendo o que acontece nos processos de natureza sancionatória ou ablatória, que têm como consequência a restrição ou eliminação dos direitos dos administrados, como é o caso, em que a falta de audiência constitui nulidade insuprível”.

Tendo em conta o teor do despacho recorrido e a natureza gravosa das consequências jurídicas que podem advir da execução do despacho, é de concluir que estamos in casu perante um acto praticado com a inobservância de uma norma procedimental que tutela um direito fundamental, e consequentemente viciado de nulidade insuprível.

É portanto de declarar nulo o despacho ora recorrido.

Procedendo o alegado vício da preterição da audiência prévia, fica prejudicado o conhecimento da restante matéria de impugnação deduzida no petitório do presente recurso contencioso.

Decidindo.

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência conceder provimento ao recurso, declarando a nulidade do despacho recorrido.

Sem custas.

Notifique.

RAEM, 07JUL2011

Lai Kin Hong Presente
Choi Mou Pan Victor Manuel Carvalho Coelho
João A. G. Gil de Oliveira
104/2007-1