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 Processo nº 965/2009
(Recurso Jurisdicional Administrativo)

Data: 7/Julho/2011

Assuntos:
- Audiência do interessado; direito de defesa; arrolamento de prova
- Acto administrativo sancionatório

  SUMÁRIO:
1. A Administração tem o dever de investigação e de prosseguir a verdade material no procedimento administrativo, em especial no processo disciplinar ou sancionatório, princípio que decorre igualmente do CPP (Código de Processo Penal), subsidiariamente aplicável ao procedimento disciplinar e para o procedimento relativo às infracções administrativas

2. Tanto em processo sancionatório, como em processo penal, a actividade instrutória é dominada pelo princípio do inquisitório e da oficiosidade, não pertencendo o esclarecimento da matéria de facto exclusivamente às partes.

3. No âmbito dos procedimentos sancionatórios, mais do que um direito de audiência dos interessados, está em causa um direito de audiência e defesa. Por este motivo, e na medida em que o direito de defesa em procedimentos sancionatórios constitui um direito, liberdade e garantia, a não realização deste trâmite naqueles procedimentos conduz à nulidade do acto administrativo, por violação do conteúdo essencial de um direito fundamental.

4. Se no procedimento do 1º grau a recorrente não deixou de ser ouvida e não deixou de ser notificada para se apresentar à instrução, para deduzir a sua defesa e só depois disso a entidade competente proferiu a decisão em 1º grau relativa ao encerramento do estabelecimento e cominação de uma multa, não se pode dizer que houve diminuição do direito de defesa.

5. É no procedimento de 1º grau que se realiza a instrução, não se compreendendo ou não se vendo como numa fase de conhecimento e reapreciação da decisão tomada pelos Serviços o superior hierárquico fosse desenvolver toda uma actividade instrutória, quando já anteriormente o administrado tivera essa oportunidade.

O Relator,

João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira





Processo n.º 965/2009
(Recurso Juridicional Administrativo)

Data : 7 de Julho de 2011

Recorrente: A

Recorrido: Conselho de Administração do Instituto
dos Assuntos Cívicos e Municipais
    
    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I - RELATÓRIO

   A, notificada da sentença de fls. 138 e ss, que se pronunciou pela improcedência do recurso contencioso de acto do Conselho de Administração do Instituto dos Assuntos Cívicos e Municipais - que aplicou uma da multa de MOP$20.000,00 a A e encerrou o respectivo estabelecimento -, por entender que, embora dando como assente que a Autoridade recorrida violou o Princípio do Inquisitório, pois não ouviu as testemunhas apresentadas, não justificando o motivo da não audição, e o Princípio do Contraditório, que ainda assim o acto era válido, vem interpor recurso para este TSI, alegando, em síntese conclusiva:
    A requerente tem legitimidade, está devidamente representada, em prazo, pelo que lhe é permitido interpor o presente recurso;
    O acto proferido e a Sentença recorrida que o confirma são nulos - Vício de Forma, designadamente carência absoluta de forma legal por total ausência de fundamentação, violando os mais elementares Direitos Fundamentais da recorrente, no seu núcleo essencial – cfr. artigos 3°, 4°, 5°, 6°, 7°, 113°, 114°, 115°, 121° e 122° do C.P.A., artigos 4°, 8°, 11°, 18°, 24°, 25°, 36°, 40° e 41° da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau e art. 571° n.º 1 alínea b) do C.P.C..
    Consta dos Autos, em margem para dúvidas, que a recorrente não é nem proprietária, nem arrendatária do local onde, alegadamente, a infracção foi cometida, não podendo ser o sujeito do Acto, como deveria ter entendido o MMº Juiz ad quo cfr. art. 571°, n.º 1 alínea c) do C.P.C.
    O acto recorrido é nulo, por Violação Expressa da Lei, designadamente dos artigos 86°, 88°, 3°, 4°, 5°, 7°, 8°, 9° e 122°, n.º 1 alínea d) do C.P.A., uma vez que devendo tê-los cumprindo e agido em conformidade, o IACM não o fez, violando o Direito Fundamental da recorrente ao Contraditório e os Princípio da Legalidade e Boa-fé e Protecção dos Cidadãos;
    A Sentença recorrida, é, por tal, nula também, tanto mais que dá como assente que foram violados as regras constantes da alínea d) supra, designadamente os Princípios do Inquisitório e Contraditório, mas confirma o acto recorrido - cfr. art. 571°, n.º 1 alíneas c) e d) do C.P.C.
    O acto recorrido é nulo, também por Vício de Violação de Lei, resultante da falta de instrução exigível e adequada e por basear-se em premissas irreais e sem matéria factual necessária de suporte, errando absolutamente nos seus pressupostos, pois o IACM não só não considerou toda a prova apresentada pela recorrente, como nem sequer se dignou a verificar da prova testemunhal oferecida, tempestiva e legalmente - artigos 3°,4°, 5°, 7°, 8°, 9°, 10°, 54°, 76°, 77°, 85°, 86°, 88°, 93° e 122°, n.º 1 alínea d) do C.P.A..;
    Sendo do mesmo modo nula a Sentença recorrida por não ter encontrado a solução de Direito adequada à invocação de todas as nulidades invocadas, bem como por nem sequer se ter pronunciado em relação a várias das questões objecto dos presentes Autos, nem ter valorado factos que foram objecto de prova cabal pela recorrente - cfr. art. 571°, n.º 1 alíneas b), c) e d) do C.P.C..
    TERMOS em que entende dever o presente recurso ser julgado procedente, proferindo-se decisão que declare nulos ou, sem conceder e por mera cautela de patrocínio, anulando-se, pelas apontadas ilegalidades, o acto e a sentença recorridos, com todas as consequências legais.
    
    Este recurso não foi contra-alegado.
    
    O Digno Magistrado do MP emite o seguinte douto parecer:
    Entende o recorrente, além do mais, ter a douta sentença em escrutínio errado ao não ter assacado ao acto alvo do recurso contencioso, a nulidade decorrente da violação frontal do contraditório, em virtude de se não ter, no procedimento, ouvido as testemunhas por si arroladas.
    Cremos assistir-lhe inteira razão, neste específico.
    Como é visível, quer na reclamação, quer no recurso hierárquico interposto (fls. 161 a 171 do instrutor apenso) o recorrente arrolou, em sua defesa, 4 testemunhas.
    No entanto, no procedimento, não só nunca foram as mesmas ouvidas, como não foi dada qualquer justificação plausível para o efeito (cfr. designadamente, fls. 204 a 210 do instrutor).
    Nestes parâmetros, mal se compreende a asserção do Mmo Juiz "a quo", no sentido de tal falta de audição não ter causado "de forma material prejuízos para o seu direito de defesa e, por outro lado, as respectivas testemunhas foram destinadas apenas para provar que o recorrente não praticou o punido acto infractor, mas não a existência de quaisquer factos que excluam a ilegalidade ou a culpa".
    Ora, como pode o julgador, sem mais, substituir-se ao próprio infractor no sentido de presumir o que este pretendia ou não comprovar com as testemunhas em questão, sendo certo que a matéria factual que o mesmo alegou se poderia compaginar quer com a defesa da inexistência do ilícito assacado, quer com eventual atenuação da sua responsabilidade, sendo certo ter-se dado como comprovado, além do mais, a “falta de verificação de quaisquer circunstâncias atenuantes relativamente à infracção cometida” (fls. 209 do apenso) ?
    Como, nestas circunstâncias, sem mais, arrogar-se o juízo de que a falta de audição das testemunhas arroladas não prejudicou a defesa do recorrente?
    O mero facto de os investigadores do IACM, alegadamente, terem confirmado "com os próprios olhos" o facto e elaborado o auto de notícia, não invalida que o visado não tivesse e tenha a possibilidade de pôr em causa a apreensão dos factos, por forma a contestar a existência do ilícito, ou, pelo menos, atenuar a sua responsabilidade.
    Esta perspectiva do julgador apresenta-se, em boa verdade, até como indevida intromissão nas atribuições do poder administrativo, parecendo querer substituir-se ao mesmo na apreciação e determinação da responsabilidade do recorrente, ou, pelo menos, na apreciação da impertinência da diligência solicitada, nos termos, quiçá, do art. 60°, CPA, sendo que a sua competência e jurisdição se deverão cingir, nos precisos termos do art. 20°, CPAC, ao controle da legalidade do acto.
    Deparamo-nos, em síntese, em sede do acto alvo do recurso contencioso, com preterição de formalidade essencial, conducente ao atropelo frontal do núcleo essencial do direito fundamental de defesa em processo sancionatório, a fulminar tal acto com nulidade, nos termos dos n.ºs 1 e 2, al. d) do art. 122°, CPA, merecendo, em tal sentido, provimento o presente recurso.
    Foram colhidos os vistos legais.
    
    II - FACTOS
    Vêm provados os factos seguintes:
    “Em 30 de Janeiro de 2007, os pessoais do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais procederam à investigação ao estabelecimento de comidas Churrasco X, onde foram encontradas 24 mesas e 60 cadeiras; há dois fregueses, acima das mesas estão menus e comidas prestadas pelo estabelecimento para os fregueses.
    Ao mesmo dia, o pessoal do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais lavrou o auto de notícia n.º 007/DFAA/SAL/07 (vide fls. 4 dos anexos, dá-se por integralmente reproduzido o respectivo teor).
    O Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais notificou B, via ofício n.º 03514/374-P/DLA/SAL/2007, para apresentar-se à respectiva instrução.
    B apresentou-se à instrução em 22 de Fevereiro de 2007, declarando que o respectivo estabelecimento de comidas foi explorado pela sua irmã mais velha A, ele próprio só se responsabilizava por churrasquear (vide fls. 10 dos anexos, dá-se por integralmente reproduzido o respectivo teor).
    A apresentou-se à instrução em 23 de Fevereiro de 2007, confessou, depois de ser comunicada os factos infractores praticados, que foi a exploradora do estabelecimento de comidas Churrasco X, e tem explorado o mesmo sem a licença (vide fls. 14 dos anexos, dá-se por integralmente reproduzido o respectivo teor).
    O pessoal do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais apresentou uma informação em 27 de Fevereiro de 2007 (vide fls. 15 a 16 dos anexos, dá-se por integralmente reproduzido o respectivo teor), propondo uma pronúncia contra A e uma aplicação da multa de MOP$ 20.000,00 à mesma e o encerramento imediato do respectivo estabelecimento por este abriu ao público sem licença.
    O Presente substituto do conselho de administração do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais concordou com a respectiva proposta em 5 de Março de 2007.
    Em 12 de Março de 2007, o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais notificou a recorrente a respectiva decisão via ofício n.º 04719/559-P/DLA/SAL/2007, mais notificou que esta pode apresentar a defesa no prazo de 5 dias úteis.
    Em 20 de Março de 2007, a recorrente apresentou a defesa ao Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais, pedindo meramente que a entidade recorrida isentou a multa, não negou o respectivo facto de infracção (vide fls. 24 dos anexos, dá-se por integralmente reproduzido o respectivo teor).
    O pessoal do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais apresentou uma informação em 22 de Maio de 2007 (vide fls. 27 a 28 dos anexos, dá-se se por integralmente reproduzido o respectivo teor), propondo uma aplicação da multa de MOP$20.000,00 a A e o encerramento imediato do respectivo estabelecimento.
    O Sub-Presidente do conselho de administração do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais concordou com a respectiva proposta em 28 de Maio de 2007 e notificou a recorrente a respectiva decisão via ofício n.º 10668/1153-P/DLA/SAL/2007.
    Em 15 de Junho de 2007, a recorrente apresentou a reclamação para o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais através do seu advogado (vide fls. 69 a 73 dos anexos, dá-se por integralmente reproduzido o respectivo teor), negou pela primeira vez o respectivo facto de infracção, e apresentou o rol de testemunhas.
    O pessoal do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais apresentou a informação n.º 413/GJN/2007 em 31 de Agosto de 2007 (vide fls. 82 a 83 dos anexos, dá-se por integralmente reproduzido o respectivo teor), propondo que mantenha a decisão inicial.
    O Sub-Presidente do conselho de administração do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais concordou com a respectiva proposta em 5 de Setembro de 2007, indeferindo a reclamação da recorrente e mantendo a decisão inicial.
    O Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais notificou a recorrente a respectiva decisão via ofício n.º 18744/422/GJN/2007.
    Em 6 de Julho de 2007, a recorrente apresentou o recurso necessário para o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais através do seu advogado (vide fls. 161 a 165 dos anexos, dá-se por integralmente reproduzido o respectivo teor), mais apresentou o mesmo rol de testemunhas.
    O pessoal do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais apresentou a informação n.º 396-CM/GJN/2007 em 3 de Setembro de 2007 (vide fls. 205 a 210 dos anexos, dá-se por integralmente reproduzido o respectivo teor), propondo que mantenha a decisão inicial.
    O conselho de administração do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais proferiu a decisão em 14 de Setembro de 2007, a qual indeferiu o recurso da recorrente, manteve a decisão da multa proferida pelo Sub-Presidente do conselho de administração em 28 de Maio de 2007 e notificou a recorrente a respectiva decisão via ofício n.º 21195/422/GJN/2007.
    Em 22 de Outubro de 2007 a recorrente efectuou o pagamento da respectiva multa.
    Em 19 de Novembro de 2007 a recorrente interpôs o recurso contencioso ao Tribunal Administrativo através do seu advogado.
    Em 3 de Setembro de 2008, o Tribunal Administrativo indeferiu o recurso contencioso da recorrente pelo facto de que esta tinha admitido o acto recorrido, causando a perda da legitimidade para a interposição de recurso contencioso do respectivo acto administrativo.
    Em 22 de Setembro de 2008, a recorrente interpôs o recurso do despacho de indeferimento acima referido.
    Em 14 de Maio de 2009, o Tribunal de Segunda Instância revogou o despacho de indeferimento acima referido.”
    
    III - FUNDAMENTOS
    
1. Fundamentalmente o que está em causa no presente recurso é a análise da pretensa violação do dever de audição da prova testemunhal arrolada pelo interessado no processo administrativo que lhe foi movido.

Isto serviu para que o recorrente invocasse ainda a violação do princípio do contraditório, do inquisitório e do direito de defesa.
    
    2. O recorrente arrolou, em sua defesa, 4 testemunhas, no entanto, alega, no procedimento, não só nunca foram as mesmas ouvidas, como não foi dada qualquer justificação plausível para o efeito.
    Sobre essa falta de audição pronunciou-se o Mmo Juiz no sentido de tal falta de audição não ter causado "de forma material prejuízos para o seu direito de defesa e, por outro lado, as respectivas testemunhas foram destinadas apenas para provar que o recorrente não praticou o punido acto infractor, mas não a existência de quaisquer factos que excluam a ilegalidade ou a culpa".
    Tratava-se de um processo que culminou com a prática de um acto administrativo sancionatório com infracção administrativa, como o Mmo Juiz, aliás, muito bem sublinhou.
    
    3. Analisemos das consequências da não audição de testemunhas no procedimento administrativo.
Das razões aduzidas para tentar justificar a violação do direito de audiência e defesa desde logo se alcança que, quando fala de violação do princípio do contraditório, o que o recorrente verdadeiramente pretende pôr em crise é a forma de condução da instrução do respectivo procedimento administrativo, a opção de não audição das testemunhas, o modo como certas diligências foram levadas a cabo, e não uma absoluta falta de audiência do recorrente que, como é fácil observar, não deixou de ser ouvido e acareado nessa fase do processo.

É verdade que nos termos do n.º 1 do artigo 83° do CPA (Código de Procedimento administrativo), "O órgão competente deve procurar averiguar todos os factos cujo conhecimento seja conveniente para a justa e rápida decisão do procedimento, podendo, para o efeito, recorrer a todos os meios de prova admitidos em direito", constituindo, pois, tal normativo a evidente concretização do princípio do inquisitório ou da oficialidade, princípio que não se confunde com o direito de audiência, sendo este, verdadeiramente, um princípio de ética jurídica e uma norma de direito natural administrativo.1

A Administração tem o dever de investigação e de prosseguir a verdade material no procedimento administrativo, em especial no processo disciplinar ou sancionatório, princípio que decorre igualmente do CPP (Código de Processo Penal), subsidiariamente aplicável ao procedimento disciplinar e para o procedimento relativo às infracções administrativas, como o ilustram as disposições contidas nos artigos 277º do ETAPM (Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau) para aquele e artigo 11º, n.º 2 - Sob pena de nulidade da decisão sancionatória, são assegurados ao infractor os direitos de audiência e de defesa - e 19º do DL 52/99/M, de 4 de Out. (Regime Geral das infracções administrativas e respectivo procedimento) para estas e nos artigos 245º, 249º, 272, n.º 1, 273º, n.º 1, 321º, n.º 1 e 2 do CPP, donde se alcança que o M.P. e o juiz poderão oficiosamente ordenar as diligências que considerem indispensáveis para a descoberta da verdade, por onde passa, como está bem de ver, a indagação da factualidade concernente à culpa do arguido.

Tanto em processo sancionatório, como em processo penal, a actividade instrutória é dominada pelo princípio do inquisitório e da oficiosidade, não pertencendo o esclarecimento da matéria de facto exclusivamente às partes. Independentemente do contributo destas, a entidade instrutora tem o dever de perseguir e carrear para os autos todos os elementos que possam contribuir para o esclarecimento dos elementos objectivos e subjectivos do tipo da infracção imputada ao arguido.

Como escreve o Prof. Figueiredo Dias: ”Ora, dada justamente a existência em processo penal, deste dever de investigação judicial autónoma da verdade, logo por força se tem de concluir não valer aqui o princípio da auto-responsabilidade probatória das partes, nem impender por conseguinte sobre estas... qualquer ónus de alegação, isto é, qualquer necessidade processual de afirmar, contradizer e impugnar.”2
    
    Estas considerações impõem-se igualmente para o processo disciplinar e sancionatório comum, cabendo ao instrutor o dever de investigar todas as circunstâncias relevantes para a instrução do processo. Na verdade, a instrução de tais processos deve compreender todo o conjunto de averiguações e diligências destinadas a apurar a existência de uma dada infracção e a determinar os seus agentes e a responsabilidade deles, recolhendo todas as provas em ordem a proferir uma decisão fundamentada.
    
    4. Nos termos do citado n.° 1 do artigo 83º do CPA se evidencia a concretização do princípio do inquisitório ou da oficialidade.
    
    E daí se retira que a omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade, constitui nulidade insuprível.
    
    Na verdade as omissões, inexactidões e as insuficiências na instrução estão na origem do que se pode designar como um déficit de instrução, que redunda em erro invalidante da decisão, derivado não só da omissão ou preterição das diligências legais, mas também de não se tomar na devida conta, na instrução, factores que tutelem interesses irrenunciáveis dos administrados.3
    
    5. Estabelecido que se mostra o quadro geral em que se deve observar tal princípio - o da audiência do interessado e consequente corolário de garantia do direito de defesa e do direito de arrolar a prova que enforme tal defesa -, importa projectar aqueles ditames no caso concreto.
     Desde logo se observa que a razão invocada e que vai no sentido de não se mostrar incontroverso o juízo de que a falta de audição das testemunhas arroladas não prejudicou a defesa do recorrente. Essa posição poder-nos-ia levar longe e afastar-nos daquela garantia de defesa que cabe ao cidadão interessado avaliar e agir em conformidade, oferecendo-a, não devendo a entidade competente para sancionar pronunciar-se sobre a vantagem ou desvantagem do oferecimento de dada prova, desde que tal não se tenha á partida por manifestamente impertinente.
    Ora, sobre a matéria fáctica que estava em causa e era pressuposto da sanção a aplicar e da medida a empreender, não obstante ter sido presenciada por determinados agentes, daí não resulta que pudesse haver uma outra leitura do que foi presenciado, tratando-se para mais do desenvolvimento de uma pretensa actividade continuada no tempo relativamente à exploração de um dado estabelecimento de comidas e onde até se alegava que era só para armazenamento.
     Para além de que, para além da comprovação de uma actividade não autorizada, sempre haveria o interesse na demonstração de uma situação pessoal e económica porventura relevante para a intervenção administrativa, quiçá, a comprovação de um circunstancialismo excludente ou atenuante da ilicitude e/ou da culpa.
    O mero facto de os investigadores do IACM (Instituto dos assuntos Cívicos e Municipais), alegadamente, terem confirmado "com os próprios olhos" o facto e elaborado o auto de notícia, não invalida que o visado não tivesse e tenha a possibilidade de pôr em causa a apreensão dos factos, por forma a contestar a existência do ilícito, ou, pelo menos, atenuar a sua responsabilidade.
    
    6. A norma referida no artigo 122°, n.º2 al. d) CPA reporta-se à ofensa do "conteúdo essencial" de um direito fundamental.
    É complexa a questão relativa à determinação do que seja esse conteúdo essencial.
    Como diz Vieira de Andrade,4 tal conteúdo será violado sempre que se descaracterize a ordem de valores que a Lei Fundamental positiva nesse domínio.
    
    No caso vertente, perante a divergência da doutrina entre a posição que releva apenas a violação dos direitos, liberdades e garantias fundamentais e os direitos de natureza análoga, com excepção dos direitos económicos, raciais e culturais que não tenham tal natureza5 e aquela mais abrangente que ali faz incluir qualquer direito fundamental e não apenas “direitos, liberdades e garantias” e outros de natureza análoga6, nem sequer importa tomar posição por qualquer das teses em presença, já que está aqui em causa o exercício do direito de defesa nas suas componentes estruturais, tais como o direito de oferecimento de provas e produção dessas provas.
    
    No âmbito dos procedimentos sancionatórios, mais do que um direito de audiência dos interessados, está em causa um direito de audiência e defesa. Por este motivo, e na medida em que o direito de defesa em procedimentos sancionatórios constitui um direito, liberdade e garantia, a não realização deste trâmite naqueles procedimentos conduz à nulidade do acto administrativo, por violação do conteúdo essencial de um direito fundamental.
    
    Reconhece-se que nos processos sancionatórios que conduzem ao encerramento de um estabelecimento, da actividade económica exercida por um particular e o estabelecimento de uma dada multa atinge-se o núcleo fundamental substancial à manutenção do modo de vida, o emprego, a subsistência pessoal e da família, donde o direito à audiência e defesa se configurar como um direito fundamental.7
   
    7. Mas o problema está em saber se houve efectivamente uma nulidade do procedimento disciplinar, insanável, concretizada na violação das garantias fundamentais de defesa em processo sancionatório, o que corresponde a ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental.
    
    Importa referir a este propósito que as nulidades insupríveis do procedimento disciplinar e também para o sancionatório são aquelas que podem ser invocadas em relação ao acto final, mesmo que sendo conhecidas do interessado não tivessem sido invocadas durante o procedimento e isto porque as demais nulidades processuais consideram-se supridas se não reclamadas pelo arguido até à decisão final.8
    
    A questão fulcral é, pois, saber se no referido processo se terá atingido um direito fundamental substancial do recorrente, e se se estará perante uma nulidade absoluta de procedimento, por preenchimento da previsão da al. d) do n.º 2 do artigo 122° CPA, ou seja, por o acto em crise ter ofendido o conteúdo essencial de um direito fundamental.
    
    Ora, o que se observa é que no procedimento do 1º grau a recorrente não deixou de ser ouvida e não deixou de ser notificada para se apresentar à instrução, para deduzir a sua defesa e só depois disso a entidade competente proferiu a decisão em 1º grau relativa ao encerramento do estabelecimento e cominação de uma multa.
    
    Não obstante ter sido notificada para o efeito nada fez oportunamente.
    
    Perante isto não pode dizer a recorrente que a decisão sancionatória, na sua dupla vertente (encerramento e aplicação da multa), foi tomada à sua revelia. E aqui cessam as razões que enformam o quadro acima delineado e que vão no sentido de garantir o direito de audiência e de defesa aos administrados , em particular, nos casos como o presente.
    
    Questão que se poderia colocar tem que ver com o facto de, face ao recurso hierárquico necessário entretanto interposto, e tendo aí, a recorrente arrolado prova testemunhal, se a sua não audição releva de forma a terem-se como violados os aludidos princípios.
    
    E somos a concluir pela não relevância dessa não audição no caso sub judice.
    
    Porque, desde logo, a norma que prevê a interposição do recurso hierárquico - artigo 156º, n.º 1 do CPA prevê que com a interposição desse recurso se podem juntar os documentos considerados convenientes. Não se prevê o arrolamento de outro tipo de prova.
    
    O que se conjuga com o facto de ser no procedimento de 1º grau que se realiza a instrução, não se compreendendo ou não se vendo como numa fase de conhecimento e reapreciação da decisão tomada pelos Serviços o superior hierárquico fosse desenvolver toda uma actividade instrutória, ex novo, quando já anteriormente o administrado tivera essa oportunidade.
     É evidente que esta objecção procedimental já não colhe para a junção e análise de documentos que facilmente e de uma forma mais expedita podem ser analisados superiormente.
    
    O que sai reforçado com o argumento de que, no caso de sobrevir anulação do acto pelo superior hierárquico e ser ordenada a realização de nova instrução ou diligências complementares, elas serem realizadas pelo órgão inferior, se for este o competente para o efeito, como parece resultar do disposto, conjugadamente, 161º, n.º 2 e e 162º, n.º 1 e 2 do CPA.9
    
    
   
   Como ainda se assinalou é patente o paralelismo entre o procedimento disciplinar e o sancionatório.
   
   E nesta sede a Jurisprudência comparada é muito clara enquanto se pronuncia no sentido da perda de oportunidade do pedido de diligências instrutórias e recolha de produção de elementos probatórios, concluída que se mostre a instrução, tendo tido o arguido o ensejo de as solicitar anteriormente.10
   Donde se concluir pela não violação do princípio da audiência do interessado e direito de defesa.
   
   9. Como se disse já, os demais vícios assacados à sentença prendem-se todos, ou dela são decorrência, com a interpretação feita de que não terá havido violação do direito de defesa, donde, nesta conformidade, não se deixam de ter por analisados em qualquer das suas vertentes.
   
   Assim sendo, resta concluir pela improcedência do recurso.
    
    V - DECISÃO
    Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao presente recurso, mantendo pelas razões acima aduzidas, a decisão proferida.
    Custas pela recorrente com taxa de justiça que se fixa em 4 Ucs.
               Macau, 7 de Julho de 2011

_________________________
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Relator)

_________________________
Ho Wai Neng
(Primeiro Juiz-Adjunto)

_________________________
José Cândido de Pinho
(Segundo Juiz-Adjunto)

Presente
_______________________
Vitor Manuel Carvalho Coelho
(Magistrado do M.oP.o)


               

1 - Cfr. Referências dourtrinárias in CPA Anotado de Santos Botelho e outros, 2000, 378 v.
2 - RLJ, 105º, 121 e segs.
3 Ac. do TSI de 13/2/2003, proc. 2000/35 e de 19/6/2003, proc. 2001/201
4 - in "Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976", pág. 318 e segs
5 - Freitas do Amaral, CPA, 2ª ed., 212
6 - Rui Machete, Execução do Acto Administrativo, Direito e Justiça, vol VI, 1992, 84
7 - G. Canotilho e Vital Moreira, CRP Anot, 3ª ed., 931 e A.c. do STA de 6/10/1993, proc. 30463
8 Ac. do STA de 8.2.96 Proc. 37102, http://www.dgsi.pt
9 - Cfr. Esteves de Oliveira, Pedro Gonçalves e Pacheco Amorim, CPA Comentado, 2ª ed., 3ª reim. da ed. de 1997, 795
10 - Cfr. Acs. do STA, proc. 032155, de 6/2/2002 e proc. 01717/03, de 17/12/2003
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