Processo nº 355/2011 Data: 07.07.2011
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “tráfico de estupefacientes”.
Atenuação especial da pena.
Medida da pena.
SUMÁRIO
1. A atenuação especial só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, ou seja, quando a conduta em causa se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.
2. Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau, no seu art. 65°, a teoria da margem da liberdade, segundo a qual a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 355/2011
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão do T.J.B. de 13.04.2011 decidiu-se condenar A, arguido com os sinais dos autos, como autor da prática de um crime de “tráfico de estupefacientes” p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na pena de 9 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 202 a 202-v).
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Inconformado, o arguido recorreu.
Motivou para, a final, produzir se conclusões seguintes:
“1.) O tribunal a quo condenou o recorrente, pela prática dum crime de tráfico de estupefacientes, na pena de prisão de 9 anos e 6 meses.
O recorrente entende que a supracitada medida da pena é demasiado pesada.
2.) Os factos provados no acórdão do tribunal a quo incluem os seguintes:
Em 3 de Março de 2010, pelas 21 horas, na zona de recolha de bagagens do salão de chegada do Aeroporto Internacional de Macau, os agentes da PJ interceptaram o recorrente que acabou de chegar em Macau de Kuala Lumpur no voo AK56 da AirAsia.
Desde as 10h15 de 4 de Março até às 9h30 de 7 de Março de 2010, na Divisão de Investigação e Combate ao Tráfico de Estupefacientes da PJ, o recorrente excretou do seu corpo 68 grãos de pó, em forma oval e de cor creme.
Submetidos a exame laboratorial, os supracitados 68 grãos de pó revelaram tratar-se de “heroína”, substância abrangida pela tabela I-A anexa à Lei n.° 17/2009, com peso líquido de 1002,53 gramas (após análise quantitativa, verificou-se que a proporção de “heroína” de 8 dos grãos era de 50,56%, com peso líquido de 59,82 gramas; e a proporção de “heroína” nos restantes 60 grãos era de 54,45%, com peso líquido de 481,45 gramas).
O recorrente é solteiro e tem a seu cargo os pais e 5 irmãos.
O recorrente é delinquente primário e confessou sem reservas todos os factos lhe imputados.
3.) Tomando referência do recurso penal n.° 3/2011 do Tribunal de Última Instância, num processo similar, a arguida também violou o art. ° 8.° n.° 1 da Lei n.° 17/2009, mas a respectiva sentença de 1ª Instância (processo n.° CR1-09-0179-PCC) condenou a arguida na pena de prisão de 6 anos.
4.) O recorrente é delinquente primário, é o filho mais velho da sua família, e tem a seu cargo os pais e as despesas para a vida e o estudo dos 5 irmãos mais novos; sendo o único suporte económico da família, o recorrente tem um encargo económico pesado.
5.) A condição económica do país do recorrente não é boa e também não há muitas oportunidades de trabalho, pelo que o recorrente arriscou-se e praticou as supracitadas condutas criminosas.
6.) O recorrente entende que para cada processo, deve-se fazer a análise e o juízo segundo as circunstâncias concretas. Porém, comparando o supracitado processo de referência com o presente processo e considerando as circunstâncias dos processos, pode-se concluir simplesmente que a medida da pena no presente processo é demasiado pesada.
7.) O recorrente entende que o tribunal a quo não levou em consideração o disposto no art.° 66.°, n.° 1 e n.° 2, al. e) do Código Penal de Macau, isto é, o facto de “o agente ter sido especialmente afectado pelas consequências do facto.”
8.) O recorrente é residente de um país africano. Por se encontrar numa situação económica difícil, o recorrente foi usado por outrem como correio de estupefacientes, correndo o risco de vida para ganhar uma retribuição.
9.) De acordo com a regra de experiência comum, o tráfico de estupefacientes por meio acima referido causará prejuízo ao corpo humano. É claro que as condutas criminosas do recorrente são proibidas pela lei e pela sociedade, e não pretendemos fazer com que o tribunal suporte este tipo de tráfico de estupefacientes por meio do corpo humano; porém, tem-se certeza de que além de ser sancionado por lei, o recorrente também sofreu prejuízo físico”.
Pede, assim, a atenuação especial ou redução da pena que lhe foi imposta; (cfr., fls. 211 a 218 e 252 a 259).
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Respondendo, pugna o Exmo. Magistrado do Ministério Público pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 220 a 221-v).
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Admitido o recurso com efeito e modo de subida adequadamente fixados, vieram os autos a este T.S.I..
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Em sede de visa, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Pretende o recorrente a redução da pena que lhe foi imposta no douto acórdão.
Vejamos.
Não se verifica, “in casu”, o especial quadro atenuativo que o art. 66° do C. Penal exige.
Conforme se sabe, a acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção (“necessidade da pena”) constitui o pressuposto material da sua aplicação.
E isso só acontece “quando a imagem global de facto, resultante da actuação da(s) circunstância(s) atenuante(s), se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo” (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, 306).
A favor do recorrente, há a considerar, apenas, a confissão dos factos.
E essa circunstância tem um valor muito reduzido. Não se divisa, nomeadamente, que tenha contribuído, de qualquer forma, para a descoberta da verdade.
E, muito menos, que haja sido acompanhada de arrependimento.
A atenuação especial – convém recordá-lo – só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais.
E a situação em apreço não integra, seguramente, esse condicionalismo.
Subsiste, assim, a questão de saber se a pena aplicada se mostra ajustada.
Vejamos.
As balizas da tarefa da fixação da pena estão desenhadas no n°, 1 do art°. 65° do citado C. Penal, tendo como pano de fundo a “culpa do agente” e as “exigências de prevenção criminal”.
E a quantificação da culpa e a intensidade das razões de prevenção têm de determinar-se através de “todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele ...” (cfr. subsequente n°. 2 ).
Que dizer, então, das circunstâncias averiguadas?
Em benefício do arguido, provou-se, tão só, o referido comportamento processual.
E, em termos agravativos, com especial relevância, há que destacar a quantidade de droga em causa.
Quanto aos fins das penas, são prementes, na hipótese vertente, as exigências de prevenção geral.
O Tribunal Colectivo aplicou a pena de 9 anos e 6 meses de prisão.
E, tudo ponderado, afigura-se mais ajustada uma medida concreta não superior à média entre os limites mínimo e máximo da respectiva moldura abstracta.
Este o nosso parecer”; (cfr., fls. 261 a 264).
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Passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados os factos seguintes:
“1. Em 3 de Março de 2010, pelas 21 horas, na zona de recolha de bagagens do salão de chegada do Aeroporto Internacional de Macau, os agentes da PJ interceptaram o arguido A que acabou de chegar em Macau de Kuala Lumpur no voo AK56 da AirAsia.
2. Tendo suspeito de que o arguido A estava guardado com droga no interior do corpo, os agentes da PJ levaram-no ao Centro Hospitalar Conde de S. Januário para ser examinado.
3. No Centro Hospitalar Conde de S. Januário, após uma tomografia axial computorizada à cavidade abdominal do arguido A, foi verificada a existência de grande quantidade de objectos estranhos no interior do corpo do arguido (vide o relatório de diagnose constante das fls. 29 a 30 dos autos).
4. A seguir, os agentes da PJ levaram o arguido A à Divisão de Investigação e Combate ao Tráfico de Estupefacientes da PJ para fazer investigação.
5. Desde as 10h15 de 4 de Março até às 9h30 de 7 de Março de 2010, na Divisão de Investigação e Combate ao Tráfico de Estupefacientes da PJ, o arguido A excretou do seu corpo 68 grãos de pó, em forma oval e de cor creme (vide o auto de apreensão constante das fls. 42 dos autos).
6. Submetidos a exame laboratorial, os supracitados 68 grãos de pó revelaram tratar-se de “heroína”, substância abrangida pela tabela I-A anexa à Lei n.º 17/2009, com peso líquido de 1002,53 gramas (após análise quantitativa, verificou-se que a proporção de “heroína” de 8 dos grãos era de 50,56%, com peso líquido de 59,82 gramas; e a proporção de “heroína” nos restantes 60 grãos era de 54,45%, com peso líquido de 481,45 gramas).
7. As drogas acima referidas foram fornecidas ao arguido A por indivíduo de identidade desconhecida para guardar no interior do corpo e entregar a indivíduo de identidade desconhecida no Interior da China.
8. O arguido A trouxe com ele as supracitadas drogas com o objectivo de obter retribuição de USD$7,000.00.
9. Em 5 de Março de 2009, na PJ, os agentes encontraram na posse do arguido A um telemóvel de marca NOKIA, um cartão SIM, um bilhete de avião electrónico e um cartão de embarque (vide o auto de apreensão constante das fls. 31 dos autos).
10. O telemóvel (junto com o cartão) e o bilhete de avião electrónico acima referidos eram instrumentos de comunicação e bilhete de avião utilizados pelo arguido A para o tráfico de drogas.
11. O arguido A agiu de forma livre, voluntária e consciente ao praticar as condutas acima referidas.
12. O arguido A conhecia bem a natureza e as características das drogas acima referidas.
13. As supracitadas condutas do arguido A não foram autorizadas por lei.
14. O arguido A sabia bem que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
O arguido era comerciante de vestuário antes de ser preso, auferindo mensalmente USD$5,000.00.
O arguido é solteiro e tem a seu cargo os pais e 5 irmãos.
O arguido é delinquente primário e confessou sem reservas todos os factos lhe imputados”; (cfr., fls. 200-v a 201-v e 245-v a 246).
Do direito
3. Condenado que foi como autor da prática de um crime de “tráfico de estupefacientes” p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na pena de 9 anos e 6 meses de prisão, busca o arguido a atenuação especial da pena ou, subsidiariamente, a sua redução.
–– Quanto a pretendida “atenuação especial”, cremos que é a mesma inviável, pouco havendo a dizer.
Com efeito, e como repetidamente tem este T.S.I. entendido, a atenuação especial só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, ou seja, quando a conduta em causa “se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo”, (cfr., v.g., o recente Ac. deste T.S.I. de 11.11.2010, Proc. n° 670/2010 e de 14.04.2011, Proc. n°130/2011).
No caso, alega o recorrente que “ tem a seu cargo os pais e 5 irmãos”, que é “delinquente primário e confessou sem reservas todos os factos que lhe eram imputados”, que “é o único suporte económico da família, pelo que arriscou-se e praticou as citadas condutas criminosas”, que o “tribunal a quo não levou em consideração o disposto no art. 66°, n.° 1 e n.° 2, al. e) do Código Penal de Macau, isto é, o facto de o agente ter sido especialmente afectado pelas consequências do facto” e que, “por se encontrar numa situação económica difícil, o recorrente foi usado por outrem como correio de estupefacientes, correndo o risco de vida para ganhar uma retribuição”.
Porém, como facilmente se alcança, e independentemente do demais, nomeadamente, de provada estar tal insuficiência económica, já que o que se provou foi que o ora recorrente “era comerciante de vestuário antes de ser preso, auferindo mensalmente USD$5,000.00”, há que dizer que verificada não está a “especialidade” da situação para se accionar o invocado art. 66° do C.P.M..
Na verdade, e como já decidiu o mais Alto Tribunal da R.A.E.M..
– “Com a situação económica precária e a pobreza de país de origem, mesmo que o agente deixe o seu próprio corpo ou saúde colocados em risco pelo meio utilizado para praticar o crime de tráfico ilícito de drogas, não é possível atenuar especialmente a respectiva pena segundo a al. e) do n.° 2 do art. 66° do Código Penal”; (cfr., Acórdão do Vdo T.U.I. de 09.12.2009, Processo n.° 38/2009); e,
– “Perante o caso de transporte de heroína a Macau, escondendo na camada interior da caixa de bagagem e detectada pela polícia, a confissão e o arrependimento têm pouco valor atenuativo”; (cfr., Acórdão do T.U.I. de 21.07.2010, Processo n.° 36/2010).
Ociosas nos parecendo mais alongadas considerações sobre a questão, continuemos.
–– Da pedida “redução da pena”.
Ora, é sabido que “na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau, no seu art. 65°, a teoria da margem da liberdade, segundo a qual a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., o Acórdão de 03.02.2000, Processo n.°2/2000 e de 24.02.2011, Processo n.° 975/2010).
Ao crime pelo recorrente cometido cabe a pena de 3 a 15 anos de prisão.
E, atenta a quantidade e espécie de estupefacientes em causa e às necessidades de prevenção criminal, considera-se não haver margem para a peticionada redução da pena, sendo assim de se julgar improcedente o presente recurso.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente com taxa de justiça que se fixa em 6 UCs.
Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.500,00.
Macau, aos 7 de Julho de 2011
[Não obstante ter relatado o acórdão que antecede, entendo que excessiva é a pena de 9 anos e 6 meses de prisão imposta ao arguido, justificando-se, em nossa opinião, uma redução. De facto, atenta a moldura penal para o crime em questão, a quantidade e natureza de estupefacientes e a conduta processual do mesmo arguido, justa e equilibrada seria uma pena de 8 anos e 10 meses de prisão].
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José Maria Dias Azedo
(Relator)
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Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Tam Hio Wa
(Segundo Juiz-Adjunto)
Proc. 355/2011 Pág. 18
Proc. 355/2011 Pág. 1