Processo nº 1046/2009
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 30 de Junho de 2011
ASSUNTO:
- Preterição de tribunal arbitral
SUMÁRIO:
Tendo um contrato de prestação de serviços sido celebrado entre uma empresa de importação de trabalhadores não residentes e uma outra de apoio às empresas de Macau, qualquer cláusula compromissória que nele estipule convenção arbitral para decidir quaisquer litígios entre as partes, não pode vincular terceiros, designadamente os trabalhadores posteriormente contratados, no que a esta cláusula se refere.
O Relator,
Ho Wai Neng
Processo nº 1046/2009
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 30 de Junho de 2011
Recorrente: Guardforce (Macau) – Serviços e Sistemas de Segurança, Lda. (Ré)
Recorrido: A (Autor)
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – Relatório
Por despacho saneador de 20/07/2009, decidiu-se julgar improcedente a excepção de incompetência do tribunal, por preterição de tribunal arbitral, suscitada pela Ré, declarando o tribunal competente.
Dessa decisão vem recorrer a Ré, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
1. Vem o presente recurso interposto do despacho proferido pelo Tribunal "a quo" em 20 de Julho de 2009, a fls.137 v:
“O tribunal entende que apesar de no contrato a Ré e Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda, ter estipulado que em caso de conflito emergente da execução do contrato dever ser sujeito a Tribunal Arbitral. No entanto o contrato só produz efeitos entre as partes, por isso o Autor não está sujeito à exclusão da resolução do litigio pelos tribunais da R.A.E.M., e, por isso julgo improcedente a invocada excepção e preterição do Tribunal Arbitral, julgando competente este Tribunal”
2. Se dúvidas restassem quanto ao litígio e às diversas questões serem emergentes do contrato de prestação de serviços em causa, os factos dados como assentes, em conjugação com os argumentos do Autor na sua p.i. e os documentos, assim como a resposta à contestação, são elucidativos;
3. Quer isto dizer que, salvo o devido respeito que é muito, a premissa na qual se funda a decisão do Tribunal "a quo" para julgar improcedente a invocada excepção de preterição do Tribunal Arbitral, é incorreta, pois, afigura-se-nos evidente que em face da relação material controvertida apresentada pelo Autor, o contrato de prestação de serviços é o verdadeiro cerne desta demanda;
4. Por outro lado, a decisão em causa não apresenta qualquer fundamento quer de facto quer de direito que permita ao respectivo destinatário compreender e apreender a motivação da decisão, o que configura violação do disposto no n.º 2 do artigo 31.º, no n.º 2 do artigo 33.º e o estabelecido na alínea b) do n.º 1 do artigo 571.º todos do Código de Processo Civil de Macau, aplicável ex vi n.º 1 do artigo 1.º do C.P. T.M.;
5. Por conseguinte, a decisão do Tribunal "a quo" de se considerar como competente é nula, por manifesta contradição entre os respectivos fundamentos e a decisão relativa à competência do Tribunal, assim como por falta de fundamentação de facto e de direito;
6. Na realidade, como resulta do contrato de prestação de serviços, nomeadamente da cláusula décima segunda, sob a epígrafe "Disposições Finais":
"Quaisquer litígios ou questões emergentes da sua execução, serão decididos por uma comissão arbitral, campos ta por 3 membros, sendo dois escolhidos por cada uma das partes e o 3.º designado pelos árbitros de parte, a qual decidirá de acordo com a equidade".
7. E, dos factos dados como assentes, assim como do pedido do Autor, a alegada fonte/origem destes alegados direitos é precisamente o "contrato de prestação de serviços";
8. E, sem prejuízo de não ser parte do mesmo, o que configura uma violação do princípio "res inter alia acta aliis nec nocet nec prodest";
9. Acontece que as cláusulas dos referidos contratos de prestação de serviços ainda se encontram em vigor, designadamente quanto ao Autor, pelo que são válidas, eficazes e aplicáveis aos presentes autos;
10. Para além disso, no domínio das formas de auto vinculação, a lei substantiva (Lei de Arbitragem Voluntaria) bem como a lei adjectiva (C.P.C.M. aplicável ex vi n.º 1 do artigo 1.º do C.P.T.M.) reconhecem e atribuem efeito e tutela jurídica a estas cláusulas compromissárias, como corolário do princípio da autonomia da vontade;
11. Pelo que, de acordo com a cláusula décima segunda dos referidos "contratos de prestação de serviços", não é o Tribunal "a quo" que tem competência para apreciar a presente demanda, mas sim o Tribunal Arbitral;
12. Porquanto, se o Tribunal "a quo" especificou certos factos na matéria de facto dada como assente exclusivamente com base nos "contratos de prestação de serviços", no que tange a determinadas cláusulas, teria de extrair todas as consequências e efeitos jurídicos em função do vertido em todas as suas cláusulas e da respectiva lei aplicável;
13. Ao decidir de modo diverso, o Tribunal "a quo", salvo o devido respeito que é muito, violou o disposto no n.º 2 do artigo 31.º, no n.º 2 do artigo 33.º, no n.º 2 do artigo 412.º, na alínea a) do artigo 413.º e no artigo 414.º todos do C.P.T.M., o que configura uma nulidade da sentença de acordo com a estatuído na alínea d) do n.º 1 do artigo 571.º do C.P.T.M., aplicável ex vi n.º 1 do artigo 1.º do C.P.T.M.
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O Autor, ora recorrido, respondeu à motivação do recurso da Ré, nos termos constantes a fls. 164 a 171, cujo teor aqui se dá integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do mesmo.
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Foram colhidos os vistos legais.
II – Factos
Vêm provados os factos seguintes:
1. “Guardforce”, aqui recorrente e ré na acção, é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços de equipamentos técnicos e de segurança, transporte de valores, entre outros.
2- A recorrente tem sido sucessivamente autorizada a contratar trabalhadores não residentes para a prestação de funções de guarda de segurança, supervisor de guarda de segurança, guarda sénior, entre outros.
3- A recorrente celebrou com a “Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda” os contratos de prestação de serviços n. 9/92, em 29 de Junho de 1992, n. 6/93, em 1 de Março de 1993, 2/94, em 3 de Janeiro de 1994, n. 29/94, em 11 de Maio de 1994, n. 45/94, de 27 de Dezembro de 1994.
4- Ao abrigo de um desses contratos de prestação de serviços o Autor, ora recorrido, foi recrutado pela sociedade referida em 3 supra e, posteriormente, iniciou a sua prestação de trabalho para a recorrente.
5- O contrato cessou em 31 de Maio de 2008, tendo posteriormente o recorrido movido a presente acção contra a ora recorrente reclamando o pagamento de MOP$ 293.147,00.
6- No contrato de prestação de serviços celebrado entre “Guardforce” e “Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda” consta a seguinte cláusula 12ª: “quaisquer litígios ou questões emergentes da sua execução, serão decididos por uma comissão arbitral, composta por 3 membros, sendo dois escolhidos por cada uma das partes e o 3º designado pelos árbitros de parte, a qual decidirá de acordo com a equidade”.
III – Fundamentos
Na óptica da recorrente, o despacho recorrido é nulo porque “não apresenta qualquer fundamento de facto e de direito e por contradição entre fundamentos e a decisão tomada quanto à competência”.
Adiantamos desde já que não lhe assiste qualquer razão.
Vejamos.
O despacho recorrido tem o seguinte teor:
“被告在答辯時還主張案件應由仲裁庭審理,遂要求駁回對被告之起訴。
原告在發表意見時表示不認同上述之延訴抗辯。
關於上述問題,本人認為,雖然被告與第三人公司明確訂明如在執行合同時出現任何爭議將交由仲裁員以仲裁方式解決有關爭議,但如上文所言,有關合同的雙方立約人互相承擔的義務僅對他們之間產生效力,故此原告方面並不受該排除本澳法院管轄權協議所約束,繼而駁回被告提出的延訴抗辯。”
Pela transcrição supra, facilmente se conclui que o despacho recorrido é suficientemente claro para se perceber o alcance da decisão tomada, pois estão lá vertidos os fundamentos de facto e de direito essenciais, ainda que expostos de forma sintética.
Por outro lado, mal se compreende que ache nulo o despacho em crise por não ter “qualquer fundamento” e, logo a seguir, considere que nele detecta contradição entre os fundamentos e a decisão.
Assim, improcede a imputação de nulidade, face ao disposto no art. 571º, n.1, als. b) e c), do CPC.
Quanto à questão de fundo, isto é, face à convenção de arbitragem incluída na cláusula 12ª do Contrato de Prestação de Serviços celebrado entre “Guardforce” e a “Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Limitada”, deveria o presente litígio submeter-se à arbitragem, em vez de recurso ao órgão judicial.
A questão em causa já foi objecto de apreciação deste Tribunal em vários processos.
Com a devida vénia, a propósito de situação em tudo igual à que ora nos ocupa, transcreve-se a jurisprudência fixada no Ac. de 10/12/2009, Processo nº 749/2009:
“É inegável que como fundamento do seu pedido, alegou o A. o “contrato de prestação de serviços” que a R. celebrou com a “Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda.”, no qual consta a “cláusula 12.ª”, com base na qual invoca a R. a excepção de preterição do tribunal arbitral aqui em apreciação.
Porém, há que distinguir o seguinte:
Uma coisa é ter ou não o A. razão no que pede, em virtude das alegadas obrigações que a R. assumiu perante a dita “Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda.”, outra, é a “oposição” que a R. faz ao pedido do A. com base na dita preterição do Tribunal arbitral.
De facto, se o pedido do A. deve ou não proceder, é questão que oportunamente se verá. (…)
(…) o facto de invocar o A. o referido contrato entre a R. e a mencionada empresa “Sociedade...”, não implica que aceite o A. todo o seu clausulado, como que “confirmando” tudo o que nele consta.
(…) De facto, sendo a “convenção arbitral”, no caso, “cláusula compromissória”, um “negócio jurídico bilateral”, (desde sempre) definido como “acordo de regulamentação coordenada de interesses contrapostos” – cfr., C. Mendes, in “Direito Civil, Teoria Geral”, III, pág. 723 – nele havendo duas (ou mais) declarações de vontade, de conteúdo oposto, mas convergente, ajustando-se à comum pretensão de produzir resultado jurídico unitário, embora com um significado para cada parte, havendo, assim, “uma oferta ou proposta e uma aceitação” – cfr., M. Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, pág. 387 – inviável se nos mostra outro entendimento, pois que, como também já se entendeu, “para que haja preterição do tribunal arbitral é necessário que da interpretação da cláusula contratual resulte que as partes quiseram submeter à decisão de um árbitro o litígio em causa” –cfr., Ac. do R.P. de 14.10.94, Proc. nº 9530929) (…)
No mesmo sentido, em situação equivalente e mais recentemente, consignou-se também no Ac. do S.T.J. de 27.11.2008, Proc. nº 08B3522, que “Não é oponível ao trabalhado/autor (terceiro) a cláusula compromissória incluída em contrato de seguro celebrado entre uma determinada seguradora (promitente) e a entidade empregadora do autor (promissária), em benefício dos seus trabalhadores”, já que, “partes no contrato são apenas o promitente e o promissário”.
E no Ac. de 26/05/2011, Proc. nº 860/2009, foi dito ainda o seguinte:
“.. um só elemento acrescentaríamos, resultante, aliás, de expressão literal, tão simples, quanto cristalina, contida na própria cláusula 12ª. Com efeito, nela se diz que “quaisquer litígios ou questões emergentes da sua execução, serão decididos por uma comissão arbitral, composta por 3 membros, sendo dois escolhidos por cada uma das partes e o 3º designado pelos árbitros de parte, a qual decidirá de acordo com a equidade” (negrito nosso). Ora, como admitir que esta cláusula vincule um terceiro, se a própria composição da comissão arbitral só poderia resultar da escolha de cada uma das partes! Então não se vê que, em virtude de não ter sido interveniente no contrato de prestação de serviço, o ora recorrido nunca podia escolher o seu árbitro?! A circunstância de o autor na acção pretender extrair efeitos daquele contrato não é senão uma forma de a si estender o seu alcance material, isto é, de aproveitar as vantagens substantivas nele estabelecidas. Saber se tal é razoável ou legal é questão diferente que a seu tempo há-de ser discutida. Mas o que por ora está em causa é saber se uma cláusula compromissória como aquela, de efeitos adjectivos, pode vincular quem não a subscreveu. E nós, tal como os citados arestos, achamos que não (neste mesmo sentido, ainda o Ac. do TSI de 15/12/2009, Proc. n. 1027/2009)”.
São arestos com os quais concordamos em absoluto e cujo conteúdo aqui, respeitosamente, fazemos nosso. Não são, aliás, os únicos. Na verdade, também nos processos números 739/2009, 916/2009, 619/2010, 562/2010, 841/2009 e 1027/2009, se chegou a igual conclusão.
É jurisprudência que aponta a boa solução, com a qual se conforma, aliás, o despacho impugnado.
Eis a razão pela qual, nada mais havendo a discutir, se considera improcedente o recurso.
IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em negar provimento ao recurso da Ré, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela Ré.
Notifique e registe.
RAEM, aos 30 de Junho de 2011.
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Ho Wai Neng
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José Cândido de Pinho
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Lai Kin Hong
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Proc. nº 1046/2009